Le Demoiselles d'Avignon, Pablo Picasso, 1907, Óleo S/Tela, 243,9x233,7 cm, MoMA, Nova Iorque

 

 
 
 
 

  

No início, temos a questão da mimesis, temática muito importante para as reflexões do modernismo. E no seu desdobramento, passagem, convívio e uma certa amálgama dos paradigmas pré-fotográfico e fotográfico (idéias brilhantemente trabalhadas por Lucia Santaella e Winfried Nöth), observamos Cézanne decompondo a composição. Seurat, a visão. Van Googh retira as cores do seu estado latente da realidade, elevando-as ao patamar da alma e alçando à dimensão transcendente. Gauguin simplifica, também decompõe e ao mesmo tempo realiza a forma impressionista em grandes planos (observem o painel De Onde Viemos? Quem somos? Para onde Vamos?). Também o vigor, o caráter do esboço e a falta de acabamento. E o principal legado impressionista: pintar não aquilo que se enxerga, mas o que significa ver, sentir e perceber o objeto artístico. Matisse, em reunião com os fauvistas, já proclama a independência em relação à descrição objetiva. E o olhar interiorizado expressionista emerge na representação sentida pelo artista, muito mais que o conteúdo do real, sacrifício da composição à anti-composição, do desenho ao anti-desenho, da cor à anti-cor, inversão, agridem e denunciam as barbaridades da humanidade (além de O grito de Munch, interessante a sensualidade dos desenhos de Egon Schiele). E o Cubismo constrói uma nova forma de objetividade do real, analisando, deformando e retalhando o objeto.

Picasso pesquisa a arte primitiva, fica encantado, mas depara-se com as formas, figuras e fundos cromáticos exaltados de Cézanne, as quais procuravam converter o real em figuras geométricas. Conseqüentemente, profusão de relações que implicam em revisões, impregnadas de diferenciações, presenças e modos diferentes para representar a relação figura/fundo, como motor que separa, amplia e converge para um tipo de espírito realmente emancipador. Desta maneira, a autonomia estrutural da linguagem num quadro passa a apresentar uma coerência interna, totalmente independente da reprodução das coisas externas, não renunciando à representação, todavia a partir de uma tridimensionalidade do real em bases bidimensionais da superfície pictórica, configurando sua sintaxe interna, autônoma, dizendo que a prevalência é da abstração que preside e está contida naquele que criou e naquele que vê, na obra, e não no real empírico.

Em seus estudos não somente da arte primitiva, mas, e, sobretudo da arte egípcia, Picasso depara-se com outro tipo de imagem, em perfil e frente destituídos do fundo ou qualquer contaminação que faz lembrar o Renascimento. Isso possibilitou apresentar as imagens com suas três dimensões básicas (altura, espessura e profundidade) numa única superfície plana (bidimensional). E o mais interessante: como se elas pudessem ser vistas, ao mesmo tempo, por todos os ângulos. Observem este efeito em Les Demoiselles d'Avignon (IMAGEM ACIMA). Funda-se outra forma. Distorção do real. Não a exigente exatidão enquanto descrição, mas na experiência e atitude que produz a obra de arte. O Cubismo, por assim dizer é a base da arte moderna. O contorno interrompido no limite da fundição, fusão dos vários elementos no espaço. O abstrato configurando a interpretação de fundo e forma, que desembocará nas colagens (vejam a composição Guitarra de Pablo Picasso de 1913), outra grande contribuição. A profundidade rasa desloca fundo e forma, distorcendo uma guitarra em várias outras. Ao mesmo tempo, o Futurismo bebe na representação cubista para realçar o dinamismo moderno, estabelecendo através de um manifesto uma visão/relação utópica de progresso, desafiando meio mundo (foi o Futurismo que colocou o Cubismo em movimento); deparamos também com outro detalhe muito importante além da fotografia, que foi a expansão da luz elétrica. A luz artificial criada pelo homem, remetendo que as noites e os dias não seriam os mesmo para a humanidade. Creio que este entrelaçar de artistas, movimentos, luz natural, luz artificial, são luzes importantes que remodelaram a relação do homem com o homem e do homem com a arte. Também da arte com o próprio homem.

Essa nova forma no espaço moderno — não esquecendo Kandinsky que pintou sem qualquer referencialidade externa, que desembocará no Surrealismo e suas configurações insólitas, também na Pintura Metafísica de De Chirico; sem falar no Dadaísmo  (suas provocações, montagens e iconoclastia), liberando mais ainda o inconsciente e corrompendo a lógica — relativizou tudo. Estabeleceu uma nova visão de mundo. Uma outra forma de representar, ver, observar tanto a figura humana quanto o que está em volta dela. Figura humana, pintada ou em forma de escultura, que cria representando, enquanto ser pensante, crítico e vivo na história.

O elemento central é a realidade e a sua subversão, heterogênea e possibilidades de leituras diferentes, sentidos, efeitos e contaminações de um novo tempo, de um novo século que está nascendo, o século 20. Em outros termos, no espaço moderno encontramos uma constante mistura das coisas reais, exatas e inexatas, num momento histórico estratégico e de revisão do passado, no qual a subjetividade artística realça uma certa alteridade e não a manipulação e ditames de uma ordem imposta. Esta questão da subjetividade é importante, pois se por um lado no mundo do trabalho temos o começo da produção em série e as especializações das profissões, por outro viés, aparecem diversidades de interpretação, novas perspectivas e relações inventivas com o tempo, os objetos e o próprio espaço. O indivíduo mesmo dentro de determinada coletividade, tem e luta pelo seu processo de pertencimento, mas ressalva os seus valores, modo de ser e exprimir a sua singularidade.

