Destino

 

Quando nasci, não houve anjo

nem cósmico, nem gauche

mas adivinhei a profecia:

vai ser roqueira na vida

e invocar suas musas —

Janis Joplin,

Joan Baez,

Patti Smith.

Não recebi guitarras

nem pedais de distorção

mas  voz e música infernal

no frêmito das artérias

nas dissonâncias do caos.

 

 

 

 

 

 

Passagem dos felinos

 

O gato esfinge

faróis de esmeralda

dois pulsos no escuro.

 

O gato tecido

seus fios e pelos

roçam mãos e pernas.

 

O gato salto

anjo negro

sem asas

na escultura persa.

 

O gato enigma

Le chat

O gato sorriso

de Carrol.

 

O gato mulher

Le chat

O transe, as nuances

de Baudelaire.

 

 

 

 

 

 

Escrita

 

O amor traça ranhuras em nossos papéis...

Papiro sem data, o amor

Desfolha os palimpsestos da pele,

Perscruta o mar dos escolhos.

Amor: um fechar de olhos!

O amor só é amor pela claridade.

Sem devoramentos.

O amor demora submerso na escolha:

E sob o signo da duração,

E sob flamas azuladas,

Os sons de magmas,

E seus sedimentos.

À flor d'alma,

A razão.

 

 

 

 

 

 

Orfeu

 

Seus jardins secretos

Eram assim povoações

De outros corpos

Que lhe atingiam os órgãos

E os desmembravam

Um a um,

 

Pequenos coágulos

— Luminescências —

Seus minúsculos grãos

Evanescentes...

 

Como nas fantasias infantis.

Os Seres nas palmas das mãos,

Canções em fuga...

Andante allegro.

 

Estava tão dilacerado

Mas não percebeu

Tanta era a música intensa

que sentia

Tanta era a sede

que bebia

Nas taças bacantes

Fora do eu.

 

 

 

 

 

 

Prometeu Agrilhoado

 

Se pudesse, curaria as hemorragias da tua pele

Antes que os abutres chegassem

Se me fosse possível, entregar-te-ia férula e fogo

Faria de ti o meu demiurgo

Mas não te alcanço nessa rocha escarpada

Nesses espinhos incrustados no teu flanco.

Nosso último ato depois do coro

seria um canto de cisne:

uma paixão sem Fênix.

 

 

 

 

 

 

O tempo

 

Quando se sabe ser o tempo tão tarde?

Por que o acontecimento arde

Anos-luz depois

ferindo a íris  opaca

pelejando sobre a pele irreversível

crestando a alma assombrada?

A eternidade é tempo

Para se conjugar maldição.

Por que não poderia ser o agora, duração?

Agora sei de outras plagas, noutro mar...

Meu navio há muito zarpou

e meu corpo não pode voltar.

 

 

 

 

 

 

Turbilhonares

 

Deslizes deslizes deslizes

nesse passo assombrado

entre o solo e o nada

como se pisasse filigranas minúsculas

do livro invisível que nunca cessa

silêncio

deslizes deslizes deslizes

a lisura do que está se perdendo

nonsensmonsensnonsensnon

cessa

onde as letras desse universo?

silêncio e a lisura del Blanco em

ojos ciegos y fuegos 

cenderos ascendendo

deslizesdeslizesdeslizes

 

"RIEN

De la mémorale crise ou se fût

l'evenement..."

 

 

 

 

 

 

Desertos

 

chove nos desertos

inundam-se areias

os olhares dentro da caravana

corredores na tempestade

com suas vestes negras

úmidas bolhas de suor

essas paragens rimbaud

essas visões gangrenas do espaço essas músicas oscilando

abruptamente nas peles de lagartos descamantes

sob ondas solares

essas pernas atravessam abismos E abissínias em carne

viva e trilhas lisas como portais nômades parando em ferlinghettis

esdrúxulos em sombras de chicanos na high way sixsix

esses peyots argentinos nas dobras de perlonghers absurdos e

 essas escrituras leprosas carcomidas on the road

um sopro enche as páginas do livro de areia crispações de vozes

                                                                            [veladas do

abismo da noite que devora  e estilhaça vozes sem nome só ecos e

                                                                                [ritornelos

xamânicos nos desertos americanos na feitiçaria que recolhe os

                                                                            [restos na

caatinga. Coros. Gangrenas do deserto no Brasil entre caboclos e

                                                                                   [índios

curandeiros. O deserto dentro da noite.

O abismo dentro do vazio augusto

miserável dos anjos da Paraíba.

 

 

 

 

 

 

João da cruz

 

os mal vestidos da maturidade

os vermes os rotos

as flores do esgoto escoam entre mãos pegajosas:

 

quantas tuberculoses assolaram a poesia

tantas sobrevidas: as flores do tédio, flores malsãs      

visões do futuro em pétalas carcomidas

sons ecoando nessas imagens:

 

Blues e Sousa

A plena claridade em negros versos

incensos de âmbar e almíscar e opium

Afrorientemente conduzindo os bárbaros corcéis de Delacroix

 

Tal qual um calígrafo assinalaria hieróglifos em tua pele

com  o sangue de serpes venenosas e beijos lascivos

para que outros versos assinalados

possam alcançar tuas agruras e ânsias.

 

 

 

 

 

 

Rosas

 

As pétalas do seu sexo

Abriram-se em Respiração

Um Quasar em Pulso

Relâmpagos

A Boca Entreaberta

Em Êxtase de oração.

Desabrochava

Em mantras.

 

 

 

 

 

 

Paolo e Francesca

 

 

"And who by fire?

Who by avalanche?

Who for his greed?

Who for his hunger?

Who in solitude?

Who in this mirror?"

Leonard Cohen

 

 

Eles perseguiram-se

Chegaram perto demais

Perdidos em abismos de ânsias

Provariam o deleite da errância

e veriam céus na escuridão.

 

Mas só desejavam os toques

O roçar entre pelos e mãos

Nem era a ausência dos olhos

a  provação.

 

Tateavam-se obcecados, cegos, sedados

Eram sexos em fulguração:

as bocas os ventres braços incandescentes

e seus rostos esvaindo-se em Letes

no inferno da sofreguidão.

 

 

 

 

 

 

Olhar

 

Das três dimensões

Só conhecia a profundidade

Tudo doía em seu corpo

as ruas, as chagas da cidade

Tudo passava pelo rosto...

Em sua pele membrana ciliada

Doía o cancro da calçada

E  respirava o choro

Os gritos explodiam

Seus pulmões.

Caminhava

Walkwriting

Sem anestésicos.

 

 

(imagem ©diego rivera)

 
 

 

 

Ângela Vieira Campos nasceu em Beagá. É professora e pesquisadora das áreas de literatura, cinema e outras artes. É autora do e-book de poemas Canções dos Corpos (2009). Transita pelo CEFETMG-UFMG-UFJF e pelos demais espaços de ressonância da outra voz poética.