NOTAS INICIAIS

 

Saúdo a iniciativa em boa hora levada a cabo pelo CEPAE1 de promover a comemoração em Leiria do 2º centenário daquele que foi, sem dúvida nenhuma, um grande vulto — um dos maiores e como tal justamente sepultado no Mosteiro dos Jerónimos2 — da nossa cultura e, do ponto de vista literário, do nosso Romantismo.

Várias foram as facetas de Herculano, neste colóquio por outros abordadas, como a do historiador, bibliotecário, lutador liberal, agricultor, jornalista. A mim cabe-me falar do autor de obra literária, isto é de criação ou re-criação "fingida", no sentido em que viria a dizer Fernando Pessoa, "o poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente" — e, nele, sobretudo da poesia de A Harpa do Crente e da narrativa histórica de ficção iniciada com Lendas e Narrativas e continuada em "O Monasticon", com Eurico, o Presbítero, O Monge de Cister e O Bobo.

 

 

A poesia de A Harpa do Crente (1838 / 1850)

 

"... POETA ATÉ OS 25 ANOS, SE É QUE O FUI" — viria a escrever...

 

[Muito brevemente e recorrendo, fundamentalmente, ao capítulo homónimo na minha História da Literatura em Portugal — Época Romântica (Porto: Areal Editores, 2004)]

 

Para Herculano a poesia deveria ter um carácter de missão a cumprir, exercendo uma função social, em favor de um ideal que define como o de "ser útil ao Cristianismo e à Liberdade" — o poeta é, ao modo bem romântico, um ser de excepção, um solitário,(como viria a ser Eurico, espécie de alter-ego do seu criador, e herói do seu mais conhecido romance histórico) muitas vezes incompreendido, cuja missão é velar atentamente pela defesa dos seus ideais, patrióticos ou religiosos. Não é, pois, de admirar que os poemas de A Harpa do Crente apresentem um carácter filosófico, que se manifesta em reflexões sobre grandes temas como Deus, (por exemplo no poema "O Salmo" ou em "A Cruz Mutilada"), o Infinito, a Liberdade, a efemeridade da vida, a solidão, a saudade  ou sobre os dramas da Guerra Civil e a necessidade de perdão para os vencidos (por exemplo em "A Vitória e a Piedade"). A sua poesia é uma poesia de carácter meditativo, incidindo sobre factos, monumentos, paisagens ou ainda sobre temas contemporâneos, como a guerra civil e o exílio (em "Tristezas do Desterro").

Trata-se, no seu conjunto, e como diz A. Machado Pires, in A expressão do sagrado na Harpa do Crente de Alexandre Herculano, de uma "poesia religiosa carregada de vivências políticas", em que acontecimentos, coisas, paisagens, dão lugar a reflexões e meditações, num estilo de retórica solene, maiusculada, numa sintaxe algo fora do "normal", em tom de grandiloquência bíblica, e em estrofes irregulares, em verso branco, ou em quadras em verso de redondilha. Revela nos seus poemas, geralmente longos, uma grande versatilidade de formas e variedades métricas.

Quando aborda temas como os da guerra civil e dos seus horrores, revela um grande poder descritivo muito próximo do realismo. Em poemas em que a natureza e a paisagem são o tema dominante, transparece um sentimento de infinidade e o gosto da solidão; escolhe como paisagem privilegiada a paisagem agreste, (o locus horrendus vindo já dos pré-românticos) o mar, a montanha, a tempestade, o sol poente. São particularmente reveladores desta natureza bem romântica poemas como "A Arrábida", "A Tempestade" ou mesmo "A Cruz Mutilada", em que a paisagem surge como símbolo do abandono da divindade.

Herculano escreve sempre na 1ª pessoa, não em nome de um Eu individualizado, exprimindo sentimentos ou emoções pessoais, como sucede na poesia do seu companheiro Almeida Garrett, mas em nome de um Eu que se apresenta como a Voz, o Guia, o Profeta — o poeta vê-se como portador de uma mensagem — daí que, como refere Maria da Graça Videira Lopes3, o seu discurso voluntariamente "se afaste da banalidade, do quotidiano, do pessoal", sendo o lugar do poeta "o da Justiça, da Coragem, da Excepção, o lugar da Moral" — o poeta é aquele que vem trazer a luz, o evangelho, aos "gentios", ou seja, à turba vil, medíocre, irracional. O poema é assim "a palavra do Guia". Daí que muitos poemas apresentem ressonâncias bíblicas e o já referido tom grandioso e solene.

