Tão importante

 

outro dia li um poeta
estudioso e famoso
dizendo algo impactante:

poesia, pra ser boa,
tem que ser muito relevante

transformar o homem
mover os mares
ofuscar o sol
por um instante...

fiquei confuso
perdi o sono
saí da cama

insignificante

vou parar de escrever
vou me enforcar
no próximo rolo
de barbante

quem sabe renasço sábio

e quando abrir a boca
só brotarão

coisas importantes.

 

 

 

 

 

Dia do trabalho

 

jogo as pernas pro ar
que ninguém é de ferro

meto o corpo no mar
que a areia é o inferno

pego os copos no bar
que nada é eterno

busco um emprego
exato
para a palavra mal empregada

tomo uma justa causa
pela língua

embriagada.

 

 

 

 

 

Ensaio sobre a gagueira

 

adó
adó
adó
adó

adoro

sará
sará
sará
sará

zé saramago.

 

 

 

 

 

Assento agudo

 

sinto-me em crise
sento-me em crase
espetei a bunda
espero que passe.

 

 

 

 

 

Erudito pelo não dito

 

gente fácil
usa palavra difícil
pra se fazer de fino

e entrar no nosso orifício.

 
 
 

 

Lírico

 

sou
um tanto

lírico

urino no penico
com saudades
do que não
sofri

sou
um tanto

tísico

tive um avô
tuberculoso
pena que não
conheci

sou
um tanto

físico

mijo
cago e ando
solto poesia
por aí.

 

 

 

 

 

Luso

 

ai que ainda tenho
um pouco do sangue
lusitano
não cometo erros
faço enganos

ai que ainda tenho
um pouco do jeito
lusitano
não sofro pouco
logo me dano

ai que ainda sonho
um pouco o sonho
lusitano
não sou só um tião
sou dom sebastião

se não me esgano.

 

 

 

 

 

Dia da poesia

 

nesse dia
tão poético
minha mãe nasceu

nesse dia
tão patético
lembro que ela morreu

nesse dia
tão tião
lamento o que ela levou

e lavo a alma
na chuva
do que ficou.

 

 

 

 

 

Sinteko

 

os sábados tinham cheiro
de cera
e barulho
de enceradeira

criança só falava
besteira
chupava chupeta
tomava mamadeira

mulheres viviam de bob
camisola
e pai de pijama
banheiro se lavava
todo santo dia
da semana

anos sessenta

muita cera no chão
que sinteko era coisa
de bacana.

 

 

 

 

 

Coisas erradas

 

pneu furado
buraco na estrada
feriado chuvoso
fruta estragada
nome esquecido
resposta atrasada

coração partido

por perto
uma gargalhada

há coisas muito certas
outras
muito erradas

mas o certo
é que ambas
passado um tempo

não são mais nada.

 

 

 

 

 

Reunião em família

 

alegria sorrisos
há quanto tempo
vira-latas faísca
abana o sono
nossa
como cresceu
a cara do pai
é minha filha
eu só carreguei
sai cachorro indecente
cheira as coisas da gente
deixa o animal
é tão natural
mas vamos entrando
não reparem a bagunça
que nada cunhada
tá tudo ótimo
ninguém conserta
como deus permite
que cheiro bom de feijão
é coisa tão simples
comida de pobre

a gente comia
a gente brindava
a gente brigava
a gente sempre voltava

sai faísca
cachorro indecente...

 

 

 

 

 

Godbye

 

Deus disse adeus
e nem quer saber
por que a humanidade
não melhora

saiu pra almoçar
e não voltou
até agora.

 

 

 

 

 

(imagens ©thomas hawk)

 

 

 

 

 

 

Tião Martins nasceu em Niterói, aquela cidade em frente ao Rio. Vive na ponte engarrafada, e quando sobra tempo é professor, poeta e publicitário. Edita o blogue Poesia & Cia. e escreve pra Poema Dia.