11. Dorme sujo e acorda limpo

 

Os moleques de rua que eu conhecia jogavam futebol nos times da minha vila. No nosso velho e bom terrão do Corinthinha da Vila Yara. E suas estórias foram sendo escrevidas com as tintas possíveis, algumas com letras normais, outras com garranchos, outras ainda escritas errado.

Pinço um daqueles moleques de uma conversa que tive hoje pela manhã, no jogo do veterano. Que ao final teve um churrasquinho e um bate papo da antiga.

Lembrei de um menino que jogava futebol no meu time dente-de-leite e era comprido pra idade. Eu o escalei para jogar de lateral direito, e ele era muito obediente. Ouvia muito atento o que lhe falava e sempre teve um comportamento exemplar no clube. A sua diferença era o banho, a que não era chegado. Tava sempre com a mesma roupa. A molecada já logo batizou: dorme sujo e acorda limpo. O rescaldo ficava para o lençol da cama; e ele sempre com a mesma roupa.

O tempo se arrastou no meu bairro, e, nesse quebra-cabeça da vida, eu me afastei do time, fui cuidar de casar, fazer outras coisas. Retornei alguns anos depois e encontrei o Dorme-sujo-acorda-limpo, que me cumprimentou respeitoso. Eu soube que se engendrara pelos caminhos das drogas. Perigoso. E já não flanava o sorriso de criança; agora uma máscara de melancolia, pesada, plúmbea. Ele já não tinha em si o menino que fora. Soube o que o crack lhe transtornara a identidade e que ele já tinha sido preso muitas vezes, morado na rua. Já não era mais menino, nem da minha vila. Era da vida, que o escolhera. Morreu tragicamente, e eu choro escondido a cada morte de um menino que podia chutar os ventos, perfilar-se em campos sem grama, viver o cotidiano que a várzea tem, e que, no entanto, agora virou uma cruz abandonada num cemitério de periferia.

Há que haver espaço pelos menos para o uivo à lua de um lobo desesperado com algumas modernanças.

 

 

 

12. Drops Dulcora

 

Eu quero o gosto da vida arrancado de um drops Dulcora.

Eu quero o sabor daquele cor de laranja, que a princípio era cítrico e depois açucarou. Quando terminava, deixava um gosto amargo. Eu quero a sensação da transposição na boca, da troca para aquele cor de uva, cuja mistura de gostos e salivas me remete aos amores que não tive.

Foi o primeiro a vir com cada drops embrulhado individualmente — não ficavam melados como os seus antecessores, embalados todos juntos.

Perdiam-se no desembrulhar da embalagem, no encaixe da unha na parte prateada, na ponta dobrada, que requeria alguma habilidade para que se abrisse sem rasgar. E haja paciência para retirar o acetato! Enquanto a língua sedenta aguardava o primeiro momento de inspeção, acolhimento e degustação.

Os amores foram se embaralhando, confusos e guardados como os dez drops na embalagem. Foi-se a primeira, a segunda, a terceira e uma sequência de embalagens, e os amores que ficaram me confundiram tanto, que eu preferi trocar por um Dadinho da Dizzioli.

 

 

 

13. Duas Fitas

 

Eu me arreto quando ouço um samba que diz que ela não volta mais. Parece que o Charutinho leu meu pensamento, ou algum falador disse pro Adoniran da minha vida. O povo daqui é muito falador.

 

Cheguei em São Paulo comendo o pão que o diabo amassou com o pé. Vim atrás de um primo, que era zelador de um prédio, ali perto da Praça da Bandeira. Cheguei na Estação Roosevelt. O trem levou quase um mês, morreu um conterrâneo no caminho. Eu era menino novo, sem estudo, e meu encontro com os prédios de São Paulo, me deu foi um arrepio no estômago, como pode, meu Deus!  Era gente querendo bulir lá com Deus. São Paulo era muito alta.