Ausentes a confidência e as emoções individuais, não admira que também o amor esteja ausente dos seus versos (apesar da sua publicação aos 26 anos de idade). E quando fala de si, por exemplo, em Tristezas do desterro, em devaneios melancólicos, vê-se mais como o "exilado", uma personagem, do que como o ser individual que sofre4. Nele, o sujeito torna-se, "não o sujeito de uma vida pessoal", mas "transmissor de algo que o transcende. O Poeta fala 'em nome de'. A sua voz é um instrumento, o seu trabalho, um ínfimo e árduo ofício da palavra em nome da ideia". E essa ideia é sobretudo a ideia religiosa ou a ideia da nacionalidade, de Pátria, indispensável em período de transformações liberais de base burguesa e igualitária.

Ou seja e mesmo com risco de me repetir: temas religiosos (Deus, o Sagrado), a errância e o desterro, a natureza como reflexo do Bem, da Liberdade, de Deus; a natureza revolta (o locus horrendus do Romantismo); a guerra civil e a necessidade de perdão para os vencidos, etc. No fundo, todos variações do grande tema do EXÍLIO — que ele, soldado liberal, viveu em situação amarga em Inglaterra. Nem um só poema de amor...

A poesia romântica de Herculano apresenta-se-nos, assim, pelos temas e pela expressão, muito próxima da de Victor Hugo e muito afastada da de Garrett — esta, feita de emoção lírica de carácter pessoal e confessional, vertida em linguagem corrente e tom confessional. É que, se na poesia de Garrett o Eu é o Eu individual que nos fala de si, em Herculano o Eu é o do Poeta / Profeta que nos fala, não de sentimentos ou emoções pessoais, mas colectivas e de repercussão moral, filosófica, cívica ou nacionalista, em linguagem elevada e "nobre".

 

 

A NARRATIVA HISTÓRICA

 

A ficção histórica de Herculano desenvolveu-se em simultâneo com os seus estudos para a História de Portugal e foi, como a poesia, publicada primeiramente n'O Panorama e na Ilustração e só depois em volume.

Como romântico, privilegiou a Idade Média — também como romântico, via na idade Média, não a propalada "noite de dez séculos", mas a época de afirmação das nacionalidades, línguas e valores europeus. Nessa época "recorta Herculano os caracteres fortes, pela intensidade dos sentimentos e determinação da vontade, vultos dotados de uma forte determinação e motivados por uma íntima energia" diz o autor, atrás referido, do verbete do Dicionário do Romantismo. — "Je suis une force qui va" — concepção do herói romântico herdada, nomeadamente de Victor Hugo e de Walter Scott.

São visíveis nas suas narrativas históricas, a grande religiosidade e sentido do transcendente, do sagrado, que se manifestam sobretudo no sentimento de eternidade, face ao da efemeridade e da contingência da vida humana; o tema do sacrilégio está quase sempre presente — os protagonistas infringem normas ou mandatos divinos, o que os precipita no sofrimento e na expiação. Muitas vezes o vocabulário utilizado é solene e apresentando uma imagística de base religiosa (do tipo "tremendo", "terrível", "solene", "santo", "maldito" ou "lâmpada do santuário", "anjo do Senhor").

As suas personagens são geralmente sobre-humanas, quer na sua faceta de "anjos" (particularmente as figuras femininas), quer na de "demónios". São geralmente lineares, homogéneas, dotadas de um só tipo de impulsos ou sentimentos, sendo nelas, por vezes frequente, o sentimento de vingança. Na narrativa, o Narrador externo ocupa lugar de relevo, com apartes, digressões, apontamentos irónicos ou lírico — religiosos.

O tempo histórico das narrativas é, como já foi referido, a Idade Média, entendida como época em que foi possível fazer vingar, em tempos de crise, valores como os da religião, da nacionalidade, da liberdade, que os heróis de excepção, quase sempre marginais e proscritos, representam — valores que, transcendendo a época, são ensinamentos para os tempos da escrita, que são os conturbados tempos da implantação dos ideias liberais, anticlericais e municipalistas de Herculano. Assim sendo, a recriação dos tempos históricos passados, assume a função didáctica de melhor fazer entender o presente e preparar o futuro.

