There are places I’ll remember,

All my life

Though some have changed.

Some forever, not for better;

Some have gone and some remain.

 

John Lennon & Paul McCartney

 

 

À certa altura do ano de 2007, quando discutíamos, eu, Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, os textos da revista de poesia que editamos, a Modo de Usar & Co., eu sugeri que publicássemos uma tradução e um poema de um poeta que eu admirava muito e que, por conta de uma trapaça da vida, nos tinha deixado cedo demais.

 

Sempre discutíamos, eu e r. ponts, possibilidades de tradução para as canções dos Beatles. Queríamos regar a chatice da poesia brasileira com algum lirismo beatleniano bem traduzido. Avançamos... Ele, sempre muito erudito e interessado em traduções que exigem maior fôlego (como as belas traduções que fez de E.E. Cummings ou de Edgar Allan Poe) e lendo avidamente os clássicos gregos e latinos, discutia cada detalhe, a funcionalidade de cada vocábulo, a fluidez do ritmo, alguns estranhamentos possíveis etc.; e eu, com minha cultura pop aprendida na camada mezzo lírica mezzo bandida da vida, encantado com tanta dedicação, apenas sugeria um ou outro barbarismo que ele gentilmente aceitava.

 

Naquele número de estréia da revista, publicamos sua tradução para "In my life" e o belíssimo poema de sua autoria "Odelegia à quimioterapia".

 

O contato com r. ponts me fez entender melhor os versos finais do poema "Reflexão nº1" de Murilo Mendes:

 

 

Ainda não estamos habituados com o mundo

Nascer é muito comprido.

 

*

 

 

Escrever sobre o poeta paranaense r. ponts é, para mim que tive uma certa proximidade com ele, uma tarefa nada fácil. As lembranças de seu talento ímpar e de sua luta homérica pela vida ainda me fazem ler os poemas que compõem este colibrilhos&colibreus (ComArte, 2009) com a marca inconfundível de sua presença, de sua personalidade doce e guerreira.

 

Entre os anos de 2003 e 2004, através de uma intensa e rica correspondência, acompanhei parte do processo de confecção deste livro, opinando aqui e ali, trocando idéias, dividindo com um grande amigo essa arte de defender a causa perdida que é a poesia.

 

Tenho certeza — talvez aquela certeza salgada que os náufragos têm quando, no meio da imensidão oceânica, parecem sentir entre os dedos a terra seca onde a vida, ainda uma vez, brotará —, de que esses poemas ainda passariam alguns anos sob o olhar crítico de ponts. E isso não quer dizer que aqui neste colibrilhos&colibreus não haja poemas de extrema qualidade (fato que vocês, leitores, poderão comprovar na mínima antologia que fiz para ilustrar esse pequeno depoimento), mas sim que, exigente, inquieto e raro, ponts não se contentava facilmente com sua produção, pensava-a como um verdadeiro fabbro, colocava o dedo na ferida e não colocava o carro na frente dos bois, i. é: primeiro escrever os poemas, depois publicar o livro.

 

Como disse, escrever sobre o poeta r. ponts ainda é escrever sobre o amigo Rodrigo Pontoglio. Uma distância, que talvez jamais deixe de existir, confesso, é necessária para que eu possa fazer uma leitura analítica da bela estréia do bardo.

 

Neste primeiro momento, prefiro celebrar a publicação deste livro. Um livro pungente, lírico, de um poeta morador do extraordinário que, mesmo quando a vida apagava os sóis ao seu redor, via o mundo do ponto de vista da luz.

 

 

 

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O livro: r.ponts. colibrilhos&colibreus. São Paulo: ComArte, 2009.

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poema pra ser uma fragrância à primavera

                                            para Fábio Farias

 

um não sei o que no ar, nos ares

tão perto e longíssimo

 

nossa musicamizade

 

nas alturas

 

purpurina, um leque

medalhas de papel

nas mil curvas do ar

 

tentaculares

asas de luz

 

grilos em gotas

verde de vidrilhos

 

com alma de vaga-lume

pó de luz em asas de fadas

 

olhos que trovejam

pra estrelar um céu na boca

e a noite fez-se luminosamente diurna

 

ah! abraçar-se com as asas...

 

deslembrança

 

e o que dizer do não?

um silêncio-quente que diz tudo

 

 

 

 

 

 

nervuras de aço à flor da pétala

             para Alexandre G. Marcati

 

ser semente

só pra um dia

germinar

 

brotar

verde-vivaz, feliz

feliz viver, só a vida

 

crescer

pra cima e acima

sempre ao alto, sempre

 

arvorar-se

arvorar-se

o que mais há de se fazer?

