[ personagem número um ]

Anotações sobre o personagem número um: um homem precisa dormir. É o que pensa/supõe/imagina enquanto rola na cama no meio daquela tarde na qual a umidade brigava com o ar na tentativa de provocar tormenta. E você quer apenas dormir. Agora você vai dormir. Esta é a sua próxima ação: dormir. O que, além disso, poderia fazer? Desligar das tomadas, desconectar os fios, um a um até o último. Fechar os olhos e deixar de ver luzes ou sombras. As cores. A cor do céu, a dissipação do calor pelo ar denso que foge através da janela semi-aberta. Um sono devastador (e convulsivo) está tomando conta de você. Uma doença fatal, mas não a morte ela mesma. Talvez não importe saber desde quando. Parece uma eternidade, embora você saiba que não é. Os olhos estão se fechando. É o primeiro sintoma. Logo virão outros. Trata-se de uma praga que avança passo a passo. Resolutamente. Você vê. As pálpebras caem, pesadas, insuportáveis. Vamos ver o que acontece durante as próximas horas, ele disse ao fechar os olhos, ainda com alguma esperança na imaginação. Os batimentos cardíacos. A velocidade e o ritmo deles. Primeiro isso. O pulso reduz seu andamento. A máquina. O mecanismo. A ação (bombeamento de sangue). Sístole. Diástole. Agora já está em cinqüenta e cinco batimentos por minuto. O engenho se auto-regula. É o que você supõe. As pálpebras fechadas os olhos se movem de um lado para o outro, para cima e para baixo e giram e caem, como se sonhassem. Do lado de fora o maquinismo se acelera. Do lado de fora dos olhos e para além das pálpebras fechadas as luzes da cidade pulsariam através da janela nas cores/através dos vidros translúcidos da janela. Isso foi quando ou a partir de quando a conheceu (não que fosse culpa ou responsabilidade dela, nada relacionado a causa e efeito como em algumas máquinas). Quando a conheceu (àquela mulher) ele não queria dormir, pensa. Agora é só o que deseja: dormir.

(Antes, ele teria de se haver com a morte, a morte dela, ele falou. Porque a havia assassinado. Teria que, por exemplo, contar sobre isso. Relatar. Narrar o fato e o acontecido. Descrever os detalhes e a cronologia dos eventos que o caracterizaram. Comentar as motivações. Não teria como escapar, não pelo menos da lembrança, e da certeza de tê-lo feito.)

