Poema à minha amiga que vai morrer no hospício

 

 

Tive armas e não dei um tiro

mas nossos filhos brincaram na grama

e comeram veneno

como se fossem flores

 

quem viveu muito tempo em hospitais

sabe que existem enfermeiras tão frias

que são capazes de nos aquecer de graça

 

degolar bonecas uma vida inteira

ensina a separar os amigos de

seus defeitos

domingos de seus propósitos

 

todo médico com uma cruz é um cachorro

e a humanidade já ruiu muito

pra que falemos com os animais —

o avô que te abusou costurava as

asas de um pássaro

 

ainda guardo fotos

seu sorriso de Fanny Fleury com

o bebê no colo

bafo de cachaça

o olhar de quem dizia

um dia você vai ser grande

e vai voltar pra dentro

 

 

 

 

 

 

Transformer

 

 

Sobre a carcaça da cidade

meus amigos

tanta sensibilidade

correm destituídos

de coragem

— por constituição —

suas almas de lavanderia

seus trabalhos de

Daiane dos Santos

— em toda cidade

há um ser que quer

tutano —

banheiros públicos parques

noturnos carne de suã

uma ode aos esquemas

perdidos

a avenida dos rostos

furados

em algum lugar

talvez no México que

há na cidade

eles se encontrem

e virem filhos

e borrem a maquiagem.

 

 

 

 

 

 

Abre

 

 

O tango dos meus olhos perdidos

uma harpa em tuas costas

a seca dos bons livros que lemos

e não lembramos de nada —

até teus pés meditam na chuva.

Nem que abras o mar vermelho

ou as pernas

nem que consertes meu tabuleiro

antigo de jogo do copo

nada que me digas

nada que atires sobre mim

vai me tirar desse deserto.

 

 

 

 

 

 

Quando paro pra encher os pulmões

 

 

Não é que as casas

só façam barulhos à noite

mas ganham voz

E os cavalos que correm

à noite

soam mais velozes

De madrugada pela varanda

vi uma mulher em seu

turno mais lindo

(era deserto)

ela fazia cooper

e acordava os mendigos

 

 

 

 

 

 

Romeu e Julieta

 

 

Romeu e Julieta passam as tardes

jogando par ou ímpar no templo ecumênico

quem perde tem que sair à noite

para caçar angostura

 

é o trabalho de formar estrada

dos bois

pintar paredes de

picho das fachadas de banco

ou igreja universal

 

Julieta olhar de conjuntivite

entendeu faz tempo

que ser leal ao ofício é o dever

de qualquer geração

 

Romeu, vencendo

jogos de azar,

sonha a tristeza dos príncipes

tédio de dona de casa

 

 

 

 

 

 

Amor

 

 

Ainda que ele

ligue de joelhos

o vento é um exercício

macabro

as esquinas transparentes

quando desequilibradas

 

Ainda que lhe

pegue na escola

o dialeto da morte

é comum

sorriso iminente

na boca dos que perdem

sempre

 

As serenatas existiram

um dia

e as cartas de amor

 

Ainda que ele

escreva cartas

lobos não são cachorros

 

não se encara

nos olhos

 

 

 

 

 

 

Apocalipse segundo os demônios

 

 

1.

Agora há uma verdade idiota correndo em suas veias. Ela para e sofre. Como um leão abatido. Meu filhotinho de leão abatido, eu grito, ela dá risada. Pobre do tarado. Pobre do que caça feias na TV. Meu filhotinho de leão abatido me morde e depois circunda a casa cheirando as paredes. No cemitério de cavalos, eu o peguei apagando cigarros no peito. Só mais uma vez, ele dizia. Meu filhotinho é tão ingênuo. Dentro dele está o bebê de Rosemary. Se nascesse hoje, nasceria no ano do macaco. Pobres os anjos caídos. Que caçam buracos pra se satisfazer.

 

 

2.

Estou sentado há dois mil anos. Dois mil anos esperando o mundo acabar. Tive cachorros e gatos. Uma lebre, certa vez, veio morrer aos meus pés. É agora, pensei. E não foi. Teve a bruxa que arrancou o meu pau. Era feia como o demônio, mas quando corria pelada na selva resvalava impune pra dentro da beleza. Na noite do corte, lambeu o fio da faca e de dentro da língua nasceu um pássaro - banhado em sangue, como os bebês. Tão pequeno, se aqueceu em minha mão. Mas cresceu rápido, e já era forte e voava. Deu três voltas sobre a minha cabeça. A bruxa tirou minhas calças e o grito que dei dizem que ninguém escutou.