A Idade Média é-nos apresentada com rigor, na vida quotidiana, na chamada "cor local" dada pelas descrições pitorescas de interiores, de festas, saraus, vestuário, duelos e combates, torneios e linguagem (arcaísmos, vocabulários técnicos).

A par de personagens "sublimes", normalmente membros da nobreza ou do clero, Herculano apresenta personagens "grotescas", à maneira de Victor Hugo, normalmente de extracção popular — mas a que se confere uma elevada grandeza moral e um papel preponderante, como é visível, sobretudo, no romance O Bobo. Visível igualmente é uma tendência engrandecedora: no sublime como no grotesco, em graus extremos, nos grandes crimes e expiações, como nas grandes cenas de heroicidade. É que, justamente, a recriação histórica nos apresenta personagens e situações destinadas a servir de exemplo.

 

 

LENDAS E NARRATIVAS (escritas em 1839 e 1844 nas revistas O Panorama e A Ilustração — publicação em volume em 1851)

        

Estes contos, lendas ou narrativas, publicados em 1851 por Alexandre Herculano, haviam, como já foi dito, sido previamente textos publicados nas páginas de O Panorama e de A Ilustração sendo, pois, contemporâneos da elaboração dos seus 3 grandes romances históricos que foram Eurico, o Presbítero, O Monge de Cister e O Bobo. Ao publicá-los em 1851, Herculano remata a publicação das suas narrativas de carácter histórico, de que foi, o criador, entre nós, na peugada de Walter Scott e Victor Hugo.

O título Lendas e Narrativas aponta para a diversidade e heterogeneidade de textos inseridos na obra. Heterogeneidade e diversidade, porque nela existem lendas — textos narrativos de ficção histórica — e narrativas, de carácter diferente, porque de carácter memorialista, como "De Jersey a Granville", ou de carácter novelesco do tipo narrativa rural, como "O Pároco de Aldeia"5.

Diversidade e heterogeneidade também ao nível da extensão — narrativas ou lendas curtas, como, por exemplo, "O Castelo de Faria" e outras mais acabadas e longas, como "A Abóbada", "A Dama Pé-de-Cabra",  "Arras por Foros de Espanha" e o já referido "O Pároco de Aldeia".

Nas narrativas de carácter histórico é evidente a solidez das fontes a que recorre (cronicões, nobiliários, Fernão Lopes) — tal solidez e rigor são verificáveis nos pormenores de reconstituição histórica, visíveis no concretismo, na descrição pormenorizada de ambientes e cenas, no recurso a vocabulário medieval, por vezes técnico, como o vocabulário relacionado com a arquitectura em "A Abóbada" ou, de um modo mais geral, o relacionado com o domínio militar.

Os heróis de Lendas e Narrativas são seres superiores, de excepção, que se situam um pouco como marginais a uma sociedade em crise e nela se destacam pelo voluntarismo, pela insubmissão às normas — heróis em luta, em oposição às normas sociais e que, não se deixando submeter pela sociedade, contribuem para a modificar, para a transformar positivamente. Tais personagens funcionam assim como típicos heróis românticos que projectam no tempo a eternidade dos valores éticos e cívicos positivos que representam, podendo servir de exemplo aos contemporâneos da escrita: "O tempo aparece, assim, como um continuum simbólico, projecção da eternidade dos valores morais, e em contraste com a efemeridade constitutiva do indivíduo: sendo o herói, afinal, aquele que oscila entre o efémero da sua vida pessoal e o eterno dos valores que, literalmente, encarna".6

De todas as narrativas apresentam particular interesse as já mencionadas "A Abóbada", "A Dama Pé-de-Cabra", "Arras por Foros de Espanha", "O Castelo de Faria" e "A morte do Lidador".

No entanto, uma palavra mais para "O Pároco de Aldeia", primeira tentativa de narrativa rural entre nós, em que se conta a história de um pároco bondoso e simples que sacrifica o seu dinheiro para que um moleiro avarento autorize o casamento do filho com uma rapariga pobre.

Numa primeira parte, de natureza expositiva (ensaio), esboça-se uma tese: segundo Herculano, a religião é uma necessidade afectiva, a que o Catolicismo, com os seus rituais, milagres e santos, procissões e festas, corresponde melhor do que o Protestantismo. Por isso, segundo Herculano, o operário protestante é mais infeliz que o trabalhador português, visto não encontrar conforto numa religião que preencha as suas necessidades afectivas — procurando então refúgio na taberna e na miséria moral. Numa segunda parte, de carácter mais propriamente novelístico, a narração da história do pároco protector de amantes contrariados atrás referida.

