pablo picasso | copo e garrafa de suze | 1912| papéis colados, guache e carvão | 65 x 450,2 cm
washington university gallery of art, st. louis, usa | aquisição da universidade kende sale fund | 1946

 

 
 
 
 
 

  

O Cubismo, no começo do século 20, além de ser um movimento — a arte de concepção que discute a estrutura da obra de arte em si —, representa uma mudança e postura radical em relação à perspectiva. Sob vários pontos de vista (tanto em relação à perspectiva e enquanto movimento), rechaça a decoratividade e dialoga com as estruturas das pinturas de Cézanne (cambiantes, na qual a perspectiva é tratada de modo geométrico — pinceladas geométricas — reelaborando o conjunto do espaço/suporte, que não deixa de ser um ato de reflexão estética que já começa a introduzir de alguma forma o espectador na produção de significados e sentidos), estabelece conexões com as abstrações geométricas (esta palavra é essencial para o Cubismo), inventa as colagens e vai além ao reegerminar as simbologias do primitivismo africano, além da arte egípcia (devemos lembrar que o Cubismo teve várias fases. Para efeito de estudo é conveniente utilizar dois termos: Cubismo Analítico — movimentos dos planos e a relatividade — e Cubismo Sintético — fragmentação, recortes e a introdução de colagens). A questão fundamental é transformar/reelaborar o tridimensional (altura, espessura e profundidade) no espaço bidimensional. Novamente a questão do espaço moderno (enquanto suporte, e, também espaço imaginário de quem cria e de quem observa: que interage com a obra. Estabelecendo uma outra realidade imaginária. Um conjunto de aparências e montagens, fazendo nascer toda uma gama de relações e percepções estéticas mais elaboradas), passando de uma fruição e representação mais estática do passado, para uma outra: relativa. Mais expansiva, compreendida na ordenação geométrica e, numa necessidade de comparação, não mais centrada na representação da anatomia (seja de corpos e/ou objetos) naturalista. Justaposição de perspectivas. Descentrar a percepção. Espaço multifacetado. Pois os pontos de vistas e ângulos internos/externos deslocam a relação figura/fundo no tempo/espaço. Uma conseqüência é a construção em fluxo contínuo e seu efeito de duração ampliado, passado/presente/futuro imersos na obra. O Cubismo é uma arquitetonia de criação complexa que se abre às múltiplas interpretações.     

A evolução estética da obra de Picasso foi geométrica. Por outro lado, com o advento do Suprematismo (e seu manifesto incisivo) na Rússia pré-revolucionária, também no começo do século 20, temos as bases de outra mudança radical, que revela semelhanças com as idéias de Picasso e Braque, pois rejeita radicalmente a mimese realista: o Construtivismo. Autores, estudiosos e críticos estabelecem que o Construtivismo (e seu geometrismo absoluto, arte não-figurativa, construções potentes concentradas no rigoroso princípio do essencial, metódico e racional, coerente com a nova era científica) inspiravam-se no Futurismo e no Cubismo. Creio que a palavra pertinente e mais plena de sentidos seria relação, uma relação de sincronicidade, relação de trocas de idéias, convergência de projetos e signos sob o espírito da urbanização e tecnologia moderna. Neste processo do mundo em marcha acelerada, duas pessoas essenciais do Construtivismo no cimena foram Eisenstein e Vertov, sem deixar de mencionar o pioneirismo de Kulechov. No cinema, como todos sabem, a montagem adquire importância fundamental. E não poderia deixar passar batido as seguintes palavras, de maneira veemente, um comentário de Glauber Rocha: "Montagem significa, como foi escrito por Eisenstein, a ligação de todas as estruturas da realidade. Montagem significa uma relação dialética entre os vários elementos que constituem o filme1". Glauber define Eisenstein e parte da escola russa como estruturalistas: cinema de obra integral, construção na qual interage música, teatro, literatura, artes plásticas, matemática, arquitetura, etc., num sistema e poética própria. 

Einsenstein e Vertov, além de consolidar a técnica e a metodologia da narratibilidade cinematográfica, teorizaram sobre aquilo que é a essência e alma do cinema: a montagem. O conceito de montagem como a produção de significados se dá pela sucessão de planos cinematográficos. Em torno da montagem temos um dos maiores confrontos da história do cinema (confronto fértil): os cinemas e idéias de Einsentein e Vertov. Einsesntein: sintético. Vertov: radicalização do movimento. No caso de Vertov, também a radicalização baseada numa extensa rede coletiva de colaboradores. O interesante é o que Vertov chama de "cinema-olho" (base da sua montagem),  que não deixa de ser um método de decifração do mundo, ao trabalhar tanto a recusa dos objetos de maneira imediata quanto qualquer traço ou essência espiritual. Os experimentos de Vertov são mais vertiginosos e inorgânicos que Einsenstein, sendo formalista, porém trabalhando as inversões temporais de projeção, alterando e ao mesmo tempo congelando a imagem, através de sobreposições, animações e justaposições, variando o ritmo e angulações. Vertov experimentou de quase tudo no início da década de 1920. Cujo amadurecimento em 1929 se traduz em O homem da câmera, na qual a reflexividade e presença constante do "homem da câmera", abordando e filmando tudo e a todos, bem como as aparições da montadora, transmite o processo de construção do filme como algo feito de maneira consciente e múltipla: coletiva. Transparecendo de alguma forma uma espécie de propaganda dos ideais da Revolução de 1917.