 

 

3.

A solidão. Que piada.

 

 

4.

Um reality show culinário que não acaba nunca. Ninguém é mandado pra casa. Os participantes ficam lá cozinhando dentro do tempo das provas. Elas acabam. Eles são avaliados. Um ganha — uma gorda ou um chinês — e os outros são tão medíocres quanto o resto do mundo. A próxima prova vai ser difícil, diz o Chef. Quinze minutos pra se prepararem para a próxima prova. Eles ligam smartphones e consultam receitas. Ano após ano é assim, toda semana. Haverá uma morte com facas. Uma briga por sementes de tomilho. Eles vão envelhecendo, suas comidas vão ficando melhores.

 

 

5.

A mulher de Stênio Garcia, na noite em que vazaram os nudes, estava assistindo Mad Men. Fez questão de deixar isso claro na entrevista ao site de fofocas. Os nudes, então, ganharam outro aspecto. Se tornaram infinitos. Comprovaram, sem sombra de dúvidas, que o sentido da vida existe, mas passa despercebido.

 

 

6.

Deus foi dormir tarde e levantou cedo pois tinha que caminhar com seu cachorro Miguel. Se demorasse, o sol ficaria forte demais e queimaria as patas de ambos. Deus tem patas calejadas e aguenta até meia hora no solo fervendo, Miguel é que logo pede colo. Além do mais, Deus queria caminhar uma hora. Não escovou seus pelos nem afiou seus chifres ou lavou o rosto, tratou de dar logo a ração de Miguel. O cão estava agitado naquela manhã, corria pela casa e foi uma luta até que sentasse pra colocar a coleira. Quando Deus abriu a porta, só aí percebeu que chovia. Tirou a coleira de Miguel, que não entendeu nada, e conseguiu pegar no sono apenas pelo fim da manhã.

 

 

7.

Taibele e Sabine pintavam as unhas enquanto os gatos lambiam suas axilas. A gata de Taibele é Samsa e o gato de Sabine é Juanes. Nos sonhos, Taibele disse, gatos são representações de demônios. Essa noite eu sonhei que um demônio rondava nosso quarto, quando acordei, Juanes tava em cima do seu peito, e o rosto dele era humano. Meu Deus, que coisa horrorosa, disse Sabine, e o que aconteceu? Aconteceu que eu acordei de novo, disse Taibele, e Juanes nem no quarto tava. Samsa sim, que dormia na cesta de meias. Sabine deixou de pintar as unhas, deu um tapa em Juanes e foi até o quarto. Voltou com sua tesoura de corte e costura, parou em frente à Taibele, puxou um mamilo com o dedão e o indicador até que tivesse todo esticado e aí e o cortou fora. O grito de Taibele foi tão agudo que os gatos a imitaram. Já Sabine, ficou calada. Um conteúdo viscoso repleto de sangue começou a escorrer pelo seu novo buraco. Ela puxou o outro mamilo e o cortou também. Lá fora, dizem que o chão se abriu enquanto um bando de aves de rara beleza voava no céu sem nuvens.

 

 

 

 

 

 

São Cipriano

 

 

O que tu quer? Há um milhão de maneiras de pagar o aluguel, de não pagar só há uma. Você nasceu errada mesmo, com esses chapéus de brujeria e o grimório de São Cipriano. Quando te conheci, num mercadinho de Nova Petrópolis, tu tentava roubar Catuaba e fazia pouco caso de tudo - até a tormenta chegar. Agora ninguém vai te dar abrigo. A advogada me disse que só saio daqui com cinquenta e quatro. Quando teu pai bateu na nossa casa, finalmente carente, tu me implorou pra fazer ele ir embora. Talvez eu possa ter me empolgado, ele não vai voltar tão cedo nem ser achado tão fácil — o pior é que parecia um velho legal. Há um milhão de maneiras de pagar o aluguel e tenho certeza que ele não te ensinou nenhuma. Nem eu. Quando tá frio aqui, me arrependo por isso, ou lembro das tuas histórias sobre a bruxa de Évora. Nanaime era o nome dela e às vezes acho que é o teu, a própria bruxa de Évora. Na noite que os caras me pegaram, antes de eu fazer qualquer coisa, um mendigo me parou na rua e disse o teu nome, depois ele ficou puxando o brinco da própria orelha até abrir o lóbulo. Senti o vômito, ele seguiu com os olhos em mim e repetia Lívia mais de uma vez. Talvez foi só algo que eu sonhei. Eu sonho muito aqui dentro.