 

ah, habitar passarinhos

seus ninhos de passarinhozinhos

ser e permitir que seja

 

nutrir-se de luz

alimentar-se dela, só dela

iluminar-se a transcender

 

vegetalmente a paz

contemplação: ter raízes, casca dura

balouçar ao vento do momento

 

perder as folhas

de vez em quando

mudar de cor

 

ficar nu-nua

ser escura-escuro

contra um azul tão claro

 

a favor do firmamento

céu-tropismo positivo

meu caule!

 

eu-nós: um casulo agora

hamadríade, amor

parte das metamorfoses

 

acender uma toda primavera

a vida, apenas

vivendo-se, a farfalhar

 

apenas ela

 

 

 

 

 

 

                   luzir, só pra pulsar

para Elaine Sartorelli

 

 

midriaticamente olhar

deixar-se abraçar pela luminosidade

luminosamente

 

ver

ver melhor, ver de verdade

pupilar-se em dilatação

olhos esbugalhados

pálpebras de pura visão ansiosas

por abarcar toda a cor

com o coração dos olhos

a pulsar

pisca-piscando

 

as janelas da alma

abri-las, escancará-las

encarar tudo de bom e de melhor

deixando esta luz falar aos olhos

que se defenestram

luminescendo auroral-crepuscularmente

lusco-ofuscando-se-me

 

ver mais

e ver além:

ver-infindo

ver-voraz

o vero-olhar

 

até que tudo que se veja

seja

o gosto da melhor cereja:

 

a vida

a mesma

que em mim

brilha

e lateja

 

 

 

 

 

 

borboletas

 

 

duas mil e duas

borboletas

todas azuis

 

só uma vermelha

 

planam plenas

derramando

poeira líquida das asas

 

fluidas partículas:

 

tantas azuis

e quase alguma

vermelha

 

em chuva de tinta

 

cada ponto cadente

é o pensamento

azul

 

da asa

 

movente

de uma

borboleta

 

bilhões

 

de relances-

lampejos

chovendo

 

em meio a todos

 

ela

a vermelha

e sua idéia

 

 

 

 

 

 

                   olhar de denise

para Denise Roman

 

 

olhar

olhar

olhar

até ver

o mundo

com verdes

olhos

 

florindo

todo em xadrez

sempre estrelado

estampas várias

flocos de neve

coloridos

como os vestidos

das fadas

das bruxas

das mulheres

e das crianças

dançando

alegres

nas florestas

de araucárias

 

ver

em tudo

o brilho

é olhar

do ponto

de vista

da luz

 

 

 

 

 

 

que nem Leminski

 

 

quem sabe nem tanto disso

nem bem surgindo

já em sumiço

 

sabe lá deus se esse tanto

um pouco tardio cedo

outro, centro de um canto

 

vai saber quem é que foi

que foi um dia

tchau que nem oi

 

talvez nem seja

ou seja menos

que estar estando

 

deve de ser

que nem um quase

como que um quando

 

 

 

 

 

 

odelegia à quimioterapia

 

 

o céu era todo azul

azul de céu quase-amarelo

nem uma nuvenzinha

sujava a planura da cor

: só mesmo a luz planava

 

então, de longe-demais-longe,

de depois do circular horizonte,

lá donde o nunca faz-se às vezes

lugar d'além do solitário sol sair do solo

pintou-se um ponto preto, de repente

 

vinha manchando o firmamento

vinha crescendo em minha vista

vinha voando vasta Vivaz VIVA

com as asas abertas em cruz

rápida mais-que-veloz em seu vôo

distanciando meu olhar e o chão

reta em sua retilínea vinda

cada vez demais-ainda

até que sobre mim

em seu zênite

: a avezinha

 

se toda a beleza do cosmos

(como uma grande girante

espiralada brilhante galáxia,

como a textura fria da pele

das pétalas das róseas rosas,

como o molhado ponto branco

da luz dos olhos dos meninos de colo,

como o abraço mais afeto

do amigo-melhor todo fiel-lealdade,

como a tristeza mais lírica

diante das mais inevitáveis,

assim mesmo, em esses exatos comos...)

se unisse num só ser

ser-lhe-se-ia apenas

a vida: a dela

...! ela !...

