©hans von manteuffel


                                                                     
  

 

 

 

"O sertão a gente traz nos olhos, no sangue,

nos cromossomos. É uma doença sem cura".

 (Galileia, p. 19)

 

 

 

1 As frestas do não lugar: solo ao solo

 

Entre as terras e as águas, a sensação da imensidão, a clareza da pequenez e o instinto de sobrevivência feliz. Ao pisar a terra, dela entrevê-se o rumo da gota e sua invisível cor, imersa no filete, na corrente, no rio descendo ao mar, e nele, os movimentos, os mistérios, as seduções e os perigos.

Ao entrar em águas, sem poder pisar sobre elas, só a terra é sentida sob a lâmina doce ou salgada, terra úmida, porosa, movediça...

O que chamamos terra é solo e o que chamamos água é o que o encobre e umedece.

Mas terra também é de onde partimos ou aonde chegaremos. É o esboço da memória, da lembrança reinventada pelo desejo de perenidade no tempo. É para quem lida com a palavra o continente de todas as ações. E o mar, a profundeza, o gozo e a sensualidade do grande planeta.

Sobre a terra, ou dela proveniente, o lugar mítico de que faz uso e consumo o literato e o leitor: o sertão é um desses lugares, o avesso do litoral, do mar. O sertão é a chave para outros movimentos, também de mistérios, de seduções, de perigos...

É desse solo antagônico ao fluido, ao marítimo, à geografia infinita, que se inventa e se recria toda a mítica e a complexa existência dos espaços e personagens criados ou revistos pelo cearense Ronaldo Correia de Brito (Saboeiro-CE, 1950), sobre quem alguns aspectos a seguir trataremos.

 

 

2 Entre o dragão e o leão: arcabouços de uma trajetória

 

Ronaldo Correia de Brito traz na complexidade da sua existência, tão comum aos seres humanos, o arquétipo lendário do primeiro Moacir — filho de Iracema e de Martins Soares Moreno, da prosa poética de Alencar —, uma vez que, desde o sertão de Saboeiro, logo se exilou, a princípio, na cidade do Crato, lugar que, no plano existencial, foi seminal para o escritor. Foi ali, por intermédio do cinema, que todo um arcabouço de revelações ficou marcado na memória. Não é à toa que o autor do festejado romance Galileia compare a sua segunda cidade — pelo deslumbramento diante do que via nas três salas de cinema existentes —, com Rimini, cidade natal de Federico Fellini.

Foi ali, no Crato, ainda criança, que tomou vista de tantas outras realidades, para em seguida, partir mais uma vez, adolescente, vislumbrando estudar medicina na cidade do Recife, onde vive há cerca de 40 anos.

O percurso, primeiro de deslocamento e logo de aparente fixação resolvida no espaço geográfico, no entanto, tornara-o um andarilho em volta de si mesmo e de seus entornos, pelas ruas da cidade do Recife. Talvez por conta disso, logo, a primeira incursão no universo literário, com a publicação do seu primeiro conto "Lua Cambará" (1970), que viraria filme sete anos depois. A partir daí, a trajetória de sua escrita, e de sua relação com o ato de escrever, a torná-lo refém de "altas cargas de tensão e sofrimento"1.

Esse suposto andarilho, ao distanciar-se de suas raízes, vai mantendo conflitos com a memória. Isto levou-o a afirmar que escreve com uma perspectiva: livrar-se da memória, para transformá-la em esquecimento, talvez com o intuito de "demonstrar que o homem é sempre o mesmo, onde quer que ele esteja, apesar de preso a questões locais"2.

Assim, desde sua Saboeiro natal, no sertão cearense dos Inhamuns, o escritor e médico Ronaldo Correia de Brito é mais conhecido como autor dos elogiados livros de contos Faca (Cosac Naify, 2003) e O Livro dos Homens (Cosac Naify, 2005). E, mais ainda,  pelo seu primeiro romance, Galileia (Objetiva/Alfaguara, 2008), considerado pela crítica um dos melhores livros do ano na literatura brasileira, que o levou a ganhar o Prêmio Cidade de São Paulo, em 2009. É autor ainda dos contos de As noites e os dias (Bagaço, 1997) e da novela infanto-juvenil O pavão misterioso (Cosac Naify, 2004). Em 2007, foi escritor residente e professor visitante na Universidade de Berkeley (Califórnia). Além disso, trabalha no teatro como dramaturgo e encenador, e seu espetáculo mais famoso, criado em parceria com Assis Brasil e Antônio Madureira, chama-se Baile do Menino Deus, que há 25 anos é encenado por todo o Brasil.

