*

 

Brasília não é boa com ninguém

antes de decifrarmos

seus dígitos, letras e eixos

 

por não ter sido devorada

por essa esfinge de asas

já me sinto grata.

 

 

 

 

 

 

A estrela e a esfinge

 

destrua o passado que me fez como sou

e mesmo em cacos e extirpada refletirei fria

nos seus olhos vazios de pedra, cimento e cal

 

pensa na imperfeição dos subjetivos pretéritos

e conjura-me intento além da razão perfeita

de seus enigmas vesgos de re-composição

 

na temperança vago quase branda

no meu corpo celeste extingo-me

e meus fragmentos envio como chuva

 

e banharei sua face e essa maldita babilônia

que tem por deserto, seu chão, seu limite

que minhas memórias sejam só espórios

 

fuja ao me ver derramada

dos monstros que criei e rememoro

pois só do pó ao pó estar sem ousadia

 

há séculos busco a musa manca

aquela que os olhos renegam por culpa

e que a farsa regurgita por já tê-la de cor

 

 

 

 

 

 

Resiliência

 

sem lógica ou direção, fui

como lembranças vagas

de manhãs esquecidas

em oposição à verdade tangível

 

quase não deixei vestígios

de minha passagem

corri pelas escadas vazias

antes de amanhecer

 

foi-se o tempo que busquei

a realidade absoluta

abandonei naqueles degraus

sorrisos fossilizados

 

quem sabe algumas dores

suspensas em silêncio

de mal querer soluçar

e ainda olhei para trás

 

certas portas trancadas

não pedem chaves de saída

conformam-se encantadas

com a sombra da dúvida.

 

 

 

 

 

 

*

 

ranhuras de dor e chicote

no leito de corte

gado cativo

em abate, sem redenção

 

ungidos todos

vivos e mortos

na alameda florida

nas costas azuis

de Riviera prostituída

e paridos e deixados

na Avenida São João

 

adversativa

pedra e pau em mártir de algodão

santo sudário, toalhinhas de puta

em profanário, bacia suja

sangue e porra no chão.

 

 

 

 

 

 

Autodestruição

 

desejei o submundo

o cais do porto

a maresia que guarda tudo

o cheiro da morte

 

faltou-me o nome

sobrenome, pão

memória e costela

e ainda quis o desterro

 

destruí minha retórica

remoí minhas vísceras

e servi no jantar

com vinho barato

 

venéreo, contaminei algumas

virgens astutas

doces prostitutas

e carolas malamadas

 

desfolhei cadernos

anotações rasas

versos nulos

para amores vãos

 

e só tenho o que não quero

palavras falhas

mãos calejadas

pensamentos execráveis

 

a vaga lembrança

que resplandeci

talvez amei, não sei,

já faz tanto tempo

 

antagônicos aos desejos bobos

quereres utópicos, ouro dos tolos

almejei apenas ser sozinho

e não sou.

 

 

 

 

 

 

SÉRIE ARCADA

 

Canino

 

I

 

mordedura revelada

sem ater-se à presa

ou à agonia

do olho dilacerado

 

quatro lâminas a se tocar

nas pontas afiadas saboreia

a devoção ao sangue

refestelada na língua

 

entrega-se aos recortes

miúdos e quase mudos

à dor alheia

à liberdade entre os dentes

 

e ao nocauteado resta a lona

os caninos cravados

na nervura da carne

do confete rubro no chão.

 

 

 

 

 

 

Incisivo

 

I

 

cortante movimento de prazer

sob ele curvam sólidos

refestelam líquidos

pervertem aborrecidas virgens

em solstícios sexistas

 

entre lábios e clitóris

confronta a sede dialética

coincide e confunde-se

em exultações e rigidez

 

conas e bocas são iguais

entre incisivos subvertem

vigoram como armadilhas

e caem em ciladas

misoginias e outros jogos

 

entregam-se à gula

não têm pudor

vingam-se em emboscadas

de desejos e gana.

 

 
 

Recado público

 

quando redefinir teus poros

catalogar fracassos

tentativas frustradas

vômitos vazios

por falta de fome

 

e enfim assumir

o beijo seco e parco

pela gula que tinha-me

 

procura-me nos classificados

de domingo!

é lá que publico

erroneamente, meus olhares

desprezados

 

encontre artigos por meu nome:

Diva Etérea Estéril Doidivanas e tua.

 

 

 

 

 

 

A febre

 

"There's a lady who's sure all that glitters is gold

And she's buying a stairway to heaven

When she gets there she knows if the stores are all closed

With a word she can get what she came for" - Led Zeppelin

 

a febre continua

enforquei todas as Alices em mim

ao som de Alice in Chains

não há País das Maravilhas

enquanto ardo

 

matei-me várias vezes hoje

pensando em minhas mãos lavadas

nas cadeiras que desocupei

nos silêncios que reverenciei

basta!

 

cansei-me de ser casta

e conjugar os verbos

no antônimo de minhas vontades

 

mudei de estação

Led Zeppelin me faz esquecer

que estou morta

suspensa nos cadafalsos

que construí.

 

 

 

 

 

 

Paineiras

 

resisti o quanto pude

à constância seca

ao vento do deserto

desisti do ser rude

 

a grama quase verde

o olhar deitado ponte

não leva a outro lugar

nem é o bastante

 

o inverno de Brasília

traz chuva de flores

olhares paranoados

e vísceras aluadas

 

meio-dia, Planalto Central

e alguém me assiste

é sol na catedral

e eu já desisti do riste

 

 

 

 

 

 

Paranóia brasiliense

 

há quem vislumbre coluna

vísceras de concreto

e sentimento

na cidade feto

 

há quem se guie

pelos oxalás

umbuzeiros

lanchas e veleiros

do lago Paranoá

 

W3 invade veias e artérias

dos pedestres e motoristas

circulares sobre negros mares

de asfalto e piche

 

presos em alucinações

zebrinhas no meio da rua

e monstros armados

em vigas e curvas

da cidade reta

 

há quem se perca

no caos das vias

EPIA, EPTG, EPNB

EPGA, Estrutural

e se afogue

no eixo monumental.

 

 

 

 

 

 

*

 

tenho câncer

a maneira simplista

e jocosa

para explicar esse

desgosto

 

a bangueleza

também é efeito

de um cancro

que desconheço

 

trópico?

não o de capricórnio

 

queimem minhas córneas

não quero doá-las

não quero que vejam

o que vi

 

câncer, câncer

e nem acredito

em zodíaco!

 

(imagens ©margo conner)
 
 
 
LARISSA Pinto MARQUES Braga. Editora, escritora, artista plástica, autodidata, nasceu em 1974, na cidade de Itumbiara, interior de Goiás. Vive em Sobradinho, Distrito Federal. Autora dos livros: Entre o negro e o nada,  Infernos Íntimos, O oco e o homem entre outros. Mais em http://www.larissamarquespoeta.blogspot.com.