 

o tempo parou pacificado

na microduração daquele

nem-bem-começado então já-ido não-instante

— todo um infinito-quase-(pensei, seria)-eterno

e que não (percebi, em seguida) foi

 

e ali,

em perpendicular perfeita sobre um eu imóvel

estava destinado o protéico pássaro

a morrer em pleno ar

de um dilacerante ataque do coração,

assim como poderia ter sido

de uma parada respiratória,

ou mesmo do apogeu infestante

de milhões de cissiparidades bacterianas e nocivas,

ou algo muito mais-que-prosaico,

como um repentino e letal esquecimento do modo

[de continuar a bater as asas,

ou uma aviária preguiça tão grande que nem mesmo

[mais se mexer ele quisesse,

e fosse a pouco e pouco caindo em sua desistência

até arrebentar-se no mesmo duro eterno chão

em que tombam todos os sem-exceção seres, em certo

[ponto sem-exceção de suas vidas

 

...estava destinado

a morrer em pleno ar...

 

mas meu olhar concentrava em si

tanto amor por aquela para-mim-recém ave

um amor tão extravasante para além

[de minhas escassas bordas

que de mim um calor amável se irradiava em

[ardente ternura

e sob asas estendidas-macias que me envolviam em

[abraço aberto no perto lá de cima

se insuflava um pouco, amor suficiente de

[vida, pouco-tanto

que enganamos as linhas sempre tortuosas

[das garatujas do destino

pois que ao passar por sobre mim

fazendo-me girar como uma lua gorda e branca

que desde sempre e para sempre

fita deslumbrada e brilhantemente

o planeta que a rege, e gira feliz

o pássaro, a ave, a avezinha

não morri ali, não

que não podia, não era certo

e continou minha migração a algum melhor lugar

voando ignorante do perigo porque passara

que sua inocência em nós gerara a salvação

[de meu mundo

em amabilíssimas ondas vermelhas de pra-longe-se-

[alongando em indo-lindo voar

 

só o céu, por fim

após de para o tchau ter-se-mos ido

nem uma branca nuvem

apenas uma limpa planície

cuspindo azul

: amareluz

 

 

 

 

 

 

o caranguejo, um escorpião: versos vs. versos

 

 

amigo&inimigo

 

eu em mim

vs.

eu comigo

 

uma guerra

por dentro se acendendo:

Osíris e Set

na Terra de Rá

 

e todos somos nós

um só deserto

que eu nasci

foi pra brigar

 

 

 

 

 

 

incompl

 

 

tudo o que tão somente começou

o feto abortado

o amor só de um lado

a gaga garganta de fala inconclusa

o som que cessa no meio da música

os choros engolidos

os livros meio lidos

desistências

suicídios

tudo isso que acaba sem

não vale a

 

 

 

 

 

 

poema trágico: ai de mim

                              para Q.

 

 

é vão

e tudo é vão

da oca-luz do brilhante

ao escuro-vazio do carvão

é vão

e tudo é vão

o infinito-ínfimo das estrelas

o úmido uni-descer da chuva

o tiquetaquear do coração

 

vão-se os anéis

os dedos

vão-se, também,

as mãos

 

tudo o que é

escorre-se à vanidade

extinta

 

só sobra o nada

o sem bordas

o incolor

o vão

 

mesmo ele

em vão

esvai-se

 

 

 

 

 

 

                                 pra nós 2, que somos 3

para minha mãe e ao meu irmão, Vera e Ricardo

 

 

 

 

 

Rodrigo Pontoglio (r.ponts): poeta, tradutor e cinéfilo. Nasceu em Curitiba no ano de 1980 e cursou audiovisual na ECA-USP, mas não concluiu a faculdade por motivo de saúde. Debilitado, retornou à sua cidade natal, falecendo em 11 de maio de 2004. Como poeta, escreveu o livro colibrilhos&colibreus, além de inúmeros outros poemas. Foi também autor de críticas, resenhas e textos diversos. Teve trabalhos publicados na E-Zine Literária da Fundação Cultural de Curitiba, nas revistas Coyote, Inimigo Rumor e Modo de Usar & Co., entre outras. Deixou traduções acuradas de poemas de E.E. Cummings, sua fonte de inspiração literária. Coordenou com seus colegas de curso a implantação da revista Pupila, revista eletrônica de crítica de cinema. Recebeu menções nas coletâneas Me escreva tão logo possa: antologia da carta no Brasil, organizada por Marcos Antonio de Moraes; e A linha que nunca termina — pensando Paulo Leminski, organizada por André Dick e Fabiano Calixto.

 

 

 

outubro, 2009