Escreveu, durante seis anos, a coluna "Entremez" na revista Continente Multicultural, e atualmente colabora com o portal Terra, com edições especiais da revista Entrelivros e com o jornal O Estado de S.Paulo.

 

 

3 O sertão de todo lugar: existencialismo e morte.

 

O argentino Jorge Luis Borges disse que morrer é um costume que sabe ter toda a gente2. Como em quase todos os segredos de sua genialidade, permitiu-se enxergar, sem fazer uso da vista que lhe faltava, e ironizar o sentido mais trágico da existência. Sabemos que a morte espreita os que a esperam, os que se desprevinem, os que se remediam, os que se compadecem. Somos todos vítimas de seu misterioso desejo.

Em qualquer época, em qualquer lugar, os costumes e as culturas tratam de preservar dinâmicas várias, com o intuito de resguardar o sofrimento infalível provocado pela presença dessa senhora de todos os pesadelos. Se o seu reino é o do fim do mundo, dê-se a ela o nosso último momento...

Há, porém, que se indagar o motivo pelo qual a morte é surpreedida, muitas vezes, pelo desafiante desejo de não temê-la, ou mais, de torná-la objeto de consumo, banal, como ocorre na vida de uns tantos habitantes dos confins da terra. E por qual razão as histórias desse povo se reproduzem, transformam-se, reavaliam-se e seguem seu compromisso de perpetuar o pesadelo?

Não há verdades absolutas, apenas conjecturas. Existe a literatura que molda, especifica, presentifica e conduz-nos a algumas respostas sobre esse emblemático mistério do convívio de nossos e todos os dias. Melhor prazer é percebê-la, enquanto não tarda e tenhamos que voltar ao pó.

A morte, tema eterno e consequência terminal da existência, é um motivo sempre presente  na obra de Ronaldo Correia de Brito. Tudo o que há entre o nascimento e a morte é apenas a marca de sinas e de abandonos, ruínas das lembranças...

Neste pequeno ensaio, seguem-se algumas nuanças que demarcam as fronteiras dessa singularidade existencial, entrevista no não lugar da memória de autor a partir de seu passado distante em solo sertanejo, conduzidas pela observação em torno das citadas obras: Faca, Livro dos Homens e Galileia.

 

 

3 1 Um rosário de mortes: Faca

 

Faca é um livro que enrijece o espírito. Talvez, aos menos acostumados a esses desígnios, podem os contos parecer duros, sofridos, exóticos até. No entanto, para quem conhece a realidade dos sertões nordestinos, sua sina, seus segredos, mitos e mistérios, é possível que se embeveça com tanta sinceridade e competência. De pronto, urge alertar: não estamos diante de mais um escritor regionalista, ou retrocedemos à escritura dos anos 30, ou deparamo-nos com a criação de mundos impossíveis. Faca é o próprio manuseio de uma arte que nunca se destrói ou será destruída, pois representa a mitologia de uma cultura.

Onze narrativas ocupam o imaginário do leitor. Há sempre uma esperança em cada linha, porém o que se define é, invariavelmente, uma desgraça. Mesmo quando o texto se desvia para um momento cômico, como em "O dia em que Otacílio Mendes viu o sol", o cheiro de morte se espalha pelos aposentos da memória. E desfiam-se mortes pressentidas, anunciadas, delirantes, compensadas, escolhidas, vingadas...

Os relatos são de origens arcaicas, porém têm marcas esteticamente atualizadas. Além disso, os contos reavivam o "entulho de um tempo apagado da memória", e traz, nelas, a expressão silenciosa, como a da senhora Morte, de mulheres poderosas, tais como: Cícera Candoia, Inácia Leandro, dos contos homônimos; e mais, Francisca Justina (de "Faca"), Aldenora Morais (de "A escolha"), ou mesmo Delmira (de "Mentira de amor").

