Articulista, escritor, pensador, nunca silencioso sobre seu tempo, Lima Barreto  não poderia pois ficar alheio à situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações na sociedade. Retratou e a fez personagem em contos e romances e escreveu sobre a mulher em artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas — sob um caráter de ambiguidade, ora a criticando, por vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo: diz-se "antifeminista", põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas defende a necessidade de instrução para a mulher; repele o ingresso da mulher no serviço público ("... rendosos cargos para as mulheres das classes sociais mais favorecida: e as reivindicações das operárias?..."), mas defende o divórcio; imbuído da moral do seu tempo, retrata a mulher pela ótica comum, mas denuncia sua "absurda" situação de dependência aos homens.

Longe, muito longe da falsa, equivocadíssima acusação de misoginia, posicionava-se na realidade contra o movimento feminista brasileiro, que ele denominava "feminismo bastardo, burocrata", não contra as mulheres, e sim como ojeriza aos signos do progresso republicano —  era, antes de tudo, crítico da mulher burguesa, esnobe e, ao contrário, simpático à mulher proletária, suburbana. Lima Barreto sempre deu à mulher espaço significativo em sua obra ficcional e não-ficcional: comenta a situação da mulher perante o casamento; a viuvez; as oportunidades educacionais e profissionais; a moral que lhe é imposta pelo duplo valor; a desigualdade de julgamento do adultério masculino e do feminino; o mundo da prostituição e o início do movimento feminista no Brasil.

Se, de um lado, no conjunto de textos sobre feminismo, movimento feminino, voto feminino, direitos femininos, literatura feminina, e também sobre mundanismo, moda, comportamento, hábitos femininos, Lima destila permanente ironia crítica sobre a mulher, de outro, no retrato das mulheres elaborado em seus romances, novelas e contos, em que mostra-as sempre com atitude e comportamento progressistas, elas são superiores aos maridos (exemplos de Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos Anjos; Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo; Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; muitas outras em contos, etc) .

Além domais, esse suposto 'antifeminismo' barretiano teve sua contrapartida significativa: em alguns escritos, a propósito de julgamentos de crimes ditos passionais, Lima Barreto defendia veementemente a mulher e atacava os homens, os advogados e juízes que "se atribuem direitos sobre a vida das mulheres, direitos reconhecidos por júris que os absolvem, numa série de artigos e crônicas  denunciando crimes de uxoricídio, nos quais homens matavam 'mulheres infiéis' — e pior eram absolvidos nos julgamentos por 'legítima defesa da honra'" — em que ele ataca os homens "que se atribuem direitos sobre a vida das mulheres" e defende intransigentemente as mulheres que são "como todos nós, sujeitas, às influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores".

Por esses artigos — a que ele próprio  denominou "Tema de Carmen" (sic) — iniciamos a veiculação do conjunto de contos denominado Lima Barreto e a Mulher. [Mauro Rosso]

 

 

 

 

 

  

A lei

 

Este caso da parteira merece sérias reflexões que tendem a interrogar sobre a serventia da lei.

 

Uma senhora, separada do marido, muito naturalmente quer conservar em sua companhia a filha; e muito naturalmente também não quer viver isolada e cede, por isto ou aquilo, a uma inclinação amorosa.

 

O caso se complica com uma gravidez e para que a lei, baseada em uma moral que já se findou, não lhe tire a filha, procura uma conhecida, sua amiga, a fim de provocar um aborto de forma a não se comprometer.

 

Vê-se bem que na intromissão da "curiosa" não houve nenhuma espécie de interesse subalterno, não foi questão de dinheiro. O que houve foi simplesmente camaradagem, amizade, vontade de servir a uma amiga, de livrá-la de uma terrível situação.

 

Aos olhos de todos, é um ato digno, porque, mais do que o amor, a amizade se impõe.

 

Acontece que a sua intervenção foi desastrosa e lá vem a lei, os regulamentos, a polícia, os inquéritos, os peritos, a faculdade e berram: você é uma criminosa! Você quis impedir que nascesse mais um homem para aborrecer-se com a vida!

 

Berram e levam a pobre mulher para os autos, para a justiça, para a chicana, para os depoimentos, para essa via-sacra da justiça, que talvez o próprio Cristo não percorresse com resignação.

 

A parteira, mulher humilde, temerosa das leis, que não conhecia, amedrontada com a prisão, onde nunca esperava parar, mata-se.

 

Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que, para proteger uma vida provável, sacrifica duas? Sim, duas, porque a outra procurou a morte para que a lei não lhe tirasse a filha. De que vale a lei?

 

 

Correio da Noite,  07/01/1915

 

 

 

 

Não as matem

 

Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher.

 

O caso não é único. Não há muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha veio morrer, dias após, entre sofrimentos atrozes.

 

Um outro, também, pelo carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.

 

Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros.

 

Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão.

 

O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.

 

Nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas.

 

De resto, semelhantes cidadãos são idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa vontade, sem coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes desejos; como é então que se castigam as moças que confessam não sentir mais pelos namorados amor ou coisa equivalente?

 

Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas.

 

Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação.