A dialética no moderno faz do espaço da tela o seu problema, seu campo de tensão. E dentro desta tela, chega-se a conclusão que o artista não pinta e colore mais o real, ele está dentro e participa desta realidade. Eis a autonomia em relação à racionalidade científica. A tela é a superfície na qual o artista pensa e relativiza o ser perante mundo, e, ao mesmo tempo imagina um outro mundo. O mais importante é a ação: pintar. A cor apresenta-se autônoma e o artista integra a sua personalidade na obra. Ele pinta a sua própria liberdade. O olhar moderno na sua relação figura/fundo é um lugar de contradição, reflexão, certezas, dúvidas e sonhos. Ao mesmo tempo em que temos a transformação do mundo pelo movimento automático da máquina (Futurismo e depois o Construtivismo), observamos também a crítica desta ideologia de progresso tecnológico (com o Dadaísmo, Surrealismo).   

O Cubismo trabalhou pela análise ou decomposição do objeto. Estudos e mais estudos. Para recompor a realidade, utilizaram-se na linguagem plástica os fragmentos mais significativos. Divisão geométrica do fundo, no qual a figura humana aparece imersa num sólido geométrico cheio de facetas, reesquematizando o volume da composição. Reelaborando um novo ritmo interno, "assassinando a anatomia", com bem observou Apollinaire. Dentre as várias fases do Cubismo, nítida é a indignação pelo convencionalismo ao introduzir letras, colagens de papéis, jornais e outros materiais para comunicar a presença viva do artista. É o sentimento singular de desprezo perante o mundo.

O que podemos a partir do Impressionismo, Expressionismo e o Cubismo em especial inferir (ou tentar descobrir) de modo radical (talvez uma generalização extrema com algumas doses e pitadas dos seus opostos particulares e especificidades, é claro!) sobre a relação figura/fundo (as figuras já se apresentam em grande escala com pessoas "normais", não oriundas da nobreza, inclusive boa parte dos artistas que atiçaram fogo nas ventas da época), no âmbito social/cultural seria além dos alarmes às tragédias da guerra, interligações com a literatura, o teatro e o cotidiano (também a fotografia), a livre associação da forma, e algo como as distorções e fragmentações no plano histórico (urbanização, crise política, econômica e social) advindas de uma burguesia organizada no alto dos seus impérios (antes, durante e depois das guerras) e o restante, para não dizer massa (de manobra, pode ser!?), no sinuoso labirinto da sobrevivência (a magreza da escultura de Giacometti remete a esta idéia). Ou na invenção e propagação do cinema, parecendo dizer que a arte do povo é o cinema (também o circo!), ficando as "belas artes" condicionadas aos mais cultos, soberbos, ricos e classes dirigentes. Abaporu e o seu grande pé mulato e bico tendo ao fundo o sol/cactus é o telúrico que demonstra a brasilidade da turma de 22 e seu desejo de duglitação da cultura vinda de fora; e as putanas de Toulouse-Lautrec, de maneira magnífica, dignificam a valorização das "cobiçadas" na estranha atmosfera do fundo impregnado de taras, temores e carências ocultas. Seria uma aproximação das classes usadas como motivos para a distorção, na qual todos necessitam de uma cadeira!? No bidimensional tudo é possível, pois o plano é um só. Tudo nivelado, aplainado, no conjunto de transformações do mundo da época. Ao mesmo tempo em que revela o distanciamento de classes, motiva no moderno uma suposta aproximação no plano da construção e idéia de movimento. O sujeito dentro de uma cultura: o artista inventa uma certa noção do belo nas amarras de sua realidade interior com o mundo exterior, para dar o sentido principal nesta relação dialética, que busca o novo e o seu espanto. Creio também que parcela do novo é tentar aproximar estas diferenças, incorporar as contradições do desenvolvimento; e a distorção é um recurso magnífico para uma convivência penosa e complexa.

A arte é um conflito, também um problema, e necessidade permanente de criação, conhecimento, ilusão, analogias e desconformidades. No caso do moderno, a mimesis participa dentro de um novo contexto, cuja referência visa (re)formular os próprios símbolos numa contínua expansão e influência no jogo de linguagens, disposições dos elementos "representados" numa imagem com seus códigos intrínsecos. Uma relação figura/fundo dotada de leituras recorrentes, não absoluta, repleta de orquestrações condicionadas pela abstração. Que revela uma versão da relação do estar presente do homem no mundo, pois o moderno é um pensamento sobre a visualidade, num momento histórico rico e conturbado ao mesmo tempo, o qual necessitava de uma explanação estética consistente para comunicar a principal "figura" construída pela civilização ocidental: o sujeito em seu estado de liberdade criativa. Não sei se os artistas pensavam assim, mas é uma constatação que não pode passar batida. A qual, acredito, irá de encontro à própria emancipação da subjetividade (consciente, inconsciente, corpo, cabeça, troncos, membros, etc.), que muitos teóricos afirmam vir lá de trás, de Descartes. Eis uma tentativa de estabelecer conexões com a arte moderna, marcada por rupturas e (re)cortes com a história, pois a arte de certa forma imita — de novo a mimesis, porém noutro patamar — realidades imaginárias ao tentar estabelecer novas relações simbólicas com a vida e o mundo, e gira também (não podemos esquecer deste novo detalhe) em torno das subjetividades dos vários artistas inquietos dos três movimentos.     

 

PS: são vários os sentidos para a palavra forma. Gosto de trabalhar uma fusão de Rudolf Arnheim com Roland Barthes. Configuração visual do conteúdo como processo de interpretação do mundo... 

 

 

junho, 2010

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).
 
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