Depois de tê-la matado só o que desejou foi dormir. Fechar os olhos para sempre. Apenas dormir. Não é o mesmo que morrer, você pensou. E não é. Mas ter cometido o crime fez que quisesse dormir daquela forma. Tão próxima da morte. E porque ele a encontrou (à mulher) seu corpo passou a se submeter à escravização daquele desejo compulsivo: somente dormir. Vamos ver o que acontece durante o sono, você disse como se pedisse socorro, porque na verdade não consegue ver. Os elementos se misturam e você não sabe se o anseio de dormir veio depois de ter cometido o crime/o assassinato ou se antes disso, muito antes/séculos antes, quando a encontrou pela primeira vez. O fato é que houve essa primeira vez, não é. Você desejaria despertar porque ao abrir os olhos a verdade iria se mostrar/revelar, é o que você deveria dizer, mas não consegue abri-los. O sono é muito maior que qualquer outro desejo que ele (você) já tivera. Era o maior de todos os desejos e sufocava os demais. E à parte essa impossibilidade (dramática, você reconhece) há ainda a necessidade de relatar, necessidade cuja origem desconhece. Um impulso (nebuloso), uma atração (misteriosa), a (inexpugnável) força da gravidade atuando sobre um corpo em queda livre rumo ao fundo de um abismo, uma ocupação/atividade rotineira, mas aparentemente inevitável. Poderia testar "n" possibilidades sem que nenhuma delas lhe parecesse suficiente ou verdadeira para explicar de onde ou por quê nascia. Gênese. Relatar, para que? Para quem? Por que? Muitos se interessariam pela história de um crime tão espetacular quanto aquele, é verdade, crimes atraem crescentemente a atenção do público embora talvez não na acepção que estamos usando (você se recorda do nosso assunto até aqui, não é), mas não são os outros que interessa. O ouvinte não tem nenhuma importância. Não é para alguém que você tanto anseia contar. Você apenas conta/relata porque precisa. Não porque exista um receptáculo à espera do seu desejo ou da sua necessidade. Você deseja. Mesmo assim a questão talvez o persiga mais um pouco: por que a ele é necessário contar? Por que é preciso contar? Por que contar? Por que contar, você pergunta, se está despencando aceleradamente para o limbo desse sono irresistível e sem sonhos sem palavras sem relato, você diz. Um homem se prepara para dormir. Um homem vaidoso — antes de dormir parece executar um ritual ancestral – antecedendo o rito do sono uma espécie de vaidade vem à tona: naquele dia ele sabe que precisa dormir, é o que está pensando.  Parece-lhe já ser noite. Está escuro – pelo menos está escuro — pode ser que a noite tenha chegado.  Mas pode também ser que sejam as nuvens pesadas/carregadas de chuva escondendo/obliterando a luz do sol e confundindo os sentidos/o olhar e os demais e o contorno das coisas. A janela está fechada — todas as portas e janelas estão — as paredes são grossas (trinta centímetros de espessura) — como resultado nem um único som atinge os seus ouvidos, não vindos de fora pelo menos, não capazes de ajudá-lo a identificar o que se passa com a natureza lá adiante: se a escuridão é fruto da noite que chegou ou se é uma tempestade se aproximando. Os odores da cidade para além das paredes e portas e janelas tampouco alcançam o homem enquanto ele se prepara para dormir. Pelo cheiro ele (esse esboço de personagem) poderia tentar descobrir, já que o odor da chuva ele imagina saber identificar perfeitamente mesmo antes da tempestade se aproximar. Um animal emite sinais anunciatórios — e assim também as outras naturezas conhecidas. Antes de atacar antes de copular antes de morrer, às vezes antes de morrer.  Quanto à vaidade do homem antes de dormir: naquele momento ela se resume à capacidade de decidir quando dormir. Ele pensa, ele está pensando assim, que pode escolher o momento de dormir. Acreditando que fazê-lo é uma necessidade, ele decide dormir, é isso. Daí sua vaidade. Pouco lhe importam os eventos transcorrendo lá fora, para além das janelas e portas, na cidade. Pouco ou nada interessam o dia ou a noite. Lá fora. As horas. Esta é, quem sabe, a outra parte da vaidade dele, essa capacidade de desprezar ignorar abdicar. Mas você não saberia dizer se foi vaidade. Aparentemente, você mal saberia o que é a vaidade. Um dia talvez muito tempo atrás ele tenha de fato desejado se mostrar se exibir apenas ser visto e ser olhado, desejado mesmo. Pode ser. Ninguém por aqui nesta cidade sabe. (...)

 

 

 

 

 

[ paisagem com cavalo ]

 

 

(Antes de sair viu uma mosca agonizando embaraçada na teia de aranha grudada na porta.) Lá fora restaria quase só a ossatura, ou não, porque embora em agonia o animal continua vivo, você sabe, ela sabia. A manhã está pesada e seca, nas plantas as folhas gemem acuadas, presas ao calor. Um derrame de pássaros-pretos despencou do céu e depois sumiu atrás de um barranco. Fardos de nuvens esperneiam contra o sol. Entretanto, ela se sente no interior de um porão lúgubre cujas paredes a atacam impondo o súbito arrefecimento da vitalidade. Não é difícil imaginar naquele momento a precariedade da vida no animal que encontrou. Podia cheirar o azedume da deterioração da matéria, no entanto, ainda viva. Senta-se e se ampara nos restos de um tronco. Talvez tenha permanecido ali por muito tempo, como o daqueles filmes científicos realizados por câmera rápida que mostram o desabrochar de uma flor com o narrador interrogando grave quem senão Deus poderia criar tamanha perfeição. Você, então, vê. O couro se rasga aos poucos, aqui e ali, encardido, se acinzentando mais e mais na (santificada, você diz, recorda) composição da morte. Ele aproxima o pedaço de espelho quebrado até que os vermes possam rastejar sobre a superfície vidrátil, moles, incoerentes, também sobre o pelo, rompendo as tripas e revelando as vísceras. Os dentes cadavéricos do animal (agonizante) agora desproporcionais protuberam como uma muralha de pedras brancas uniformes engolindo a cara da vida, mais ou menos lentamente (você escolha, ele disse). É visível o campo de batalha onde de nada adiantam as súplicas dos olhos arregalados do eqüídeo — tumores saltando das órbitas. Só. O animal seca enquanto ela assiste e respira ao lado do espelho (pedaço de espelho). Teima. O peito e os pulmões lançam estampidos que ecoam remotamente. Enquanto imagina enxergar detalhes sendo injetados nas minúsculas veias do globo ocular sente-se tomada pela vertigem. No espelho quebrado contempla a pilhagem dos vermes até que as sensações e a percepção visual percam o foco. Ensopada de suor, ela própria um animal agonizante, você veja, ele disse. Muda. O corpo se torna uma massa de impulsos táteis. A abjeta agonia finalmente virou morte. Resta o esqueleto (estrutura óssea), lacônico e quebradiço. Ela então se deita, o rosto apoiado no chão, e lambe a terra como a uma cria prostrada nua ao lado, tentando ressuscitá-la.

