*

 

Minúsculo espaço nas brechas que as tampas deixam

para respirar ar novo é o suficiente para as formigas entrarem.

 

A transparência opaca não impede o caminho

só tanta areia é capaz de mudar a cabeça de uma mulher

só a visão próxima do mastigar de um camelo permite seguir viagem

e ainda achar que há tempo.

 

Imprecisão nos pés andando em relevo

pequenas montanhas que os dedos escalam

em câmara-lenta

a gravidade me olha de frente:

"concentre-se na nuca

o caminho sinuoso é sonoro

e permite embates leais".

 

 

 

 

 

 

Assobio você

 

Caixa preta

furo preto

parecia experiência de colégio

algo como "a lâmpada acende

se amarrar os fios" ou "o feijão

nasce no algodão" parei

ao escutar a vibração

das experiências sonoras

contidas em oito

caixotes de dois metros

de alto-falantes

em círculo claustrofóbico

convidando a mexer

as partes do corpo

que melhor estalam

e continuam a estalar

cada vez mais baixo no infinito pretume

 

ruído

ruído

 

a mandíbula

a língua

o dente

a garganta

a glote

a direção do vento

o lábio superior e inferior

assobio você

 

do corredor o círculo

preto de dois metros falantes

ocupam seu espaço ao chão

octogonal corrompem a visão

o corpo estica-se ao encontro

gigante postura em vale árido

duas caixas se distanciam de acordo

sugerindo passagem ao corpo

 

o alongamento de vértebras

conversam.

 
 
 
 
 

Ao som do vinil

 

"Não acredito que te perdi"

cochichou perdendo a faixa

da música que deveria colocar

para as pessoas não escutarem

o que gritava tentando cochichar

ao ouvido da garota que se despedia

e que pensou escutar

"não acredito que te perdi"

mas não pediu para ele repetir

pois já tinha ouvido o ruído da faixa

terminando e ele afastando-se

para posicionar a agulha em qualquer

outro círculo e assim ninguém

reparar na garota que ali permanecia

na tentativa de ir embora.

 

 

 

 

 

*

 

Andando pela rua virar esquina e subir ladeira e parar no sinal vermelho juntando os pés e então em minutos os carros serão obrigados a parar para você ultrapassá-los. Abrir um livro na hora em que os livros deveriam estar na estante como enfeites para o próximo visitante abri-lo na página onde tem um poema que fala de uma quinta-feira e hoje é quinta-feira poema que fala dos diversos afazeres e de partes flexíveis da hora antes do desjejum e anseio pela minha cama com minhas partes flexíveis e meus afazeres atrasados antes do desjejum. Mas agora o gerente belgo-flamengo vai encontrar a secretária. O poema é o andamento das coisas em si. As idéias permanecem aéreas.

 

 

 

 

 

*

 

Pegar a condução pagar a condução sair para almoçar às doze horas algumas alfaces variadas carnes variadas e hoje sobremesa com o sol e a lua chegar ao fim do dia com o telefone sem linha com a pele coçando com a cidade sem água passar pelo dia oito de abril e não achar estranho acordar com gritos no quarto vizinho meu filho chorando acordar querendo dormir sair para o trabalho com as pernas dormentes a mão presa à xícara a cara lavada pelo resto de água a boca sem dizer palavra a noite corre a lua sobe e pára. Passaram-se alguns anos e a mão ainda presa às coisas da manhã a meia de lã o pão preto com mel lentamente passando pelos lábios quentes da noite do café preto e todas as palavras que ainda não chegaram.

 

 

 

 

 

*

 

Neste dia repleto de girinos e dez minutos de ócio penso no que sou e o que serei em cinco anos não há vácuo nos intervalos da história mas a continuidade é incompleta olho o muro de pedras o futuro é ali e perfura meus gestos conto as histórias no espelho e aguardo as manhãs lentas o vagar dos dedos na xícara de qualquer coisa quente ou nos cabelos dos meninos.

 
 
 
 

(imagens ©margareth teacher)

 

 

Valeska de Aguirre (Rio de Janeiro/RJ, 1973). Publicou Ela disse, Ele disse (Moby Dick, 2001) e Atos de repetição (7Letras, 2007). Organizou (junto com Marília Garcia) a antologia A poesia andando: treze poetas no Brasil, para a Ed. Cotovia (Portugal). Atualmente, é editora.