Por outro lado, Copo e garrafa de Suze (Pablo Picasso, 1912), imagem acima, papéis colados, guache e carvão, é uma das primeiras colagens/montagens de Picasso, num conjunto seriado com o uso de papel-jornal, desenhos e carvão, que remetem aos conflitos nos Bálcãs. Picasso refere-se aos acontecimentos da época (mistura dos fatos do cotidiano para se dirigir ao contexto de cisão e guerras na Europa) com os recortes de jornais, que se alastram por mais da metade da composição, envolvendo um outro papel azulado e ovalado, exprimindo uma representação e profundidade não-ilusionista (não deixa de ser uma experimentação) sobre a tampa de uma mesa. Observando melhor a escrita do jornal (que na composição é o fundo formal, um fundo formal por assim dizer figurativo e configurativo de narrações da linguagem jornalística da época) ao lado do famoso aperitivo Suze, um copo e sua sombra preta que estão centralizados, temos uma combinação de signos visuais e verbais (pois existem letras) em justaposição e deslocamento dos acontecimentos dos mundos público e privado tanto a exploração formal quanto na multiplicidade de referências tanto da vida cotidiano, cuja esteticidade converte o caminho do espaço bidimensional para o tridimensional do espectador. Estatuto de uma nova arte que remete a própria interpretação e imaginação do espectador. Todavia, uma vanguarda às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Eis o espaço geográfico no jogo perceptivo dos elementos tanto da obra em si quanto na deflagração dos acontecimentos do mundo real.    

Ponderando e apresentando as questões preliminares, an passant, nos quatro parágrafos anteriores sobre a colagem e montagem, vem uma exclamação e interrogação que faz sentido: não seria a própria montagem um processo de desmontagem da realidade em prol de uma outra montagem, abalizada pela pregnância plena do imaginário!? Eis o sentido fundamental, que colaborou para a liberdade formal e maiores possibilidades de reinvenção e abertura da estrutura da obra de arte. No caso, trata-se de um processo dialético e moderno na articulação de percepções complexas de criação visual. Cujos procedimentos subvertem a lógica da realidade, abstrações, instaurando o espectador como um dos elementos de interpretação e necessidade de realização de sentidos no jogo e processo perceptivo dos vários elementos envolvidos na produção das imagens. Focalizar aspectos essenciais, produzir significados, mesmo com experiências visuais em distintos suportes e linguagens, com a prevalência do olhar e leitura estética, convergências e divergências, na construção do conhecimento e pensamento.

 

 

raoul hausmann | fotomontagem/colagem | 40,6 x 28,6 cm

museu nacional de arte moderna | centro pompidou, paris

 

O papier-collé de Picasso (Copo e garrafa de Suze, 1912) lembra uma natureza-morta (que não tem nada de morta) com doses de cor e movimento em razão dos papéis, no qual o motivo principal está centralizado, ampliando um fundo formal de recortes, que parece recuar, projetando as cores azul, branca e preta. O deslocamento/decomposição ocorre na sombra preta em contato com o azul, realçado pelo branco que se rompe, abrindo-se ao nome/rótulo do aperitivo. O nome do aperitivo e o copo sofrem a indagação de como o próprio copo e a garrafa são vistos na pintura. No caso, são definidos pelos contornos, ocasionando a justaposição e deslocamento simbólico. A exploração formal é meio cifrada, repleta de recortes de jornais, impressos passageiros e até um papel de parede. Cheio de referências. Picasso parece questionar o estatuto da arte do período, substituindo-a por uma idéia da arte como imaginação, dotada de certo mistério, utilizando outros meios que não a tinta para celebrar a pintura como um jogo de olhar/palavra/imagem.  Eis o espaço moderno como o espaço ou teatro também de operações para tematizar a imaginação, chamando os espectadores para "pertencerem" à obra, através do olhar e a produção de sentidos diversos. A fotomontagem/colagem ABCD (1923/1924) de Raoul Haussmann, imagem acima, ligado ao Dada Berlim/Berlim Dada, tem como elemento centralizador as letras saindo da boca do artista. Ou entrando... Algo em comum com o papier-collé de Picasso. Todavia, a composição de Haussmann é uma espécie de auto-retrato, não existindo um espaço unitário vinculante, na qual a fragmentação da realidade, perspectivas e elementos gráficos decompostos funcionam como um redemoinho e diálogo com outras obras de Haussmann, especificamente os poemas "optfonéticos", uma combinação da expressão fonética acústica com a expressão gráfica. Interessante a letra V, que remete a voz na língua italiana. Tal letra parece dizer e realçar, haja vista que na fotomontagem não temos como ouvir a voz, que o artista usou de todos os expedientes possíveis através das letras para deslocar o signo para outra dimensão, no caso a dimensão da fala. O exotismo da fotomontagem, na sua anarquia e negação pode até remeter ao mundo dos sonhos (talvez até um certo diálogo, ou antecipando o Surrealismo, pois as datas coincidem com o Primeiro Manifesto do Surrealismo de André Breton no ano de 1924) ou também às colagens de Picasso, porém em outro nível. Pois a questão do movimento é fundamental nesta fotocomposição de Hausmann, que lembra de perto algo relacionado com o Futurismo muito mais que o Cubismo, pois na década de 1920 convivia em Berlim a poesia expressionista alemã. Haussman conviveu/convivia com Augusto Stramm, grande poeta expressionista. Traduzindo, o realce do auto-retrato ABCD estampa a subjetividade do artista, uma subjetividade em meio a diálogos, narratibilidade descompassada, contaminações e influências das mais variadas vanguardas. Dada gosta de movimento, crítica, contestar símbolos e mistérios prolongados...

 

 

 

Referência

 

1 ROCHA, Glauber. O Século do Cinema. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1983.

 

 

junho, 2010

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).
 
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