Studio | Thomas Demand | Germany | C-Print | Diasec | 184 x 355 cm | 1997 

 

 
 
 
 
 

  

Num desdobramento dos três aspectos da imagem — descentramento, desconexão com o aqui/agora e o trânsito entre os suportes —, reflexão importante de Antonio Fatorelli (professor da UFRJ, ensaísta, escritor e pesquisador de novas mídias), a complexa abordagem do "estranhamento" está relacionada às possibilidades dos dispositivos — os quais se apresentam como uma espécie de sintoma de um regime de visibilidade paradoxal que ao mesmo tempo parece se basear num dualismo não excludente (pelo menos tenta), que permite a miscigenação de práticas e conceitos —; à subjetividade (espaço de relação dos indivíduos com o meio externo, o mundo social, a dimensão cultural em contínua mudança, trânsito e conflito na atualidade) e à máquina (imagem síntese) no contexto contemporâneo na produção de múltiplos efeitos e sentidos diversos. Ou seja, afirmando e perguntando ao mesmo tempo, haja vista que esta é uma discussão ainda em aberto: até que ponto, de acordo com as práticas empregadas na fotografia e a contínua importância do virtual, afetam a questão da subjetividade!? Qual é o limiar, entre a natureza e o artifício, da imagem em relação à subjetividade contemporânea!? Que tipo de contaminação no processo de criação visual fragmenta ou não ainda mais a noção da realidade!? São perguntas afirmativas (paradoxo atual) que merecem uma reflexão mais ampla, não esquecendo também da questão dos simulacros e simulações na Cultura da Imagem Contemporânea, na qual o real é manufaturado a partir das imagens, sendo elas cada vez mais uma instância produtora desenfreada do real e uma nova referencialidade.  

O resultado é uma nova realidade para ser vista. Uma nova realidade híbrida, uma nova "fidelidade" artificial com o real. Neste "estranhamento", não se trata mais de uma necessidade vital "revelar" o real, pelo visto que essa experiência não é mais acessível, pois a construção da realidade visível já se faz através de um dispositivo já criado. A experiência do real implica também na incorporação e questionamento afirmativo das estratégias de visibilidade que tornam possível o real. Dependendo da estratégia adotada pode possibilitar pensar numa realidade que já não se dá a surpreender, um cotidiano inacessível a não ser sob a forma de uma imagem que promova ao mesmo tempo a experiência do "estranhamento" e um "efeito da realidade". Estamos diante de uma espécie de proposta estética de "alargamento e consciência deste novo real".

A ponderação faz um sentido essencial quando refletimos que o real vai muito além de "coisas" que nominamos e experimentamos de maneira empírica. E ele, o real/natural, é a base, o estatuto primordial, de onde nascem todas as outras "coisas". Todos os outros signos, sensos, sentidos e significados, num processo atual e contínuo de interações/colisões híbridas dos três paradigmas. Ou seja, dentro do conjunto proposto por Lucia Santaella e Winfried  Nöth, digamos que vivemos num mundo cujo meio de produção e representação de imagem é uma expressão da visão via mão (Paradigma Pré-Fotográfico), autonomia da visão via próteses óticas (Paradigma Fotográfico) e derivação da visão via matriz numérica (Paradigma Pós-Fotográfico). Porém, mesmo com a virtualidade, sua "fidelidade" e "vocação" ilusionista da mimese, observa-se que ela, a virtualidade, a partir da evolução técnica está colada ao real, busca de alguma forma "servir" ao real. Busca de outra forma o "efeito do real". Todavia, não podemos ficar somente no "tecnicismo da tecnologia", mas temos que ter esta noção dupla da realidade (que nasceu com a fotografia e se desdobrou via cinema, internet, etc.). Em outras palavras, temos que ter esta noção da mistura entre o real e o irreal, fazer os intercâmbios necessários e abrir um caminho no hiato entre o mundo e a imagem, para não cairmos de vez (se é que já não caímos. Uma grande maioria, sim!) numa visão e consciência totalmente fragmentada do próprio mundo.

Neste "estranhamento", em meio à natureza e o artifício, no limite da apresentação de algo novo, preservando as singularidades que diferenciam as contemporaneidades com as experiências do Modernismo, o que está em diálogo remete (fato que também se dá pela experiência do olhar do espectador e sua subjetividade estética de espanto) às obras dos futuristas, dadaístas, surrealistas e do expressionismo abstrato, em especial à action painting. Essas quatro vertentes acentuam, em especial o futurismo e o surrealismo, o uso de técnicas artísticas baseadas na representação inovadora de um outro tipo de realidade, ao mesmo tempo em que sinalizam percepções estéticas híbridas. Em suma, pelo "estranhamento" possibilitam novos dispositivos, artifícios e possibilidades visuais. Abaixo, cinco obras do Modernismo exemplificam o diálogo expansivo necessário das artes (aliás, as contemporaneidades são campos expansivos, principalmente nas artes plásticas/visuais) acerca das questões afirmativas levantadas:

 

1.  Umberto Boccioni, Pintura "Estados da Alma nr. 1. As despedidas", 1911, Futurismo: o "estranhamento" da pintura de Boccioni é pura exaltação do movimento de uma estação de trem, através de formas dinâmicas e fragmentadas. Observa-se uma fragmentação permanente, influenciada pela cronofotografia. Revitaliza o "estranhamento", um tipo de proposta que visa aumentar o intervalo entre percepção e reconhecimento, potencializando e refinando os efeitos abstratos da luz. Um tipo de abstração dinâmica, trânsitos com a fotografia e descentramento feita pela vibração de vários planos;

2.  Man Ray, Filme "O Retorno à Razão", 1923, Dadaísmo/Surrealismo: Man Ray apresenta raiogramas cinéticos nesta experimentação. O "estranhamento" em todos os sentidos é potencializado pelo trecho em que é focalizado o dorso/torso nu de uma mulher impregnado por jogos de luz e sombra na composição de imagens ilógicas e absurdas, na qual predomina a gratuidade e a improvisação. O contorno articulado com o círculo brotando das auréolas e mamilos, nada estático, é a transfiguração, ampliação do próprio conceito de colagem. Rotações e deformações, cruzamento de ilusões e mistura de operações em 360º;

3.  Jackson Pollock, Pintura "Murral", 1943, Action Painting: ao evitar o pré-estabelecido num fluxo ininterrupto de ação, Pollock rompe com a racionalidade. Ao mesmo tempo em que o gesto espontâneo salta de um lado para outro sem encontrar um ponto principal. O "estranhamento" está em todo o processo de criação desta obra abstrata expressionista;

4.  Raoul Haussman, Fotomontagem "ABCD, Retrato do Artista", 1923, Dadaísmo: recortes de fotografias e outros papéis (de)organizados de maneira aleatória, subvertendo o espaço tradicional da fotografia. Haussman realiza o "estranhamento" ao misturar várias visões incompatíveis sobre um mesmo suporte, desconexando a estrutura simbólica cubista;

5.  Joan Miró, Pintura "O Carnaval dos Arlequins", 1924-1925, Surrealismo: encontro do real e o irreal na pintura de Miró. O "estranhamento" aqui é uma libertação, desconexão radical, traduzida numa visão fragmentária de um mundo agitado, de sonhos e fantasias. Um dos melhores exemplos do "estranhamento" como sintoma de um regime de visibilidade paradoxal.

 

 

 

dezembro, 2010

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).
 
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