Da coletânea, exemplificamos com "Redemunho". O conto transporta-nos para uma situação que beira a inverossimilhança, mas surpreende-nos pela estratégia do autor na condução e conclusão da trama. Nele, uma família de antigos fidalgos, reduzida a mãe e filho — abandonado pela mulher Elzira — vive em pleno sertão na precariedade da música tocada ao piano antigo, em ranço de nobreza e assolada pelo fantasma de uma mentira: a de que Elzira fugira com ciganos. A cena final é desesperadora, mas a provável definição de toda uma desgraça. Depois de perguntar por que a mãe nunca chorara a morte do irmão, em rompante de loucura, Leonardo age:

 

Um esturro de animal ferido ameaçou os alicerces da casa. Com uma força desmedida, Leonardo partiu a tecla do piano e atirou-a no rosto da mãe, esperando assistir sua morte. Correu para o quarto de ferramentas, voltando com uma enxada. A terra estava seca da  estiagem, mas ele cavaria com afinco, revolvendo o mármore da sepultura dos avós. A mãe tivera forças para enterrar seu irmão. Mais forças teria ele para desenterrá-lo, se estivesse ali. (p. 50-51)

 

A verdade estaria pronta para se revelar, mas o autor preferiu guiar o leitor a outra incógnita.

Ao tratar da possibilidade de não encontrar o cadáver do irmão, a sua ausência levaria Leonardo a imaginar que Elzira, a única mulher que amara na vida, além da mãe, teria fugido, não com os ciganos por ele assassinados, mas talvez com o irmão Manoel.

Insere-se nesse conto, um exemplo de um drama universal, mas recolhido a um espaço sertanejo, transtornado pelos ares de uma aristocracia decadente e plena de segredos.

Faca é uma obra do universo mítico, que traz o cheiro de morte entranhado no corpo da vida.

 

 

3 2 Livro dos Homens

 

Nos 13 contos de Livro dos Homens, encontramos os mesmos temas recorrentes: a manifestação de conflitos de toda ordem, a morte, a fragilizada existência, o silêncio e a solidão. Marco Lucchesi, na orelha da obra revela que ali se representa "Um Brasil profundo, mas livre de cores locais". Essa é exatamente a estratégia do autor, ao romper com a tradicionalidade do sertão — até mesmo porque este lugar sem limites já não é mais o mesmo —, evitando tornar-se continuador ou diluidor de uma vertente regionalista. Completa Lucchesi que na obra se acentua "Uma palavra plural, embora incisiva. Uma imagem penetrante, de alta densidade poética, servindo ao espaço ficcional de onde surge e para onde volta. O excesso está na vida de suas personagens".

Nessa obra, mostram-se as fontes de água e terra, o espaço geográfico em suas contradições perenes, que podemos estender à própria contradição da existência dos habitantes desses vales. Diz o narrador que o rio Jaguaribe é "caudaloso no inverno, e de "areias limpas e quentes na seca" (in "O que veio de longe", p. 8). Assim é o sertanejo: seco, porém pleno de esperanças e de fidelidade.

Tudo é sertão em volta do traçado narrativo. No entanto, a fonte da narrativa enseja ser, por exemplo, o desejo de liberdade da mulher, em troca de quem estar por vir de longe, protocolizando o antagonismo subjetivo entre a liberdade e a escravidão (in "Eufrásia Menezes"). Ou o desejo de transformar em exílio — na palavra, que seja —, tudo aquilo que poderia ter sido e que não foi. Eis um trecho: "Você já sabe ler. Aprenda a enxergar por trás das palavras. Assim você descobre a vontade que procura, e talvez não morra agora." (in "Qohélet", p. 31). Ou, ainda, a real constatação, não mais um desejo, de que tudo aquilo que diz respeito ao sertão transformou-se em mito. Daí, o repasse ao outro, ao narrador, de uma certeza de autor em relação ao sertanejo que, invariável e atemporalmente, é sempre transformado em ser mitológico, guerreiro de mistérios, carregando sobre os ombros arquétipos, ancestralidade e saberes envolvidos. Esta faceta podemos encontrar no conto "A peleja de Sebastião Candeia", quando a personagem trava uma luta com o insondável, o invisível, numa peripécia típica da literatura fantástica:

 

 

Em contorções e gemidos, a língua silvando na boca, Sebastião fez-se réptil, seduzindo outra serpente. Agarrava-se ao barro do chão, num abraço extremoso. O corpo, atirado para os lados, ameaçava partir-se. Incansável, prosseguiu na dança. Abria os braços e pernas, movimentava os quadris. Parecia querer fecundar a terra. Lutava para não ser arrastado ao reinado da morte. (...)

Ninguém soube marcar o tempo que Sebastião dançou, tentando acalmar a Serpente-dragão e o Jacaré. Até cair exausto e ser levado para casa, onde continuou em silêncio, os olhos perdidos na serra.

Ganhara a batalha, dançando. Os monstros dormiriam para sempre.