Nesta narrativa da actualidade convergem, pois, três 'estilos': "o do ensaio filosófico (apologia do culto católico sobre o protestante); o das reminiscências autobiográficas risonhamente saudosas; o da novela rústica realista, ilustração das ideias do autor"7. São nela visíveis a nostalgia da simplicidade aldeã, o realismo com que nos são apresentadas as personagens, nem sublimes, nem grotescas, bem humanizadas e vistas na sua vida quotidiana e ainda um vocabulário feito de falares e expressões populares, por vezes burlescas, e de onde é possível extrair efeitos cómicos.

 

 

Os romances históricos: o monasticon - O Bobo (1843); Eurico, o presbítero (1844); O Monge de Cister (1848)

 

O Bobo

 

O Bobo, publicado primeiramente em 1843 nas páginas d'O Panorama e sucessivamente refundido, foi posteriormente publicado em volume em 1878. Trata-se da "evocação pitoresca da época da gestação conturbada da nacionalidade portuguesa, observada através das intrigas romanticamente maquiavélicas da aristocracia portucalense" — no dizer de Túlio Ramires Ferro no Dicionário da Literatura, dirigido por Jacinto do Prado Coelho.

 

Análise

 

A acção passa-se no castelo de Guimarães, onde se desenrolam, em tempos de Afonso Henriques, e em cenário de passagens secretas e de subterrâneos, intrigas diabólicas entrelaçadas com paixões infernais, como as intrigas políticas do Conde de Trava — que se desenrolam a par dos amores fatais de dois cavaleiros rivais, Garcia Bermudes e Egas Moniz, ambos cavaleiros corteses e nobres de carácter, apaixonados por Dulce, mulher-anjo. Como observador atento, a figura central de D. Bibas, um bobo, figura grotesca (e, creio, de novo a presença de Victor Hugo e do seu Quasímodo em Notre Dame de Paris) que, humilhado pelo Conde de Trava, se vinga. Nele parece figurar o autor a classe popular em luta contra a prepotência — como afirma o próprio Herculano, ele, o bobo, o truão, é "o padrão levantado à memória da liberdade e da igualdade e às tradições da civilização antiga» As personagens são símbolos, desprovidos de alguma verosimilhança psicológica, encarnando paixões exacerbadas e movidas pelo sentido excessivo da honra (Egas) ou da extrema maldade e perfídia (Conde de Trava). O sentimento de vingança predomina — vinganças terríveis de D. Bibas, do Conde de Trava e de Egas — bem como o de doação e abnegação da figura feminina, Dulce, e também de Egas (ambos renunciam à felicidade, ao verem o seu amor poluído). O trabalho de reconstituição de ambientes, cenas, linguagem é, como sempre, notável.

 

 

O Monge de Cister

 

Este romance, publicado primeiramente n'O Panorama em 1841, e depois em volume em 1848, integra o Monasticon, como Eurico, o Presbítero, tendo como protagonista igualmente um monge, Frei Vasco.

Passa-se na época de D. João I — nele encontramos a narrativa dos sentimentos de ódio e de vingança de Frei Vasco, monge que mantinha a sua grande paixão por Leonor, casada, na sua ausência, com Lopo Mendes, por quem Vasco passou a nutrir desejos de vingança; era missão sua, igualmente, vingar a honra de seu pai, ultrajado por um cavalheiro que seduzira Beatriz, sua filha.

 Movido por esta missão e pelo desejo de vingança pessoal, Frei Vasco assassina à traição, durante uma caçada, Lopo Mendes. Fica preso de remorsos terríveis, que o atormentam e professa, procurando no mosteiro a paz de espírito e a expiação do seu crime. Conserva, porém, as suas recordações dolorosas e rancorosas. Aconselhado por Frei Lourenço, reconcilia-se com Beatriz, que fora, entretanto, abandonada pelo seu sedutor, o camareiro preferido de  D.João I, Fernando Afonso. Mas o abade de Alcobaça, D. João de Ornelas, inimigo figadal de Fernando Afonso, urde maquiavelicamente um infernal plano de vingança, servindo-se do ódio de Vasco. Depois de incidentes e peripécias várias, Fernando Afonso é condenado ao suplício do fogo por D. João I, sendo antes mortificado por Vasco. Frei Vasco, no final, morre arrependido, depois de ter confessado os seus pecados. Neste romance hipocrisias, ambições, jogos e intrigas políticas e traições dão a observar a decadência da nobreza e do clero.