 

 

 

 

 

 

Wood Shakespeare

 

 

Eu lia esse gibi em que a caveira do cemitério se amarrava num monólogo. Era como Shakespeare, só que misturado com Ed Wood. Eu ria pra caralho assistindo Nós Jogamos com os Hipopótamos. Era bacana não trabalhar. Naquela época ainda podia aparecer uns peitos na Sessão da Tarde. O meu sofá fedia a suor. Eu fodia com minha mulher quatro vezes ao dia. E duas noites por semana ainda fodia com outra. Ah, sim, sempre acreditei em Deus. Saca só, meu crucifixo é do tamanho de um punho. E tem esse escapulário que minha vó me deu há uns vinte anos e ainda não arrebentou. O lance é que não consigo prestar atenção no que o padre fala. Eu fico olhando as mulheres, mães, filhas, porra, a igreja me dá tesão. Mas de noite eu rezo. Toda noite. Pai Nosso e Ave Maria. Sei Salve Rainha de cor. Não quero conversar com Deus. Eu falo essas frases que eu decorei. São as únicas coisas que decorei na vida. Minha memória é uma merda. Nem Detalhes do Roberto Carlos eu decorei e é a música mais linda que se pode ouvir nesse planeta. Não sei que diferença faz, provavelmente nenhuma, eu só penso as porra das orações antes de dormir. Que diabo interessa? Eu não entendo vocês, os ateus. Minha mulher, por exemplo. Sempre fica me olhando com uma cara de Que porra cê tá fazendo? quando eu começo a fazer o sinal da cruz deitado na cama. Aí eu acabo, faço o sinal da cruz de novo e durmo.Ela deve ficar lá pensando: Mas que cara cheio de merda...

 

 

 

 

 

 

Suzy e ele

 

 

Suzy acordou cedo e me acordou assustada. Tinha visto ele em um de seus sonhos. Ele era a morte ou a loucura ou alguma coisa dessas que Suzy nunca conseguiu me explicar. Antes de eu falar qualquer coisa, o bebê chorou no outro quarto. Quer que eu vá?, perguntei, Quer dizer, não sei se ele precisa comer ou sei lá, quer que eu traga ele aqui?

 

Deixa ele chorar, ela disse. Abriu a gaveta do criado mudo e tirou um terço lá de dentro, a droga de um terço, e começou a rezar. Tentei fechar os olhos e dormir, o bebê seguia se esguelando, mas o pior era aquele murmúrio de reza, uma meia hora se passou. Viu, ela disse, eles param de chorar. Param, né?, eu disse. Aham, ela disse. Fechou os olhos e seguiu rezando. Você vai ficar aí rezando até quando?, perguntei. Ela não respondeu nada. Levantei, procurei minhas roupas e me vesti. Onde cê vai?, ela perguntou quando eu tava saindo do quarto.

 

Ela levantou. Cê tem que entender, ela disse, eu sonhei com ele. Eu não aguentava mais a história desse ele. A gente tinha se conhecido há mais ou menos meio ano e toda vez que eu dormia lá ela falava alguma bobagem sem sentido sobre o ele como se fosse a droga de uma bruxinha escrota do Harry Potter. Bati a porta do quarto, ela não veio atrás. Passei pelo quarto do bebê, a porta tava fechada, resolvi dar uma olhada. Ele tava acordado dentro do berço, mas quieto, caminhei até ele, balancei uns brinquedinhos e o moleque riu um bocado. Dizem que eles não riem porque acham graça, mas ele parecia tá achando mó graça daqueles brinquedinhos.

 

A porta fechou atrás da gente. Ele é um barato, eu disse. Foi você que fez ele parar de chorar?, um cara perguntou. Ah, não, eles param sozinho, eu disse, tentando entender quem ele era. Quem é você?, ele perguntou. Eu? Eu sou o namorado da Suzy. Hm, ele disse, eu sou o pai do Murilo, te assustei? Eu ainda tenho a chave.

Ele veio ao meu lado, deu um tapinha nas minhas costas e pegou o bebê no colo. Dei uma olhada neles. O cara era bem mais velho que a gente. Suzy não tinha me contado isso. Ficou ninando o moleque e eu me despedi sussurrando que tinha que ir embora. A Suzy tá dormindo?, ele perguntou. Tá sim, eu disse e caí fora. Não voltei a falar com ela por uma semana, até que me ligou e pediu desculpas pela parada do terço. Saímos pra comer um negócio nesse dia, acabamos nos desentendendo no fim da noite por outro motivo e nosso rolo meio que acabou ali. Durante a janta, não toquei no assunto do ex dela. Ela também não. Perguntei sobre Murilo. Ele foi viajar, ela disse. Com o pai?, perguntei. Aham, ela disse, com ele.