A Virgem desapareceu do altar e nunca mais foi encontrada. Seu papel de mediadora já não tinha propósito.

Nem significava amarra a idade de Sebastião. Ele podia muito, outra vez. (p. 63-64)

 

Essas perspectivas conduziram o mesmo Lucchesi a afirmar que "Esses contos de grande beleza trazem como que uma paisagem bíblica. Mas é preciso insistir: uma Bíblia sem deus. O que se costuma chamar de mística seca".

Assim, é perfeitamente admissível, afirmar que, por ser o sertão lugar fecundo de misticismos, essa singularidade conduz os seres reais a se metamorfosearem em seres ficcionais. E dessa mutação, aflora o existencialismo sertanejo.

 

 

3 3 Galileia

 

O romance Galileia é uma obra de retorno, tanto no que diz respeito ao périplo de memória do autor — muitas vezes confundido com algum narrador —, quanto à locomoção das personagens de volta ao complexo passado de suas origens. Nele, se mesclam o sertão que se desfia pelas cidades e as desafia, e a lembrança que provocou o autor, também o narrador, e provocará o leitor, principalmente, se ele é egresso desse rincão. Galileia simula o conceito de Guimarães Rosa, quando admite estar o sertão em toda parte. Mas apenas neste ponto há o entrelace com o autor de Grande sertão: veredas, pois a obra evolui por outros caminhos estéticos.

Podemos insistir com a ideia de que Galileia é o que resta de uma ancestralidade, que se manifesta sob a forma de ruínas.

Se assim pensamos, revolvemos a dialética confusa entre progresso e modernidade versus quebra de paradigmas e tradição. E a estupefação nesse sentido se dá, por exemplo, na visão noturna de uma realidade do novo sertão, quando Adonias diz: "Ficamos em silêncio, olhando as casas de luzes apagadas, com antenas parabólicas nas cumeeiras dos telhados". (p. 15)

Esse sertão é o mesmo que cavalga em motocicletas, que brinca nas lan-houses, aproximando-se do estranho progresso global, massificado, rumo ao possível retorno à barbárie.

Apesar dessas ilusões de progresso carimbadas na realidade e na trama de Galileia, a perspectiva subjetiva que a obra empresta é a mesma, talvez por conta dos exílios dos três protagonistas, Adonias, Ismael e Davi que retornam para presenciar a ruína do patriarca  Raimundo Caetano. O conflituoso médico Adonias — o autor também é médico, mas a máscara é vital para as personas — observa: "Tudo se assemelha ao passado, até os caminhos repetidos e o silêncio dos mortos, fantasmas que andaram como ando, ansioso e de humor deprimido." (p. 7) Na verdade, as mudanças se dão apenas fisicamente, os conflitos são universais, e as marcas do passado daqueles que retornam se multiplicam em sentimentos diversos, chegando mesmo a produzir o grande sofrimento pela decepção da realidade que se desfaz, e que, em vez de gerar beleza, eterniza a dor e abala o esquecimento.

Gera-se a crise pela memória desfeita, assim: "Onde estão os caminhos abertos pelos antigos, os que elegeram essa terra para morar, trazendo rebanhos e levantando currais? Procuro o rio Jaguaribe e ele é apenas um leito de areia, lembrança adormecida de águas que se recolhem na seca, e transbordam renascidas na estação das chuvas". (p. 8)

A existência passa a ser revolvida em cada uma das personagens. As cicatrizes voltam a sangrar. Parece insinuar que os fracos fogem do sertão e para ele não podem mais voltar, mas como castigo, jamais poderão esquecê-lo: "Para o avô Raimundo Caetano somos um bando de fracos, fugimos em busca das cidades como as aves de arribação voam para a África". (p. 16)

E novamente o estigma, que pode ser resgatado de uma fala de Ismael, o primo bastardo de Adonias, descendente de índios kanela, do Maranhão, que se exilara na Noruega, onde tivera problemas com a polícia: "Mas ninguém procura os lugares porque são bonitos ou feios. As pessoas saem atrás da sobrevivência." (p. 73)

Davi, que vive em São Paulo — depois de viver na França e em Nova Iorque —, é irmão por parte de pai de Ismael. É o mais dissimulado, embora querido por todos. Usa a máscara que esconde segredos. É o homossexual que contracena com todos os estereótipos do universo sertanejo e, por isso mesmo, o despreza. Ele se distancia dos outros dois. Passa o tempo a escrever o que Adonias classificou de bestiário, e a quem deixou páginas e páginas impressas. Diz Adonias que Davi "veio para alimentar o culto que os tios celebram à sua falsa imagem de gênio." (p. 185)