 

 

 

 

[ o bebê de dikika]

 

 

Um bebê, você dizia. Não sabe há quantos anos, não sabe a idade, mal saberia identificar seus traços, definitivamente não saberia, porque sobre a sua memória /sobre a memória estão centenas de toneladas do mais genuíno entorpecimento. Entretanto, existem dúzias de informações a respeito, pesquisas, financiamentos, instituições e pesquisadores produzindo novas levas de dados. Carcaças. Mesmo assim suas mãos procuram tateando o solo enquanto a simples necessidade de fazê-lo te deixa sem norte. Você quer dormir, lembra, diz, tentando se convencer. Um longo sono sem sonhos. Não importa. Então, ela/alguém te conta que aquelas camadas de esquecimento são também elas memória. Ossificadas/incrustadas em arenito. Hipóteses coladas na rocha, esclarecem os cientistas, você leu, não é mesmo. Traços inconclusos na pedra africana. Um esboço em sentido contrário ao daquele que ele vinha executando. Da frente para trás. Uma desconstrução, eles vão dizer, você imagina. Um desmoronamento. Não há dúvidas: aquilo havia sido uma criança. A ossada na pedra é o resto do que fora uma criança (completa) que, por sua vez, esboçava os traços futuros da espécie. Não mais que isso. A pedra: a mãe — ele adivinharia se durante aquele sono maldito e quase eterno pudesse sonhar e falar, contar, se alguém pudesse ouvi-lo. A mãe, ela falou. A mãe dela fora assassinada. A esta altura você não teria mais dúvidas de que ela foi morta, àquela altura o crime teria sido cometido e não haveria como voltar atrás. Com a morte não se lida. Não é possível reverter a trajetória, pensa enquanto observa os ossos fossilizados no bloco rochoso, protegidos/guardados/escondidos atrás das camadas de sedimentos compactados pelo tempo. A natureza — a daquele bebê — a do seu leito rochoso escolheu entre o que amamentar até quase a eternidade e o que deixar para trás no negrume da inexistência, negando berço e registro. Mas você pode optar por outra palavra ao invés de escolha, qualquer uma que te soe mais apropriada, porque escolher talvez lhe pareça atributo exclusivo dos humanos, privilégio e dom e etc e orgulho da espécie etc, você sabe. O fato é que o que sobreviveu foram pequenos pedaços do esqueleto, suficientes para contar sua história ou parte dela que uma história inteira ninguém nunca deveria querer contar, mas não todo ele e agora você deseja ver nisso uma mensagem largada na direção do futuro/dos outros, porque de qualquer modo os que estão por vir serão sempre os outros. Ela também havia te prometido se comunicar falando sobre a criança tão logo nascesse. Minúsculos relatos, alguma descrição talvez, observações esparsas e aparentemente inconclusas. Talvez tenha escrito ou tentado. São tantos anos entre as coisas, pensa. São tantas coisas entre as coisas, pensa novamente. É provável que o tenha feito tentando restabelecer um elo. A ela agradava contar histórias. E acreditar nelas e etc. Falar, diz. O outro, diz. Neste exato instante você pode ainda ouvir a multidão de vozes (dela) chegando aos tropeções dentro da sua cabeça ou seja lá onde for, às vezes em ondas gigantescas convulsas. Te atropelando. Te afogando. Você sabe que mesmo depois de morta ela continuará falando. Ainda é possível ouvi-la. Fragmentos de frases, pedaços de palavras cujos sentidos teriam que ser adivinhados. Ele retruca dizendo não tenha ilusões quanto ao que vem pela frente, que adiante não se ouvirão mais vozes. Não haverá passado. Nem inscrições nas paredes. O silêncio absoluto. Ela se