 

O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que só entre selvagens deve ter existido.

 

Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor. Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-Ia nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.

 

Deixem as mulheres amar à vontade. Não as matem, pelo amor de Deus!

 

 

Correio da Noite, 27/01/1915

 

 

 

Lavar a honra, matando?

 

Dentre as muitas coisas engraçadas que me têm acontecido, uma delas é ter sido jurado, e mais de uma vez. Da venerável instituição, eu tenho notas que me animo qualificá-las de judiciosas, e um dia, desta ou daquela maneira, hei de publicá-las. Antes de tudo, declaro que não tenho sobre o júri a opinião dos jornalistas honestíssimos, nem tampouco a dos bacharéis pedantes. Sou de opinião que ela deve ser mantida, ou por outra, voltar ao que foi. A lei, pela sua generosidade mesmo, não pode prever tais e quais casos, os aspectos particulares de tais e quais crimes; e só um tribunal como o júri, sem peias de praxistas, de autoridades jurídicas, etc., pode julgar com o critério muito racional e concreto da vida que nós vivemos todos os dias, desprezando o rigor abstrato da lei e os preconceitos dos juristas.

 

A massa dos jurados é de uma mediocridade intelectual pasmosa, mas isto não depõe contra o júri, pois nós sabemos de que força mental são a maioria dos nossos juízes togados.

 

A burrice nacional julga que deviam ser os formados a compor unicamente o júri. Há nisso somente burrice, e às toneladas. Nas muitas vezes em que servi no tribunal popular, tive como companheiros doutores de todos os matizes. Com raras exceções, todos eles eram excepcionalmente idiotas e os mais perfeitos eram os formados em direito.

 

Todos eles estavam no mesmo nível mental que o senhor Ramalho, oficial da Secretaria da Viação; que o senhor Sá, escriturário da Intendência ; que o senhor Guedes, contramestre do Arsenal de Guerra. Podem objetar que esses doutores todos exerciam cargos burocráticos. É um engano. Havia os que ganhavam o seu pão dentro das habilidades fornecidas pelo canudo e eram bem tapados.

 

Não há país algum em que, tirando-se à sorte os nomes de doze homens, se encontrem dez de inteligentes; e o Brasil, que tem os seus expoentes intelectuais no Aluísio de Castro e no Miguel Calmon, não pode fazer exceção à regra.

 

O júri porém não é negócio de inteligência. O que se exige de inteligência é muito pouco, está ao alcance de qualquer. O que se exige lá é força de sentimento e firmeza de caráter, e isto não há lata doutoral que dê. Essas considerações vêm ao bico da pena, ao ler que o júri mais uma vez absolveu um marido que matou a mulher, sob o pretexto de ser ela adúltera.

 

Eu julguei um crime destes e foi das primeiras vezes que fui sorteado e aceito. O promotor era o doutor Cesário Alvim, que já é juiz de direito. O senhor Cesário Alvim fez uma acusação das mais veementes e perfeitas que eu assisti no meu curso de jurado. O senhor Evaristo de Morais defendeu, empregando o seu processo predileto de autores cujos livros ele leva para o tribunal, e referir-se a documentos particulares que da tribuna mostra aos jurados. A mediocridade de instrução e inteligência dos jurados fica sempre impressionada com as coisas do livro; e o doutor Evaristo sabe bem disto e nunca deixa de recorrer ao seu predileto processo de defesa.

 

Mas... Eu julguei um uxoricida. Entrei no júri com reiterados pedidos de sua própria mãe, que me foi procurar por toda a parte. A minha firme opinião era condenar o tal matador conjugal. Entretanto a mãe... Durante a acusação, fiquei determinado a mandá-lo para o xilindró... Entretanto a mãe... A defesa do doutor Evaristo de Morais não me abalou... Entretanto a mãe... Indo para a sala secreta, tomar café, o desprezo que um certo Rodrigues, campeão de réu, demonstrava por mim, mais alicerçou a minha convicção de que devia condenar aquele estúpido marido... Entretanto a mãe... Acabando os debates, Rodrigues queria lavrar a ata, sem proceder à votação dos quesitos. Protestei e disse que não a assinaria se assim procedessem. Rodrigues ficou atônito, os outros confabularam com ele. Um veio ter a mim, indagou se eu era casado, disse-lhe que não e ele concluiu: "É por isso. O senhor não sabe o que são essas coisas. Tomem nota desta..." Afinal cedi... A mãe... Absolvi o imbecil marido que lavou a sua honra matando uma pobre mulher que tinha todo o direito de não amá-lo, se o amou algum dia, e amar um outro qualquer... Eu me arrependo profundamente.

 

Doutor Bogóloff

 

 

Lanterna, 28/01/1918

 

 

Os matadores de mulheres

 

Preocupações de outras ordens não me têm permitido escrever sobre coisas diárias; mas este caso de Niterói, caso do Filadelfo Rocha, fez-me voltar de novo à imprensa quotidiana.

 

Eu não me cansarei nunca de protestar e de acusar esses vagabundos matadores de mulheres, sobretudo, como no caso presente, quando não têm nem a coragem do seu crime.

