ACASALAMENTO

 

casar

é fechar-se no medo

e calar palavras

 

casar

é renunciar ao hímen

entregando-se

a três letras enrijecidas

e famintas

 

casar

é abrir a vulva

e deixar-se

à mercê das paredes

 

casar

é como declamar o não

poema

que se esvai em sangue

e quando velho

fala de coisas desconexas

e sem sentido

(de não-acontecidos)

 

 

 

 

 

 

FILHOS

 

diziam tanto

e eram tantas as mentiras

que já tarde

me vi mais presa que antes

lavando fraldas

babando leite nas tetas

abrindo o sexo

a outras possibilidades estéreis

 

e por mais que olhasse

aquele ser frágil a saciar a fome

em meu peito

mais e mais me convencia

que ali não havia um poema

: me enganaram...

 

 

 

 

 

 

MARIDO

 

o sujeito

entrava na casa como se fosse uma jaula

chicoteava o vazio

como se fôssemos animais

depois...

depois queria trepar

— não são assim todos os homens? —

gozava

virava o corpo para o outro lado

e roncava

o que me distraía era seu ronco

sabia que se parasse

eu estaria livre para o sempre

: e um dia parou

 

 

 

 

 

 

SEXO

 

olhava o esperma

sair de dentro de mim

e pensava

nos filhos que não tive

e nos que tirei

sem que o homem ouvisse

um gemido

 

 

 

 

 

 

COZINHA

 

foi na cozinha

que fiz o verdadeiro sexo

com o homem

que jurei ficar ao lado a vida toda

foi uma torta

de morangos silvestres — receita

de minha avó —

ver sua boca

mastigando os frutos

a língua

lambendo os lábios suculentos

me fez gozar

: depois disso,

que me lembre, nunca mais

 

 

 

 

 

 

SALA

 

na sala

enquanto ele me pegava por trás

eu assistia à telenovela

: como eram mentirosas aquelas histórias

 

 

 

 

 

 

BANHEIRO

 

eu tinha fantasias

e como as tinha!

fazer na água era uma delas

: mas o fedor de álcool

me fez vomitar mais de uma vez

levando-as todas para o ralo

 

 

 

 

 

 

PRAZER

 

não vou mentir

como fazem os poetas

pra quê?

a vida não é nada poética

e ela ensina

que o ódio cria carências

: assim foi que conheci

o homem mais completo de minha vida

vivemos três belos dias

e ele se foi

como uma ave migratória

 

 

 

 
 
 

ROTINA

 

chegava

querendo trepar

sem banho

cheirando a suor e bebida

para saciar uma fome

que nada tinha a ver comigo

eu sabia

era seu camaleão

: frígida como uma estátua

 

 

 

 

 

 

O DESINTERESSE

 

um dia

— mais os dias que se seguiram —

chegou com marcas de batom na roupa

encontrei calcinhas

perdidas no banco e no chão do carro

sorte minha — pensei

: passei a assistir às novelas sem nada dentro de mim

 

 

 

 

 

 

DESEJOS

 

não!

não posso falar que nunca desejei mulheres

até tive uma

mas o cheiro do homem sempre foi o que mais me atraiu

pena ter demorado tanto

acreditando que um juramento bastava...

(rasguei e joguei a bíblia no lixo)

 

 

 

 

 

 

A DOENÇA

 

um dia

quis conversar sério comigo

estava com cirrose

queria uma companheira ao seu lado

eu ouvi

e o tratei com o carinho de uma mulher de verdade

isso eu aprendi com os poetas — fingia

e como fingia!

cada dia passado era um a menos

e sorria por dentro

com os poemas que lia ao lado da cama

(um dia, o silêncio me avisou de sua morte:

através do vidro baço... já não passa mais — Fernando Pessoa)

 

 

 

 

 

 

MORTE

 

a morte

não resolveu meu problema

vi seu fantasma

durante muitos anos ainda

mesmo a masturbação

trazia o cheiro maldito de uísque

daí inibia o gozo

: medo

era medo que ressuscitasse

 

 

 

 

 

 

O LUTO

 

depois de um tempo

em casa ninguém sentiu a falta dele

nunca fizemos

uma visita a seu túmulo

era como se nunca vivera naquela casa

e o esquecimento foi bom

começamos a ver o sol atravessar a casa

ouvir o ruído da chuva

(a televisão

nunca mais me liguei em novelas)

 

 

 

 

 

 

CANSAÇO

 

cansei

de criar filhos e cheirar à gordura

de esperar

um homem que necrosava por dentro

cansei

de estar no fogão por obrigação

de cozinhar

a solidão em banho-maria

cansei

mas não de tudo...

 

 

 

 

 

 

RECOMEÇO

 

não haveria recomeço

caso o sofrimento não deixasse algum aprendizado

: hoje divido com homens

mas apenas os momentos que me interessam

depois os dispenso

volto para minha casa e meus livros

: comecei a escrever

um livro de poemas que fala de minha vida

da vida das mulheres

(é gostoso escrever depois de um bom orgasmo)

 

 

 

 

 

 

FUTURO

 

viver em meu canto

com os netos do outro lado da janela

no quintal

que é o lugar onde devem estar sempre

 

eu e meus poemas

e a torta que faço uma vez ou outra

só para olhar

a inocência de uma criança mastigando

morangos silvestres

 

 

 

 

 

 

A PRÓPRIA MORTE

 

é claro

que a morte me amedronta

mas tento vê-la

como o que sinto após o coito

quando tudo se transforma em leveza e profundidade azuis

um silêncio

de manhãs nubladas de verão

 

 

(imagens @red nails)

 

 
 
 

Valderez Nepomuceno (Divisa Nova/MG). Poeta, formou-se em Filosofia. Inédita. Vive em São Paulo, onde faz mestrado e pequisa "O Sensível em Bachelard". Escreve o blogue Valderez Nepomuceno.