O livro Dibaxu/Debaixo, do argentino Juan Gelman é uma evidência de que a grande poesia é vida consubstanciada em palavras. Entende-se portanto que se trata da palavra empregada como matéria de experiência. Pouco importa se os textos de uma determinada obra aparentam relação imediata com a história do autor, pois o que conta é como esses textos expressam uma dimensão do possível a que ele, e consequentemente o leitor, estão expostos. Neste pequeno livro, Gelman não utiliza o castelhano-argentino, mas uma modalidade do idioma que em princípio estaria fora do seu alcance e do seu tempo. Ele escreveu os poemas de "Debaixo" na modalidade do espanhol conservado pelos judeus de origem ibérica (hispano-portugueses), expulsos da região a partir de fins do século 15 pela inquisição, quando se fixaram nos mais diversos países, como Holanda, França, Itália, regiões do Império Otomano, etc. Esses judeus continuaram a falar e a escrever (com caracteres hebraicos) o idioma de seus antepassados na Espanha, que passou a receber acréscimos conforme o local onde viviam. Mas permaneceu reconhecível, com sua pronúncia doce e hoje, às vezes mais próxima do português como se fala no Brasil do que do castelhano. O z soa como em português, assim como o x  — dibaxu pode ser tido como forma oralizada de "debaixo", por exemplo.

         Gelman não é sefardita, mas asquenazita, ou seja, seus antepassados viviam principalmente nos países da Europa Oriental, eram falantes do iídiche, idioma de base alemã com vocábulos hebraicos, aramaicos, eslavos, etc., que produziu uma literatura importante, mas foi contido pelo stalinismo e sobretudo pelo nazismo, durante a Shoá, ou Holocausto, que destruiu milhões daquelas pessoas. Em Israel, a língua de eleição foi o hebraico, de fundo comum para todas as comunidades judaicas do planeta. O judeu-espanhol, como prefere o prof. Cyril Aslanov, da Universidade Hebraica de Jerusalém, ou ladino, teve trajetória diferente daquela do iídiche, mas também sofreu fortes baixas durante a Shoá. Seus usuários, na maioria habitantes do Mediterrâneo, produziram obras religiosas, literárias, jornalísticas, mas, com o desaparecimento de comunidades um dia pujantes como a de Salônica, as coisas de diluíram. Hoje, em Israel e outros países há esforços pela manutenção do judeu espanhol (assim como do iídiche), mas os resultados só virão com o tempo. Ao escrever em judeu espanhol, Gelman não só saltou a barreira da língua, como, sendo de origem asquenazita, assumiu o idioma latino como um de seus idiomas possíveis, numa aventura que recupera o passado, se não dele, do idioma espanhol e da Península Ibérica, mas de uma visada universal. Ou seja, qualquer língua pertence a qualquer ser humano que lance mão dela. E, ao fazer isso, o autor vai ao encontro de uma história que ele assume ao mesmo tempo em que é acolhido por ela.  

         O poeta argentino decidiu-se a escrever em judeu espanhol ao empreender diálogo com a obra da poetisa sefardita franco-bósnia Clarisse Nicoïdski. Não deve ter sido pequeno o esforço para dominar aquele que seria um novo meio de expressão para sua poesia, ou melhor, para a poesia. Mais do que a prosa, a poesia para existir precisa do ritmo, suas curvas e quebras, caso contrário as palavras se tornarão mecânicas, seja no idioma de "origem" do autor, seja num idioma de opção. E mais: não basta o ritmo sonoro, é preciso captar o acento invisível, próprio do idioma que, então passa a se enriquecer com as transfusões conscientes ou não que o autor aportará, fazendo dessa língua de adoção sua língua também, inscrita num terreno que a confirma e transcende. De certa maneira, Gelman recupera uma tendência peninsular pan-nacional, se lembrarmos que uma antologia dos cem melhores poemas líricos espanhóis começa como um texto de Gil Vicente, que o castelhano foi língua do teatro barroco português, que Música do Parnaso, de Manuel Botelho de Oliveira (nascido na colônia brasileira) foi escrito em português, castelhano, italiano e latim, etc. Desse antigo e amplo contágio de línguas afins é que nasceu Debaixo.

         Sem diminuir o trabalho sensível do tradutor, Andityas Soares de Moura, que cumpriu a complicadíssima tarefa de traduzir quase que para a mesma língua, o leitor poderá fazer seu próprio teste poético ao ler os poemas deste livro, em edição trilíngue, ignorando as versões em castelhano (do próprio Gelman) e português. De acordo com Aslanov, aqui estão algumas dicas da sonoridade do judeu espanhol: o s soa como z, quando entre vogais, o z é sempre z, o j  é sempre como a inicial de jardim em português, o x é sempre como a inicial de chave em português e o ch é como em castelhano, tcha. Gente pronuncia-se djente. Além disso, como no caso de "ande moras", pronuncia-se morásh, como no Rio. Lendo em voz alta, observada a pronúncia, ou mesmo lendo como se fosse um texto em português, o leitor de português (e de castelhano) passará por uma sensação única de estranhamento e descoberta do familiar. Se a língua vem com um sotaque diferenciado, os ruídos que acompanham o ladino de Gelman enformam sua lírica contemporânea.

Como escreveu Monique Balbuena, estudiosa da obra do poeta argentino, num excelente ensaio publicado em Romance Studies, número 27 (novembro 2009), o livro tem de ser também considerado no âmbito do diálogo que Gelman estabeleceu com a poetisa Clarisse Nicoïdski, mas enquanto esta "busca estabelecer um vínculo com a comunidade sefardita, Gelman usa a linguagem para escapar da armadilha de uma identidade nacional definida por um regime militar opressor". Dibaxu foi escrito durante o exílio do poeta na Europa, entre 1983 e 1985. Nessa clave, poderíamos acrescentar que é também um alerta para o risco representado por qualquer "identidade" imposta e o aparato ideológico que a sustenta. É uma reflexão para a qual convida este volume, aproximando o judeu espanhol, o português e o castelhano contra um pano de fundo extranacional. É lírico e profundamente político. A edição traz um ensaio do tradutor e uma homenagem poética que Soares de Moura faz a Gelman.

 

 

 

 

 

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Dibaxu/Debaixo, Universidade Federal do Ceará/Secretaria de Cultura do Ceará, Juan Gelman, trad. Andityas Soares de Moura, 133 págs. 

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junho, 2010