 Como se afirma no Dicionário da Literatura, dirigido por J. Prado Coelho, "convergem netas obra complexa múltiplas tendências os ressentimentos polémicos contra os meios políticos e clericais; o romantismo pitoresco (a procissão de Corpus, o sarau, personagens populares grotescas, como o obeso e venal Mem Bugalho e a loquaz Tia Domingas), historicista, com sugestões de Hugo (Notre-Dame de paris) e das crónicas de Fernão Lopes (a topografia da Lisboa da época de D. João I), tétrico e frenético (fatalismo misterioso: o sadismo de Vasco, possesso de absoluto e de furor sagrados; personagens agindo como 'anjos' ou 'demónios')" — Túlio Ramires Ferro, op. cit.

 

 

Eurico, o Presbítero: "crónica-poema, lenda ou o que quer que seja" (1843) — numa espécie de romance de tese, mal defendida, de resto: a de que o celibato eclesiástico é contrário à realização do amor.

 

Este é, como os anteriores, um romance histórico, mas apresenta características que o tornam diferente e dele fazem talvez a mais interessante obra de Herculano no plano novelesco, que se apercebeu bem da dificuldade em definir-lhe o género. Segundo as suas palavras, trata-se de uma espécie de "crónica-poema, lenda ou o que quer que seja", espécie de poema épico em prosa sobre a época da "transição dos tempos heróicos da história moderna (a monarquia visigótica), para o período da cavalaria", apontando assim para o carácter híbrido do livro (semi-histórico, semi-lendário, prosa e poesia em simultâneo). 

A história do presbítero Eurico passa-se nos inícios da reconquista cristã da península, em tempos de Pelágio (que a iniciou a partir da sua gruta de Covadonga), no século VIII. Era uma época de dissolução de costumes entre os visigodos. Trata-se também de um romance de personagem — a de Eurico — herói escolhido — situado nesse período histórico e nesse espaço da Península ocupada pelos mouros.

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Eurico, na sua tripla faceta de cavaleiro, monge e poeta, é o herói romântico por excelência: superior à média, incompreendido e proscrito pela sociedade, (aqui agindo através da família de Hermengarda), profeta inspirado, movido pelo amor da pátria goda em desagregação moral e política, privilegiando a solidão e a natureza erma e agreste, herói melancólico e triste, incompreendido ("o povo rude de Carteia não compreendia o seu presbítero"), dotado de valentia , de superioridade moral e de coragem —  e consciente dessa sua superioridade moral e física. É igualmente o herói fatal e trágico que arrasta na sua desgraça a mulher amada — Hermengarda,  a típica mulher — anjo dos românticos.

O conflito interior de Eurico, o poeta, de certo modo decorrente da sua tripla faceta de amante infeliz, de guerreiro e de sacerdote, obrigado ao celibato e à castidade, torna-o uma personagem complexa, caracterizada, quer pelo narrador heterodiegético, quer em processo de auto-caracterização (no seu diário- poema, nas cartas, no sonho), quer pelo que dela pensam ou dizem outras personagens (o povo de Carteia, os Godos); quanto às restantes personagens, de que se destaca Hermengarda — a mulher-anjo da história — são de um modo geral personagens lineares, estereotipadas, apresentadas de modo directo pelo narrador, e que não evoluem — personagens de repercussão colectiva ou tipos literários (no caso de Hermengarda, o tipo de heroína romântica). São forças de oposição a Eurico a traição dos Godos (no entanto, é por ela que Eurico se reaproxima de Hermengarda), os preconceitos de classe, a guerra. Mas a oposição mais forte está justamente em si mesmo: nele, e em definitivo, o sacerdote em que se tornou inviabiliza o amor do guerreiro.

