Mal me Quer

 

Para Natasha Xavier

 

 

Ela segura um ramalhete de margaridas com as duas mãos. Desce pela rua que de nome não sabe, mas a reconhece pelo neon embaçado. Para ela o ponto era um traço, um buraco no caminho é uma mancha. Não lhe conceberam as vistas claras e fizeram questão de escurecê-las. É que esse cravo solto poderia amargar a compota, segurar as margaridas com os dentes e lhe oferecer como troco, retirando cada pétala bocejando um bem-me-quer.

O que não queria era pensar nisso. De chegar lá embaixo despedaçada. Como um talento que não se descobre, ela lhe garantia o mistério para as noites tempestivas para os cigarros longos e cafés pequenos. Para isso os pés em salto alto se adequaram com as falhas das calçadas e com os passos maiores que o seu. Sabia que lhe cabia a metade, a espera e o silêncio. Não transbordaria, pois segurava um ramalhete de margaridas, assim sempre lhe assegurou.

Além de si vidas vibravam, eram belas mas não enfeitavam, eram alegres e choravam em segredo. Ela é uma mulher que em declive sorri para o abismo. Entre olhares esquivos de pessoas desconhecidas, também caminhando por aquela rua agora plana, admite para si que se protege com essas margaridas em punho, assim como eles atrás de alguns graus se protegem contra o tombo, que agora ela sedia ao esquecer que o chão não seguraria a sua descoberta.

As margaridas lhe escapam dos punhos e sem cor somem de suas vistas. Elas voam com o vento para debaixo dos automóveis e se esfarelam no negro piche que respinga nos olhos dela. Afoita e desmemoriada. Levanta e o primeiro passo é como se seus pés tivessem raízes e a cada passo se retirasse cada vez mais do vaso que a vida lhe impunha a viver. Caminha devagar pois não sabia onde estava, se na metade ou já perdida.

Arrastava agora essas mãos pesadas, âncora de seu desespero em não mais carregar. Assumiria a sua nudez ao mundo se preciso. Revelaria o escuro para quem lhe amasse, pois não há a amor sem as trevas. Assim ela caminha pelo seu corpo com as suas mãos agora curiosas, como se lhe esculpisse a própria carne e desse forma a essa consciência em barro.

Ao virar uma esquina, abrindo um parêntese no caminho de quem passa, vê que um pintor tenta retratar um prédio antigo. Aos seus pés, tintas e papéis amassados, restringindo o seu contato com as outras pessoas. Estava ali como em uma redoma de vidro, ou entre velas num ritual macabro. Ele e o prédio. Estava só. Mas ela o observava, desejando também acompanhar a sua oração.

Por quê? Se um prédio não tem olhos, não tem voz e tem na arquitetura apenas o contentamento de acomodar, ela diz rompendo a redoma, o deixando estático, embranquecendo os lábios convidando-o a dúvida. Então disse que a pintasse no centro dessa paisagem, me prove se desalinho ou preencho, ela o chama para iniciar o ritual. O Pintor, como os olhos vibrando já traçando as linhas, responde que sim e mais nada.

Ele termina o quadro com ela já esfumaçando em seus olhos, uma brasa que se apagou e agora estava ali naquelas cores que ele interpretara. Ela o pede o quadro pois já fazia parte dela e não mais podia seguir sem ele em suas mãos. Ele tranqüilo aceitou pois descartava tal apego a uma obra assim rasgada no centro que ela deveria ser. Ela segura a pintura com as duas mãos agradecidas. Não há flor que não conheça os espinhos que possui.

Agora sobe uma rua que de nome não sabe, mas a reconhece pelas vidraças que refletem: o plástico duro dos manequins. Apóia-se mais no quadro do que em seus pés que não reconhecem o caminho, pois não há um norte, uma estrada que a deixe mais plena do que ter uma obrigação, um fardo para carregar. E se assim for, por definitivo, faz que essa cidade, essa vida seja para ela um quadro farto crescente em suas mãos.

 

 

Algum Tempo Contado

 

 

Ensaiei para chegar até aqui.

Dentro de uma bolha um tubo puxa o ar que me sustenta. Luz falsa, estrela em tecido azul, lua de papel machê.  E na medida em que o carro avança mais rápido um grande ventilador balança meus cabelos, mas as rodas não tocam o chão, estão paradas e só se movimentam em meu pensamento.

Não sei se engano ou se sou enganada. Relembro a fala que decorei, me realizo na medida em que me encontro nas palavras. Sou atriz e sei aonde a personagem deve entrar. Minto melhor ao entender a dor. De casa, trouxe um jeans desbotado. O lápis corrido no olho me dá tempero para a década em que me encontro. Fizeram meu cabelo para transparecer decadência, meus olhos vibram em expectativa, um cetim ameniza o medo do erro.