 

Na minha mala oca, tinha duas calças, uma camisa e duas fitas do Bonfim, além de uma carta. Pra chegar andando, da Estação Roosevelt, no Brás, até o primo, foi chão! Quando cheguei, meu primo teve um susto.

 

— Rapaz, você aqui?!

 

— Sim, primo, quero vencer em São Paulo e dar vida boa pra mãinha em Remanso.

 

— Primo, aqui é duro. A gente sofre muito.

 

— Só quero um trabalho, primo, depois me viro.

 

E foi nessa acolhida que São Paulo me conheceu e eu a conheci. A loucura dos carros me deu uma fraqueza nas pernas nas primeiras horas, que levei foi tempo para acostumar.

 

Conheci baianos, mineiros, alagoanos, cearenses, potiguares, pensei será que ninguém é daqui?

 

O primo me colocou com sua influência na equipe de limpeza do prédio e me arrumou uma pensão, ali perto. No primeiro dia de pensão, roubaram minhas fitas do senhor do Bonfim. Reclamei, mas ninguém sabia. Chorei, embaixo do cobertor.

 

O primo Rudielson, sempre  estudado na coisas paulistas, me levava pra todo canto. Soube, por um povo dele, que o treme-treme tava procurando um zelador e me indicou. Ganhei uma moradia, mas perdi o sossego. Eita povo pra gostar de quizumba! Era morador doido de todo quilate. Tinha até uma véia, que de vez em quando saía nua pelo corredor do apartamento. Tinha mais quiitinete que a porra. Eu quase não dava conta de atender tanto pedido. O povo era muito engraçado.

 

No 23º, morava o pessoal de um grupo de samba. Lá, todo dia era festa. Só não vinha muito um deles, que fazia televisão, fazia filme. Quando aconteciam as festas, era um tal de síndico e morador me ligar, como se eu pudesse resolver! Eu ia lá, e eles todos mamados, com um monte de mulheres, me convidavam pro rendez vous. A casa vivia defumada. Eu ria, com vontade, mas não podia.

 

Um dia, deu confusão. Uma moça, não se  sabe em que estado, caiu de lá do apartamento. Nossa Senhora! Aí vieram Notícias Populares, Canal 4, canal 5. A rua parou. Depois disso, os caras mudaram.

 

Agora, com quatro anos de São Paulo, já mandei dinheiro bom pra mãinha. Todo dinheiro de hora-extra mando pra Bahia. Agora tô namorando, com uma moradora, escondido. Encontro com ela na feira do Bixiga, na Vai-Vai, no CTN, e cuido pra ela não ficar falada. A bicha é braba que só a porra.

 

Outro dia, na Vai-Vai, uma porta-bandeira minha amiga, que conheci quando trabalhava de margarida no Viaduto Jacareí, me cumprimentou na escola. Eita! Valenciana me deu uma beliscada que quase me tora o braço. Eu me arretei, mas lembrei que a danada me dá uma chave de priquita que eu quase morro!

 

Esse ano, achei duas fitas do Bonfim. São Paulo me devolveu, e eu acho que foi um aviso para ir visitar mãinha, de quem eu só tinha notícia de telefone e cartas. Como tenho seis férias vencidas, chegou a hora. Vou buscar a bênção e levar o dinheiro, pra ela aumentar a casa e comprar uma tevê nova.

 

Depois que achei essas duas fitas minha vida melhorou muito. Ganhei no bicho duas vezes, tem uma passista-show da Vai-Vai que vive esticando o olho pra mim. Esse ano vou sair pela primeira vez na avenida, fantasiado de pierrô, numa ala da comunidade. Nasceu dentro de mim, depois de seis anos, um viaduto nove de julho. Ver aquele povo na rua, nos ensaios da Vai-Vai me faz pensar que eu nunca saí daqui. Pena que mãinha não quer morar aqui, nem por sonho... Gozado, só gosto de samba. Forró não me afeta. Se São Paulo não fosse minha, eu mandava inventar. O único medo que carrego é ser corno em São Paulo. E os caras do bar brincam muito com isso. Eu não gosto dessa brincadeira.

