arthur bispo do rosário (1909 ou 1911-1989) | detalhe da fotografia estilizada de walter firmo, 1985

 

 
 
 
 

  

"Quando uma obra apresenta diversos pretextos, muitos significados e

sobretudo muitas faces e muitas maneiras de ser compreendida e

amada, então certamente ela é interessantíssima, então é cristalina

expressão da personalidade". Anceschi

 

 

O século XX, pródigo com o progresso e a velocidade, tem sido de estrema receptividade com os aspectos primitivos da expressão humana. A razão dessa tendência instintiva a positivar o homem em sua rudeza expressiva advém, em boa extensão, dos caminhos de conhecimento abertos pelas teorizações sobre o inconsciente levadas a efeito por Sigmund Freud.

Não seria um exagero afirmar que este é o século do inconsciente, tal o vigor com que o homem passou a exercer seu ecletismo sobre os seus próprios meios de expressão e sobre o repositório de (auto)conhecimento, que se alarga entre a dúvida e a certeza. Ainda mais verdadeiro seria dizer que o século XX inaugurou um novo período sobre o indivíduo e este, em suas idiossincrasias e contradições, realizou sua nova história na medida em que fez nascer uma nova concepção de homem.

A história mostrou, durante séculos, que o ser era feito da dualidade entre finitude do corpo e a grandeza sublime da alma. Esta, uma entidade sutil, intangível, mas possibilitadora de uma felicidade suprema, impalpável à experiência concreta da existência, pois que só realizável com a morte. A alma, em sua imortalidade, abasteceu e animou o corpo perecível com a diretriz dos valores do prazer, acenando com a infinitude do gozo para a curta passagem pelo "vale de lágrimas", esse rio sem limites, de direção ignorada, por onde navega a dor necessária e onde se afogou o amargo desprendimento da carne.

Com o inconsciente revelado, o corpo, pátria da vontade dominada pela alma histórica e onde se esconde o instinto, foi também exposto pelo avesso. Não o reverso da forma, mas o lado também sugestivo, escondido e no qual moram as paixões, a vontade e o ser que escolhe, verdadeiro e único.

O experimento artístico, como um caleidoscópio, exibe o homem eterno em sua imediatidade. A arte é um dos fenômenos especulares do ser e das épocas. Nela está a expressão da totalidade do homem e por isso é um agregado fundamental para o entendimento da experiência humana pretérita. A experiência profunda do artista transita pelas obras, e estas são recursos para o conhecimento dele, das épocas, dos anseios gerais. Ieronimus Bosch (1450-1516) revela, em cerca de 40 pinturas a ele atribuídas, uma iconografia perturbadora, na qual o ser medeia entre o bem e o mal. Sua visão aterradora e original da existência coloca a nu a simbologia de sua época. Juntando do onírico ao real, fazendo da natureza uma representação distorcida, do mundo intocado do Renascimento uma experiência assustadora, conjuga a dureza do sonho à concreção da realidade. Desconcertante, Pieter Brueguel (?1525-1569) faz de sua paleta a expressão do desatino em Dulle Griet ou Margarida, a Louca (1562), dentro do período em que a razão  clássica grega se impunha como verdade para que o saber entronizasse o homem como centro do universo.

Bispo, esse quixotesco ser em luta contra a realidade asilar, como um Sísifo cristão, abre sua época a outro prisma para a interpretação, que não aquele da formulação artística, apenas. Lê o pecado, essa entidade moral fundadora da crença histórica na alma como redenção do ser, e tenta uma nova taxonomia do universo. Não a do demiurgo, concreta, mas uma gramática se não uma classificação do universo por meio de representação. Bispo é o ser da expressão pura, por isso, um artista. Seu primitivismo é original, embora não inédito.

Modernamente, as vanguardas pós-impressionistas e o experimentalismo artístico subseqüente objetivaram o despertar dos caracteres da primitividade e do inconsciente, como forma de se abastecer e renovar uma nova estética em fundamentação. Ao fauvismo e ao expressionismo coube a tarefa de fecundar no procedimento artístico uma forma gestual, livre do desenho e com liberdade das cores e temas. Estes deixaram de ser aqueles clássicos, como a morte, o amor, o absoluto, para ser o cotidiano com sua carga de expressividade inclusive das perturbações individuais. A aparência expressionista, em grande porção, é a revelação de um novo homem, não mais subjugado pela necessidade de inibir as suas vontades e paixões em nome do dever. Não mais cindindo entre o mundo da cultura e do que poderia entender como o espaço da natureza. Ele é ser pleno, e aquilo que lhe é marco profundo brota como possibilidade de expressão universal. Nesse sentido, é esclarecedora a presença renovadora de Henri Rousseau, Le douanier, nas exposições impressionistas, como possibilidade da nova formulação estética nascente em sua época. Um autodidata incorpora ao mundo civilizado da arte a expressão natural do homem, sem o caráter civilizatório das academias. Agregue-se a isso a descoberta da art négre, da cultura tribal, pelos experimentos pessoais de Gauguin, um dos precursores do estudo do primitivismo na arte moderna do Ocidente, tanto como temática quanto como ineditismo na inserção de fragmentos da forma primitiva como agregados do quadro.

As vanguardas históricas fizeram a apropriação desses elementos trazidos para a cognição e fundamentaram um novo corpo de conhecimento para a arte moderna em que se positiva a expressão livre da vivência e do pensamento do artista, mais a liberdade de escolha do estoque de materiais sobre os quais quer transitar a linguagem. A liberdade modernista abriu caminhos ao experimento como expressão, relegando ao passado a forma rígida determinada pela ciência do gosto e do estilo. O artista está à mercê de sua vontade na formação de sua cultura expressiva.

A sustentação de Arthur Bispo do Rosário como artista só é possível graças aos amplos caminhos da expressão, abertos pelo experimento da arte do século XX. No cenário de conjunções do saber que hoje se apresenta, Bispo surge como um aglutinador de teorias, um referencial concreto,um ponto final que permite reticências, sobre as quais se podem estruturar desdobramentos teóricos do fazer artístico. Faz da loucura possibilidade de produção de novos conhecimentos sobre a natureza humana e, finalmente, sobre a capacidade latente que o homem tem de criar representações.

Com Bispo, a rasura se faz acabamento e a imperfeição se instala como paradigma. Assim pensando, não seria abuso afirmar que o inconsciente revelado por Freud, mais sua relação intrínseca com o corpo, sem fendas e sem rasgos, é a alma do século.

 

 

 

junho, 2010

 

 

 

 

 

Jorge Anthonio e Silva (São Paulo/SP). Jornalista, pesquisador, escritor, ensaísta, curador, crítico de arte, professor universitário, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e da ANPAP (Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas). Doutor em Comunicação e Estética (PUC/SP) e pós-doutor em Artes pela Universidade de Salamanca, Espanha. Autor de Arthur Bispo do Rosário: arte e loucura (São Paulo: Educ/Fapesp, 1998; 2ª ed. São Paulo: Quaisquer, 2003), Naïve Painters Brazil: Ivonaldo (São Paulo: Empresa das Artes, 2002), O Fragmento e a Síntese (São Paulo: Perspectiva, 2003), A Torre de Babel de Valdir Rocha (São Paulo: Escrituras, 2007), Wega Nery (São Paulo: Pantemporâneo, 2009) e Jornalismo Cultural: apontamentos, resenhas e críticas sobre artes plásticas (São Paulo: Pantemporâneo, 2009).