 

 

 

 

 

 

Cara

 

 

Cara, eu não quero seu corpo se ele não tiver em chamas. Seus amigos machistas e latões de skol. Eu quero a sombra da morte numa sexta-feira 12. Quero fumar crack e assistir qualquer filme que termine com (somewhere) over the rainbow nos créditos finais. O espelho me sorriu de volta e o nome disso é loucura. O velho escroto da padaria sempre se demora na minha mão quando vai dar o troco em moedas, e ele sempre dá um jeito pra que o troco venha em moedas, e ele não aceita cartões e eu já começo a pensar que é só por causa disso. Agora eu pago em moedas, sim, a porra do pão na chapa e o pingado, jogo elas em cima do balcão, ele faz cara feia, ele que se foda. Aquele dia ia te contar isso mas eu tava bêbada e você ia fazer pouco caso. Cara, eu não quero te ouvir a não ser que cê teja gritando socorro. Não vou te ajudar. Eu não mijaria em cima de você porque isso ia te aquecer na porra desse inverno que não termina nunca. Quero investir na hibernação nesse inverno. Passar os dias fumando, elaborando planos pra matar o síndico do meu prédio, roubar todo dinheiro do síndico do meu prédio, pra passar tranquila a porra desse inverno, aqui dentro, sem você, sem seus amigos, sem a droga da padaria, abrindo a porta só com a arma na mão, abrindo a porta só pro traficante e pro entregador de pizza, de preferência, reunidos na mesma pessoa.

 

 

 

 

 

 

Mancha na noite

 

 

A menina roubou a arma do pai e agora procura trabalhos de pintores franceses no google imagens, só pra se acalmar. Ele está lá fora, no resto da casa, com o nariz branco e sua namorada maluca. Chegaram contentes em alguma madrugada porque tinham roubado uma tela inteira de bijuterias de um hippie colombiano na saída do metrô e agora já tão há alguns dias acordados e ainda experimentam anéis e brincos e gritam gloriosos. Você precisava ver, seu pai disse, ele era todo tatuado. A risada da mulher afeta a menina e ela ficou no youtube digitando Schubert, Maller, qualquer nome desses que já tenha lido por aí, mas o som de seu velho notebook não é capaz de cobrir porra nenhuma. Um dos cachorros arranhou a porta. Ela pegou a arma, caminhou até ela, abriu devagar e deixou que o cão corresse pra dentro. Agora ele tá deitado na cama e ela olha essa pintura, uma mulher pelada dormindo, pelos pubianos ruivos, iguais aos dela, e sentada aos seus pés tem uma mulher negra, com um vestido azul tão profundo e um colar de contas laranjas e um lenço laranja na cabeça, má postura, "zelando" seu sono e fumando um cigarro. Aquele cigarro. Que sensação esquisita causa aquele cigarro. La Blanche et la Noire é o nome da pintura. Ela não entende francês, mas traduziu em sua intuição como Uma mancha na noite. Na verdade, só quer dizer algo como O branco e o preto, seu pai diria, ele é culto, fala nove línguas, já viajou por todos os lugares quando era mais novo, se bobear, até conhece a pintura de perto em algum desses museus que existem por aí. Ela fica olhando pra pintura fixamente, fica imaginando que o diabo também deve falar nove línguas, fica com vontade fumar um cigarro, fica com vontade atirar nas paredes, mas não se mexe por uma meia hora, o cachorro já dorme em seu travesseiro, a tela do computador escurece, ela pressiona a arma em alguns botões do teclado e a luz do monitor volta de novo. Ela engatilha a arma, La Blanche et la Noire, ela diz, imitando uma mocinha de filme francês.

 

 

 

 

[imagens ©vik muniz ]

 

 

 


 

 

 

 

Bruno Bandido nasceu em 1990, na fronteira com o Uruguai, passou por Porto Alegre, Salvador e hoje mora em São Paulo com sua mulher e mais dois vira-latas. Em 2014, lançou o livro de contos Tem um palhaço agressivo e um hooligan triste em algum lugar aqui dentro pela editora Bartlebee. Este ano, seu conto Fonte do Boi foi publicado pela Bar Editora. Também prepara um livro de poemas chamado Histórios de Gólgota. Escreve em brunobandido.wordpress.com.