 

Eu me arreto quando ouço um samba que diz que ela não volta mais. Parece que o Charutinho leu meu pensamento, ou algum falador disse pro Adoniran da minha vida. O povo daqui é muito falador.

 

Já comprei minha passagem. Vou ver mãinha, mas já tô com saudades. A mala não combina mais comigo. São Paulo é meu sapato.

 

 
 

Adeus, ingrata

 

Quem se lembra da velha caminhonete azul escura, escrito Doces Neusa, que entregava toda sorte de doces, Disneylândia de nossa gulodice? Meu vizinho tinha uma;  tinha não, era motorista-vendedor. Dormia na rua, que ele não tinha garagem. Durante muitos anos da minha meninice, vivi com essa tentação ao lado. Quando abria as portas para as entregas nos armazéns da vila, era como se estivessem abrindo um carro-forte. Doces de leite, em pedaços pequenos, pé-de-moleque, paçoca, dadinho, pirulitos, balas. Minha boca enchia d'água. Aquele era um homem feliz, mais festejado que Papai Noel, sua mística durava o ano inteiro.

A casa dele ficava de frente à minha, e eu o vigiava do meu quintal. Sua mulher era um tipão, bonita, falada pelas mulheres da rua. Ele, às vezes, passava dias fora de casa, rodando a região e entregando doce. E ia pro Interior de São Paulo. Houve tempo em que chegou a sumir um mês. Essa Inês era alta, bons dentes, cadeiruda e sem filhos. E gostava de dançar. Quando tinha uma festa, a atração era ela. Saía suada.

Quem fazia páreo para a Inês na rua era uma prima minha, mas na verdade não chegava nem aos pés. Eu só espiava o marido: além da caminhonete dos doces, ainda tinha aquele mulherão. O mundo é injusto.

Minha mãe tinha um papagaio e ela gostava de brincar que minha prima traía o marido. Vira e mexe, ela chegava no ouvido do papagaio e falava fulano (que eu não vou entregar o nome do indivíduo) é corno. Seguidas vezes. Até que, num dia de chuva, o papagaio ficou inspirado, subiu em cima do barraco onde ficavam os tanques e, no barulho da chuva, arrepiado, começou a gritar:

— Fulano (que não vem ao caso) é corno! Fulano é corno!

Isso centenas de vezes, conforme aumentava a intensidade da chuva.

Justo nesse dia, o infeliz do homenageado estava na minha casa. O que obrigou minha mãe a sair na chuva e jogar uma toalha no louro, pra encerrar a homenagem. Pra se justificar, toda molhada, ela disse:

— Isso deve ser brincadeira dos meninos. Ah, se eu pego um infame desses!

Uma madrugada qualquer de escuridão — que a luz apagava as oito da noite — encostou o carro da Doces Neusa. O vizinho chegou cansado da viagem, foi entrando, com uma lanterna de emergência. A gente só escutou a gritaria. Ele correu pra pegar sua espingarda de sal, e deu tempo do hóspede correr. O pé-de-lã, no caso, teve que fugir pelado. Só no outro dia um parente dele veio buscar a roupa e os documentos. A gente soube desses detalhes anos depois.

Meu vizinho só perdoou porque soube que o homem tinha entrado à "força" na sua residência e "forçado" sua mulher. Até hoje a gente sabe que deu delegacia, confusão e tal, mas nunca perguntamos detalhes, que não eram de nossa alçada. A dona Inês ficou uns tempos no interior. A casa ficou fechada. Quando voltaram, foi com duas crianças no braço. Eram a cara do meu vizinho. Não sei por que, mas perdeu o encanto pra mim. Não sei, acho que me senti, na minha parte, também um pouco traído.

Passei a achar que ela combinava com a música "Adeus, Ingrata" do Claudio Fontana, que tocava no Parque de Diversões.