Na obra, Herculano, o Autor, está igualmente bem presente: com efeito, nela dá voz, e através de Eurico, espécie de alter-ego seu, ou antes, do narrador, às suas preocupações cívicas e religiosas: o liberalismo, em nome dos quais se condenam os preconceitos de classe e familiares que haviam afastado Eurico de Hermengarda; o anticlericalismo (condenação do celibato sacerdotal), o sentimento de Honra, o nacionalismo e patriotismo, a tolerância; a defesa do sentimento e dos direitos do coração face a todas as formas de intolerância, preconceitos de classe ou religiosos.

Uma obra bem romântica, como vimos, a que não falta a presença do sobrenatural (sonho, visão, mistério), as situações extremas (presença do Destino, coincidências, fatalidade), e também as de extrema violência - de guerras, batalhas, sacrifícios (como o das monjas suicidando-se, no seu mosteiro, para não serem violadas pelos cavaleiros mouros), os cenários agrestes de cavernas, desfiladeiros e montanhas8 — obra romântica a que não falta, também, por vezes, o tom melodramático — sobretudo no que à intriga sentimental se refere.

 

 

Visão de conjunto e conclusão possível Alexandre Herculano

 

Em parte como extensão da sua actividade de historiador e de profundo conhecedor da nossa Idade Média, cultivou a narrativa histórica (contos, lendas e romances), — com ele surgiu entre nós o romance histórico — e, à boa maneira romântica, situou essas narrativas na Idade Média, que ele via como a época de reforço dos poderes populares em torno dos municípios. Como excepção, na sua narrativa, uma narrativa de actualidade, integrada em Lendas e Narrativas, e intitulada "O Pároco de Aldeia".

Foi, como ficou dito, também poeta, encontrando-se a Harpa do Crente e mais algumas poesias editadas em volume sob a designação de Poesias. Foi ainda um grande polemista, militando ardentemente em favor das causas por que se bateu, como o combate ao ateísmo e à descrença religiosa, o municipalismo e a necessidade de descentralização política, o anti-clericalismo e a necessidade de laicismo, isto é, da separação do Estado e da Igreja, defendendo a introdução do casamento civil e a necessidade de extinguir os privilégios do Clero.

De estatura moral elevada, ficou como um símbolo de carácter e de verticalidade, muitas vezes comparado ao seu ilustre predecessor Sá de Miranda que, recordemo-lo, também se afastara da corte e da corrupção que por lá lavrava. ("Homem de um só parecer, / dum só rosto e d'ua fé, / d'antes quebrar que volver / outra cousa pode ser, mas da corte homem não é"9). E não deixou de intervir civicamente, lá do seu exílio procurado, manifestando-se nomeadamente,  contra o encerramento arbitrário das Conferências do Casino, em 1871... Por isso e não apenas, esse politicamente divergindo em muitos pontos, também Antero e seus companheiros o estimaram e foram seus dignos sucessores.

 

 

Notas

 

1 Centro de defesa do Património da Alta Estremadura.

 

2 No Mosteiro dos Jerónimos repousam, apenas, Camões, Vasco da Gama, Fernando Pessoa, para além de Herculano.

 

3 Na Apresentação a Poesia de Alexandre Herculano. Lisboa: Ed.Comunicação, Lisboa, 1981.

 

4 Idem.

 

5 Com esta narrativa iniciou Herculano, entre nós, a narrativa rural, que teria, depois, inúmeros  seguidores.

 

6 Helena Carvalão Buescu in Apresentação crítica a Lendas e Narrativas (Ed. Comunicação, 1984).

 

7 in Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira, dir. por Prado Coelho.

 

8 Como referem M-Eduarda Dionísio e outros in Textos em Situação-3-Os Românticos (Ed. Gradiva).
 
9 Carta a D. João III.

 

 

dezembro, 2010

 
 
 
 
AMÉLIA Pinto PAIS. Nascida em 1943, vive em Leiria, Portugal. É atualmente professora aposentada de Português no Ensino Secundário. Escreveu obras de caráter ensaístico e de incidência didática, sobre Camões, Fernando Pessoa, Gil Vicente, Padre Antônio Vieira e, também, uma História da Literatura em Portugal (3 volumes). No Brasil foram publicados os seus livros Fernando Pessoa — o menino da sua mãe e Padre Antônio Vieira — o imperador da língua portuguesa, estando em curso, ainda, a publicação de Para compreender Fernando Pessoa(todos pela Companhia das Letras). Escreve os blogues Ao Longe os Barcos de Flores e Cristalina. Integra listas de poesia no Yahoo.