Estou atrás dela que fala por mim.

                                                                          

— Otávio. Otávio.

         (Na terceira sílaba vai abaixando o tom da voz, aperta os olhos como se o crepúsculo ardesse. Uma mão segura o volante e a outra sintoniza uma estação, no rádio toca uma música instrumental que pode ser trompete, sax, gaita, mas tem que ser sopro.)

         — Nove meses esperei gestando uma dor vazia, um balão entre as pernas eu estourei para ver se um filho de você vinha. E nada aconteceu. Carreguei comigo um porta retrato como se uma parte de você me emoldurasse e me levasse para perto de ti. Era só mais uma mentira para embelezar. Você podia rir a cada vírgula minha, dizendo que eu lia demais e amava de menos e tudo o que eu falava era sopro de palavras de outro.

(Na digestão da fala começa a sorrir. Riso sufocado, falta ar no peito, a postura demonstra. O riso vai abafando e já no final ela começa a verter algumas lágrimas. Comprime o rosto e grita, um grito de leoa em parto, boca aberta ao máximo, montanha russa, pé firme no pedal. A câmera foca os olhos no retrovisor. Volta a sorrir.)

 

         Mas precisei de um tempo, chorei mais do que o necessário, me derramei e as mãos esqueceram da direção. Não sei guiar o meu desatino. Desajeitada, carrego esse corpo que pertence somente a ele. Meu rosto agora no espelho tem traços difusos, uma sobrancelha se perde a outra está atenta. Repito as próximas falas, devo me convencer, mas o espelho até consigo enganar, a câmera não.

 

— Com uma fita isolante eu te embalei para provar o meu amor acima da carne. E me desapeguei ao que você chamava de culpa cristã. Seriamos mais apaixonados se um de nós morresse, sim, como seriamos mais belos desprendidos de qualquer caminho.

         (Só se ouve a música alta do rádio. Parada numa rua deserta, ela desce do carro sem pressa e abre o porta-malas retirando o corpo de dentro. O corpo parece um casulo de lagarta, ela demonstra dificuldade ao carregá-lo até um lugar mais escondido. A cena deve ser lenta, como se ela não suportasse o peso desse homem. Quem vê deve querer muito ajudá-la.)

         — Imóvel, rígida. Fui estátua para o seu prazer.

         (Faz uma pausa, como se uma oração concluísse. Volta ao carro e pega um galão de gasolina, segurando apenas com uma mão leva até o corpo, abre a tampa e despeja.)

         — Meu cigarro de volta ao pulmão inflando. Quero você. Em cada trago. Me renovo. Te amo assim embalado, te amo assim em silêncio.

(Com alguns galhos e folhas secas ela enterra-o sem o chão abrir. Coloca fogo nas folhas para que as faíscas façam o caminho até a camada de gasolina e cozinhe o amado.)

— Te amo ainda mais em chamas.

(Quando o fogo aumenta, no carro ela admira as labaredas. As chamas terminam o serviço e ela dá partida no carro.)

         — Merda. Agora vou pra onde?

         (Foque os olhos preocupados, as mãos confusas, o cabelo que divide a visão em qual lado ela deve seguir. Então desliga o som do rádio e começa a ouvir a noite. Alguns bichos quebram o silêncio, o voo de um pássaro noturno a espanta e o carro acelera. Ela deve agora só dirigir sem rumo.)

        

         Horas depois e meu rosto se perde entre eu e ela. Chaves no chão, taça quebrada, parede molhada por vinho. Calcinha e pés na meia. Faço listas para entender o que respinga na superfície. Queria entender isso tudo, combustão e dilaceração. Quero ser atropelada, daqui a algumas quadras, na porta da sua casa. Quero te culpar por não mais me entender, por não mais me achar nessa dor. Não quero mais falar de amor, porque amor me coloca no eixo, no eixo do outro que não me pertence.

          Quero dizer, chupando os pregos debaixo da minha cama, você não existe. Quero sair debaixo e escrever na parede uma frase que me veio hoje quando embalada em chamas eu dancei no ar.

         Vivi, como vivi nesse instante. Gilete descosturando meus pulsos, meu ventre, meu peito, meus olhos.

 

         Agora consigo, me vejo dormindo sob um rabisco feito por outro que me vê com uma lupa do outro lado da tela.

 

 

 

 

   

[imagem ©adrigbc]

 

 

Leandro Mayfair (2010). Escritor não impresso e estudante de Design Gráfico não praticante. Reside em Goiânia apesar de vagar por outras órbitas sem nenhum medo de altura. Pode ser encontrado em @leandromayfair.