A extraordinária história humana será sempre incompleta para nós, protagonistas. Dela não conseguimos capturar mais que momentos ao longo de uma vida que, já se disse, em termos cósmicos dura aproximadamente 15 voláteis segundos. Conscientes ou não de tão breve instante de luz, deixamos escapar a oportunidade única de solidária aventura, para nos entregarmos a uma viagem solitária no tempo. Cada vez mais dispersos, aplicamo-nos ao cultivo de um individualismo suicida.

 

Há alguns anos, um médico do Estado do Rio chamava a atenção dos leitores de jornal carioca para "a era do egoísmo". Ao assistir pela televisão uma mulher morrer à porta de um hospital, onde médicos em greve haviam desaparecido e enfermeiras gritavam que "não eram médicas", o autor do artigo apontou o egoísmo — e não o salário baixo — como o assassino daquela vítima.

 

O exemplo é atual. Não pode haver compaixão em sociedade tão desigual e competitiva, onde eu é o vocábulo comprovadamente mais pronunciado em todas as línguas e em todo o canto do mundo. A questão ultrapassa a (in)competência de governos e líderes que parecem reger, da bilheteria, orquestra e platéia no interior do teatro. Atos de solidariedade genuína, sem interesses escusos, são pouco visíveis. Campanhas monumentais que arrecadam recursos para fins filantrópicos dificilmente convencem, tal o desgaste da credibilidade que seus promotores, a qualquer custo, tentam preservar.

 

No terreno individual, valores como a amizade cedem lugar a oportunismos. Todo mundo é "amigo", há quem colecione dezenas, centenas deles. "Parecem remover o sol do universo aqueles que afastam da vida a amizade, este dom, o melhor e o mais agradável que nos ofereceram os deuses imortais", escreveu Cícero. Para Montaigne — que afirmava não crer em amizade entre homens e mulheres, pois os homens "as desejam de outra forma" — a amizade perfeita só acontece de três em três séculos.

 

Exageros à parte, ficou conhecida — e rendeu até livro, lançado há uma década pela editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro — a amizade dos artistas plásticos Lígia Clark e Hélio Oiticica, ambos apaixonados pela experimentação estética. "Dois titãs, dois gigantes que se estimulam", declarou na ocasião o organizador do livro Lígia Clark/Hélio Oiticica, Cartas, 1967-74, Luciano Figueiredo. No campo masculino, foi tema de muita conversa e muita literatura a amizade do escritor Otto Lara Resende, tio e padrinho deste autor, com o jornalista Carlos Castello Branco — o Castelinho —, assim como a de Otto com os também escritores Hélio Pellegrino, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos.

 

Com a internet, os "amigos" proliferam, surgem da noite para o dia. Ao que se sabe, poucos relacionamentos na web se transformam de fato em amizades. Mas em contrapartida, quanto maior a facilidade em nos comunicarmos, maior também nossa busca de isolamento e segurança. O demógrafo Jean Bourgeois Pichat prevê que, em quatro séculos, a história humana chegará ao fim, com o último homem da Terra fechando os olhos em meio ao tédio, extremamente rico e só.

 

Jacques Attali, em Uma Breve História do Futuro, diz que a solidão começará na infância. "Adultos precoces, os mais jovens sofrerão de uma solidão que nenhum tipo de sociedade compensará", prossegue o cientista, ex-conselheiro e assessor de François Miterrand, ex-presidente da França. "Cada vez mais pessoas idosas, vivendo mais e por mais longo tempo sozinhas do que no passado, um dia não conhecerão quase ninguém mais entre os vivos".

 

Aterrorizante? Nem tanto. Afinal, assim como a sociedade de consumo exalta mães e pais a cada ano, de olho em saldos bancários e cartões de crédito, já temos no calendário o Dia do Amigo — por enquanto ainda esquecido pelo varejão comercial da TV.

 

Melhor seria se tirássemos do calendário certas datas, gravando-as no coração. Instituindo, com urgência, uma celebração que dure o ano todo.

 

O "dia" não do Ser, mas de ser humano.

 

 

 
 
outubro, 2009
 
 
 
 

 

Eduardo Lara Resende (Belo Horizonte/MG). Estudou Direito, mas acabou dedicando-se ao jornalismo. Morou e trabalhou também em Brasília, DF,  e no Rio de Janeiro, RJ. Jornalista profissional com experiência nos setores de reportagem, edição e revisão de textos. Escreveu para o Jornal do Brasil, Estado de Minas, Hoje em Dia e revistas diversas. Assessor de Imprensa e de Comunicação de várias empresas — entre elas uma multinacional — trabalhou ainda para agência de publicidade do Grupo Ogilvy, no Rio de janeiro, RJ. Ghost writer de vários livros no gênero biografia, seu mais recente trabalho é a memória de importante instituição patronal da indústria mineira — trabalho em fase de edição e com lançamento previsto ainda para 2009. Tem novela infanto-juvenil inédita. Vive em Juiz de Fora/MG.