Eis um trecho da confissão narcísica de Davi:

 

Para mim, França e Nova Iorque significaram apenas um desfecho de adolescência, ato final do drama que você presenciou. Posso lhe falar muitas coisas, a minha agenda sexual é interessante, mas corro o risco de contar o que não interessa, destoando do personagem Davi que todos se habituaram a imaginar. Espero que seu romance seja mais picante que a minha biografia, embora duvide que você seja capaz de escrever algo que não entedie". (p. 185)

                

Galileia, enfim, é obra para reflexões, em que a dicotomia mundo e sertão é revirada.

 

 

4 O recurso do método: circularidades

 

Após esse trajeto pelas três mais significativas obras em prosa de Ronaldo Correia de Brito, até este momento, cabe-nos dizer que sua escrita se dá dentro de parâmetros considerados pós-modernistas, pela utilização de uma série de recursos entrelaçados, tais como: não linearidade da narrativa; corte cinematográfico; estruturas fragmentárias; realidade precária e indefinida no espaço existencial das personagens. Alie-se a isso, o estilo do autor ao explorar abismos textuais, provocando uma espécie de vertigem durante sua recepção; a presença do cenário mítico na geografia da memória; o tempo oculto; a dureza da linguagem. Todas essas nuanças completam o imaginário de Ronaldo Correia de Brito.

Esse conjunto de aspectos valida a construção do sertão existencialista do autor como forma recorrente. As narrativas curtas de Faca e Livro dos Homens estão inseridas nas páginas do romance Galileia com outros mesmos matizes. As personagens se identificam, assim como as solidões, os desejos, a sina. Nada muda, a não ser o conceito que o autor busca repassar, ora de forma explícita, ora de forma velada: o convencimento de que o mítico e o real são a mesma coisa.

O sertão é uma dicotomia indissolúvel. O recurso é o da memória se avivando para conseguir o esquecimento. Alguns trechos apontam para isto: "O passado muitas vezes retorna, cobrando o que é seu"  (in "O que veio de longe", LH, p.9) ou "A verdade é uma só e atravessa os tempos. (in "O que veio de longe", LH, p.12), embora seja certo que a verdade, ela própria, pode ser uma invenção...

O retorno após o contato com a cidade maior é outro fator recorrente, como se a fazer refletir as palavras do velho patriarca Raimundo Caetano, de Galileia. Se fugir é motivo de fraqueza, retornar com outra visão e outras habilidades é o desprezo pela própria condição, ou talvez o conflito para todos aqueles que convivem com a situação de deslocados na vida.

Enfim, encerremos esta introdução ao sertão existencialista de Ronaldo Correia de Brito, com suas próprias palavras: "O meu sertão é complexamente urbano. Seus personagens, neuroticamente urbanos, sofrem uma doença grave, que mina a saúde mental de todos eles: adequar o mundo arcaico que herdaram, ao mundo globalizado em que se viram inseridos de forma brutal, num intervalo de tempo muito curto"1.

Assim, também habitamos as páginas do autor, nesse não lugar, típico solo de outra terra... da realidade, da memória.

 

 

 

Notas

 

1 Entrevista concedida a Rogério Pereira, em Rascunho — O jornal de literatura do Brasil, sob o título "Obsessivo pela exatidão", em jan. 2009. A entrevista, na íntegra, pode ser lida clicando aqui. Acesso em 10 nov. 2009.

 

2 Traduziu assim Alfredo Jacques, do original da Milonga de Manuel Flores, do opúsculo Para seis cordas, 1965: "Morir es una costumbre / que sabe tener la gente". O poema completo em português, em tradução de Nelson Ascher, encontra-se nas Obras Completas de Jorge Luis Borges, vol. 2, p. 372. Nele, traduziu-se assim: "Morrer é um desses costumes / Que todo mundo consente".

 

 

Referências

 

BORGES, J. L. Obras Completas de Jorge Luis Borges. Vol. 2. São Paulo: Globo, 1999.


BRITO, R. C. Faca. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.


______. Livro dos homens. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.


______. Galiléia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.


PEREIRA, Rogério. Obsessivo pela exatidão (Entrevista com Ronaldo Correia de Brito) in Rascunho – O jornal de literatura do Brasil. Curitiba, jan. 2009.

 

 

 

junho, 2010