cala. Ou a tagarelice de sempre. O nada. Apenas movimento sem atrito. Perfeito, cristalino sobre superfícies perfeitamente lisas, ele diz novamente usando o que deveria ser uma das expressões favoritas da época (ele a usava com freqüência): superfícies perfeitamente lisas. É o que eles estão fabricando a todo dia a toda hora em todo lugar. Por isso ela foi morta, não é. Assassinada, você teria dito. Uma pedrada na cabeça, estrangulada, uma bala na têmpora, isso ainda não foi esclarecido. Quem sabe se durante o sono não conseguiria sonhar e durante o sonho não desencavaria um a um os segredos que o conduziram à morte dela e o guiariam à explicação para o cometimento do assassinato. Você veria o quanto para muitos dos que moram na cidade o desvendamento do crime importa mais até que a própria morte, as palavras mais que as coisas, de tal maneira que se tornam palavras e revelações sem coisas. Porque da morte não há volta, dizem. Mas pode ser por qualquer outro motivo, que não esse da inexistência de volta. Quase todos eles estão se lixando quanto à impossibilidade de retorno. Seus olhos estão inebriados de louvor pelo presente luxuriante que os acompanhará até o final dos tempos. Na verdade, não acreditam no final dos tempos e, se você quer saber, a meu juízo estão certos. Não haverá final dos tempos para eles. A morte foi abolida, assim também a dor que a precede: a vida. Portanto, o próprio tempo, seu transcorrer foi abolido. Deus existe, pela primeira vez na história da espécie, Deus, aquele que tudo cria à própria imagem e semelhança e promete o paraíso a salvação eterna, Deus, pela primeira vez em milhões de anos torna real suas promessas — ele pensa antes de desmoronar para dentro do sono sem sonhos — e as entrega, empacotadas reluzentes, diz. Prenhas, se reproduzem ad infinitum. Mas, ao contrário das grávidas de maneira geral, doentias, epidêmicas, incontrolavelmente epidêmicas. Então, para quê contar, não é, digo, se não há como voltar atrás, reverter a trajetória, por exemplo, quando você pensa em só contar, quando você imagina a impossibilidade de reversão ou na simples interrupção da trajetória do projétil voando para a têmpora direita da mulher. Foi isso, uma bala, não foi. Hipóteses para a execução — o cometimento do crime — a realização do desejo — ou a necessidade do homicídio — a urgência de assassinar aquela mulher. Acerca do instrumento, por exemplo. Por qual arma ou ferramenta deveria o Personagem Número Um optar para cometer seu crime? A arma deve ser adequada à intenção e essa intenção não diz respeito ao sofrimento da vítima/vítima do ato gesto desejo dele, pelo contrário, garante. Cometer o crime sem fazê-la sofrer: para ele é o que mais importa. O sofrimento deveria estar apartado da ação dele sobre o corpo dela e da ferramenta escolhida. O sofrimento dela. Deveria ser um gesto preciso, tão exato quanto a natureza da intenção longamente construída, consolidada pedaço a pedaço durantes os anos, tantos que você não saberia sequer imaginar, como já te disse. Uma escala de tempo à beira da incompreensão. Um gesto assim. Qual instrumento, já que são necessários instrumentos para a realização das intenções humanas, qual ferramenta será adequada a uma ação como aquela? (...)

 

 

[Trechos do romance Paisagem com Cavalo]

 

 

 

[imagem ©anabananasplit]

 

 
 
 
Halley Margon (Catalão/GO, 1956). Escritor, é formado em Arquitetura e Urbanismo. Paisagem com cavalo (Rio de Janeiro: 7Letras, 2010) é o seu primeiro livro. Vive no Rio de Janeiro.