 

Eu conheço este Filadelfo desde tenente. Sou funcionário da Secretaria da Guerra há quinze anos. Ele nunca passou de um tarimbeiro vulgar, feito pelo Floriano oficial. De bajulação em bajulação, foi subindo, até que, com a sua máxima bajulação ao Senhor Hermes da Fonseca, foi levado a ser comandante da polícia de Niterói.

 

Ele é quase analfabeto, sem nenhuma inteligência, nunca fez o mínimo esforço mental; entretanto, agora, coberto pelo opróbrio de um assassinato, insinua que o fez porque o seu rival era um simples funileiro. Mas onde foi Filadelfo encontrar superioridade suficiente para julgar-se mais do que o tal bombeiro? Este Filadelfo ignorante, bajulador, que eu via pelos corredores do Ministério da Guerra a pegar na casaca deste ou daquele graúdo, para não comandar as suas praças, é, por acaso, alguma coisa?

 

Com essa tatuagem de galões, eles querem fazer das suas, matando as mulheres a torto e a direito. Eu me refiro simplesmente a semelhantes sujeitos. E digo isso, não por covardia, mas em atenção à verdade.

 

Por exemplo: este senhor Faceiro, que, ontem ou anteontem, matou a mulher, porque teve a franca, a franca franqueza orgulhosa de dizer que a sua gravidez era do seu amor e não dele, não me merece a mínima piedade; mas há tantos outros que eu estimo... Adiante.

 

A mulher não é propriedade nossa e ela está no seu pleno direito de dizer donde lhe vêm os filhos.

 

Mas a questão não é esta. Eu falava do Filadelfo, do pequenino Filadellfo, a quem eu queria dizer simplesmente que nem ao menos ele teve ou tem coragem do seu crime. Espécie de Mendes Tavares!

 

Basta.

 

Lanterna, 18/03/1918

 

 

Como budistas...

 

Tenho tanto que escrever, sobre coisas tão interessantes, que, agora, ao tratar dessa notícia de polícia de São Paulo, eu me arrependo. Tinha de falar do Sol de Portugal, do José Vieira; tinha de falar desse extraordinário discurso do senhor doutor Ildefonso Albano, deputado federal.

 

Há tanta cousa tão interessante, num e noutro livro, que eu me reservo para dizer tudo o que de bom encontrei neles, mais tarde.

 

O que me absorve agora o pensamento é este caso dessa pobre moça que matou o marido em São Paulo. É essa moça que, como todas as moças, não tem experiência da vida e são levadas a julgá-la da maneira mais infame que os charlatães a receitam.

 

Ela pensou que seu marido fosse um homem; ele, quando ela o conheceu direito, não passava de um caçador de dotes.

 

Todos nós, inclusive eu, malgré tout, estamos arriscados a casar com "moça rica"; mas de que nós não estamos ameaçados é de sermos maus para essas moças.

 

O que há nisto tudo é a combinação do nosso espírito muito brasileiro de acreditar que o "doutor" é tudo e a crença universal do dinheiro.

 

Essa moça não se casaria com esse moço, se não o visse armado de um "anel"; ela não daria seu corpo se a ambiência social não dissesse que, com a tal carta, ele valia muitas cousas.

 

E ele não iria procurá-la, se não estivesse armado do que a bobagem dos jornais chama "pergaminho".

 

Houve um mútuo engano. Ele procurou enganar a mulher com o título que o Belisário Pena diz ser científico; ela procurou enganá-lo com aquilo com que os homens enriquecem.

 

Mas todos os dois se esqueceram que entre mulher e marido não há furtos. Está no Código Penal.

 

Entre os dois só deve haver a máxima lealdade. Todos os dois devem entrar na sociedade conjugal com a máxima boa vontade e admiração um pelo outro. O que não pode continuar, é que se faça da mulher escada para subir.

 

Nós temos direito de ter ambições. Eu mesmo quero morrer em Veneza, para ver se ainda lá encontro a minha grande paixão — Desdêmona. O que eu não posso compreender, é que um homem ambicioso transforme a sua mulher, o seu maior amigo, a sua própria filha, em instrumento da sua ambição.

 

Todos esses entes são sagrados; para todos eles, o nosso amor e a nossa piedade devem ser coisa muito pouca.

 

Quando a gente se quer bater, tem muitos homens por diante; e não precisa procurá-los em sua própria casa.

 

A vida, apesar de não poder ser uma felicidade, deve ser uma cousa heróica. E não há homem que tenha esse sentimento de heroísmo que não o deseje encontrar nas mulheres escolhidas.

 

A mulher não é instrumento de ambição; a mulher é um consolo e um conforto para os nossos vícios e as nossas desgraças.

 

Já fui muitas vezes jurado; já sofri muito por causa disso; mas, se eu fosse escolhido para o júri de dona Julieta Melilo, eu a absolveria.

 

Absolvia, minha senhora, porque não gosto desses seres cheios de títulos, que não amam a mulher a quem eles deviam amor.

 

Como eu sou budista, o que eu quero é o esquecimento da vida; e não mais tratarei de semelhante caso.

 

A.B.C., 31/08/1918