Falar sobre poesia em nosso tempo é como passear em terreno minado. Alardeia-se o impasse, um momento miserável na produção atual. A questão não deixa de ser curiosa, pois nos leva mesmo a pensar de maneira mais acurada sobre a poesia feita hoje no Brasil. Para o bem e para o mal até ter alguma simpatia por tais afirmativas apocalípticas. Mas elas, como em tudo na vida e no pensamento, não resolvem o problema — talvez até ajudem a piorá-lo.

 

Sentimo-nos tentados a concordar com os pessimistas quando abrimos a grande maioria dos livros de poesia publicados no país em nossos dias — é de bom tom salientar que na prosa a situação é ainda pior. Diz-se que a cura mora na própria doença, então a poesia busca entre suas células doentes safar-se da própria morte. Dessa maneira, vez ou outra (o que é puramente normal, visto que a poesia é uma arte extremamente exigente) aparecem poetas que mantêm a discussão acesa, que trazem trabalhos diferentes e trilham rumos instigantes. Claramente de faixa etária baixa (entre 20 e 40 anos), esses poetas vão sacudindo o panorama. Tirando o mofo dos versos velhos que ainda são praticados em nosso tempo.

 

Alguns nomes vão tecendo uma outra história da poesia nacional (à frente da oficial, que sofre de uma irreversível cegueira). Isso se chama "outro ponto de vista" — já que não há (ainda bem) uma única maneira de fazer poesia. Jovens poetas como Ricardo Domeneck, Angélica Freitas, Dirceu Villa, Marília Garcia, Diego Vinhas, Marcelo Montenegro, têm propostas estéticas diferentes e um poder de fogo parecido, lêem muito bem, sabem escrever, são criativos e inteligentes. Entre os poetas da geração imediatamente anterior, destacam-se os trabalhos personalíssimos de Carlito Azevedo, Marcos Siscar e Claudia Roquette-Pinto.

 

A falta de imaginação afeta o grosso da produção. A previsibilidade é tão grande que chega a ser uma afronta à inteligência do leitor. Estão aí aqueles que praticam um pseudo-filosofismo constrangedor; aqueles que são cópia em baixíssima definição dos Beatniks americanos; aqueles que querem ser os modernistas dos anos 30, implorando-lhes a filiação (de olho na herança); aqueles que fazem uma "vanguarda" (aspas necessárias) de anteontem; e aqueles esquizofrênicos neofascistas travestidos de esquerdóides que alimentam uma espécie de filantropismo literário por trás de máscaras orfãs de um coronelismo à paisana. Todos relutam contra o século convulsivo que se abre. O resultado não poderia ser pior: a pobreza da escrita e do pensamento e o afastamento por completo do gosto por poesia por parte do público.

 

É neste contexto que aparecem Mergulho às avessas (Lumme, 2008), de Andréa Catrópa; e Corpo sucessivo (Oficina Raquel, 2008), de Danilo Bueno.

 

Andréa compõe como se dentro de um consciente campo onírico — seus poemas parecem ser resultado de uma perturbação pós-pesadelo. Carregam um suor frio. Mostram uma espécie de especulação da culpa — "uma turista burguesa, ensimesmada e excessivamente branca" — que caminha entre "os fantasmas que inventamos para vencer a matéria" que se torna insuportável em sua demência e degeneração. Assim, "um pouco de torpor é preciso", pois, tendo nos tornado arremedo de nós mesmos, somos a prova viva, mas agonizante, da falha prática de séculos de teoria ("a teoria é uma droga pesada", é parte do irônico título de uma das peças). É numa ininterrupta tensão ("púrpura a cor da moda e da gangrena"), mesmo em momentos mais líricos, que Catrópa consegue instaurar seu curto-circuito sensível, seu glossário de horrores iluminados por faróis de carros importados.

 

Danilo vai por outro caminho. Mais seca, sua poesia se alimenta de uma curiosa (e ilusória) harmonia de expressão e forma. Essa harmonia soa como ironia, uma alegorização. Isso se torna ainda mais evidente quando se conhece os trabalhos anteriores do autor, onde as buscas eram outras e que, aqui neste novo livro, tornaram-se maduras. O poeta cria um corpo onde possa varrer sua voz, seu batimento cardíaco, sua letargia, sua decepção; este corpo, indo muito além da simples plataforma do livro, é um organismo vivo e, claro, portador das características hereditárias de seu criador. Mais que partículas de realce na singela página branca, as palavras realmente falam, e despertam o leitor para algo além do simples símbolo tipográfico — como nos mostra o belo "Nadia Comaneci". Não sendo um "escrevinhador de versos", o autor não busca uma tola "voz própria", pois é poeta ("sou o único homem a bordo do meu barco") e sabe que não há espaço para principiantes (não há "nenhuma brisa" e "não é seguro/ não há qualquer certeza"), e que o poema é um orfanato tenso, habitado por "baque e torpor".

 

São dois livros de poemas, publicados por corajosas e louváveis pequenas editoras, que nos fazem acreditar que há, sim, escapatória, que há margem de manobra. O inferno é mais embaixo e mais interessante, e é justamente no underground, muitas vezes fora das prateleiras das megastores, onde encontramos a melhor poesia: aquela que recusa o epíteto "mercadoria" neste imenso e mal cheiroso mar de excrementos chamado mercado cultural. 

 

 

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Os livros: Andréa Catrópa. Mergulho às avessas. São Paulo: Lumme Editor, 2008 | Danilo

Bueno. Corpo sucessivo. São Paulo: Oficina Raquel, 2008.

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março, 20089

 

 

 

 

 

 

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