 
 

Strip-Tease no Cine Cairo

 

Passo pelas escadas da Praça Ramos e, segurando o dedo do índio, sei eu que tribo, na frieza do bronze, desço pelas escadas, como um Fred Astaire. Com uma pasta 007, passo pelo Anhangabaú e entro na fila do Cine Cairo. Corro esbaforido, já que as sessões de strip-tease acontecem de duas em duas horas. São nove e quinze. Eu com muitos serviços na mala. Mas eu tenho o dia inteiro...

Na fila, me mimetizo, fecho a cara, até que minha vez chegue à bilheteria. Compro o ingresso com a economia de quatro passagens de ônibus, matreiramente superestimadas no cálculo da rota, que posteriormente foi cumprida a pé, e entro invisível. No trajeto  da portaria  até a poltrona, com passagem pela bomboniére, vou mudo. Já sinto, assim que me acomodo na poltrona, um cheiro estranho de urina e fumo de rolo, que me arde nas narinas.

Na tela, um pornô com duas japonesas de protagonistas. Coloco os joelhos apoiados na poltrona da frente, e me espanto com o tamanho das genitálias expostas e superdimensionadas na grande tela. Nossa uma detetive japa com umas tetas de fazer inveja à Cicciollina. E de olhos verdes!

Macaco velho que sou, já me garanto de achar um lugar que tivesse uns dois vagos do lado, pra não correr o risco de ataques dos perobos, que ficavam transitando por ali. Fico atento ao canal 100 e aos feitos da ditadura, que mostram Castelo Branco, as obras da Transamazônica e os gols, que naquele tamanho fazem o coração quase vazar pela boca. Acho que essa coisa de o Brasil ser o maior futebol do mundo vem do Canal 100. Com um futebol daquele tamanho só podíamos ser os maiores. E o narrador? Eu sempre fui fã dele. Tudo que ele falava eu acreditava! Se ele se candidatasse, votava nele.

Terminado o filme, as luzes apagam e entra uma canção, que ninguém ouve, e um globo prateado começa a girar, espalhando luz. De repente, surge uma mulher magrinha, com um vestido todo ousado, dançando uma dança que fala direto ao nosso baixo ventre. Ia toda lânguida, tirando luva, jogando blusa. E, sutiã que voa, surgem os peitos, muito bem-vindos! Segue a luta pela abolição da calcinha. Ela vira de bunda pros urcos, faz a retirada estratégia e... bingo — acho que durou duas horas essa parte — cai a cidadela! Mas, surpresa, em vez do espreito da chavasca, surge um maldito tapa-sexo, todo em strass e lantejoulas, que alguma maldita costureira teve tempo de bordar. Esse é o gran finale. Ela agradece, recolhe as roupas (?) E sai sob aplausos. Surge em seguida um amazona, de botas, chapéu e quejandos. Só faltou o cavalo. Batia com um chicote no tablado, que me assustava e excitava. Consulto o relógio e quase mando meus encargos às favas. Ali tava bom, mas eu precisava ir.

Saio transparente, esfregando os olhos pra adaptá-los à claritude e à realidade; na minha frente um cara propõe ganhar um dinheiro na porrinha. Passo. Como um churrasco-grego, acompanhado de suco, passo pela Praça do Correio e vou terminar meu trampo.

No ônibus, de volta, Praça Ramos-Vila Yara, sonho com a japonesa detetive e quase crio um problema com a passageira do lado, que me acorda bem na hora em que eu tava quase pegando a detetive. Eu tinha deixado cair minha cabeça no seu ombro. E babado.

 

 

 

 

 

[imagens ©franckie alarcon]

 

 
 
 

João Barboza (Itapevi/SP, 1956). Escritor e funcionário público em Osasco/SP, onde vive. Prepara um livro com algo em torno de 100 crônicas, que publica regularmente em seu blogue Barbozeiras [ http://joaobarboza.blogspot.com ].