Quando o estudo presente neste livro ainda esboçava-se, o desafio que se anunciou, inicialmente, era o de estabelecer questões que fizessem desta uma efetiva pesquisa do campo da literatura, em função, principalmente, da natureza híbrida, ou nas palavras de François Dosse (2005), "impura" da biografia, com seu caráter, geralmente, de exterioridade e estranhamento em relação ao literário — quase alienígena no mundo em que os estudos inevitavelmente deveriam se travar.

Pode-se dizer que boa parte da definição de como se daria este estudo sobre biografias se clareou a partir do meu primeiro contato com a obra do escritor nascido e residente na cidade do Porto, norte português, e que assina suas obras com o pseudônimo de Mário Cláudio. Lembro-me que minha primeira reação aos livros de Mário Cláudio foi de estranhamento pelo tipo de escrita empreendida pelo autor. Períodos entrecortados, sentidos entrecruzados, um empreendimento cujos sentidos me pareciam, muitas vezes, excessivamente deslizantes. Ao conhecer mais proximamente a obra de Mário Cláudio, pude observar, no entanto, que a presença da biografia como mote ou inspiração para suas narrativas é decisiva. Mais até: toda sua obra ficcional tem uma matriz biográfica, ou seja, as biografias são fundamentais na obra de Mário Cláudio, no sentido de ser a fonte principal de sua escrita.

Por outro lado, a essa altura, acreditava que conhecia bem mais a obra biográfica de outro escritor, o brasileiro Ruy Castro — pois já havia lido, anos antes, as biografias sobre as vidas de Nelson Rodrigues (1992) e Garrincha (1995) e sabia que Carmen (2005) estava para ser lançada. Para essa identificação com Ruy contribuíam também, além da nacionalidade do escritor, uma afetiva e efetiva proximidade com a história e contexto da vida dos biografados por ele, ou seja, Garrincha, Nelson Rodrigues e Carmen Miranda.

Em termos teóricos, este estudo desenvolveu-se e constituiu-se a partir de inquietações a respeito de uma dupla dificuldade de conceituação. Desde os primeiros levantamentos bibliográficos, pudemos perceber que as reflexões disponíveis sobre biografias e, mais especificamente, as biografias na literatura, têm tido mais interesse por parte de estudiosos, mas prevalece ainda um exercício descritivo e/ou compilatório. Há amplo material analítico acerca do biográfico na história, na filosofia, nas ciências sociais e mesmo em outras áreas como pedagogia que, cada vez mais, se vale de relatos de vida, por meio da história oral, como matéria de reflexão e debates sobre a educação. Na literatura, a biografia tem merecido mais atenção dos estudiosos, mas percebe-se, ainda, que o tema pode ainda ser mais profunda e amplamente estudado, sendo que seu enquadramento — como gênero ou subgênero — ainda seja sempre motivo de incertezas. Em relação à literatura, a biografia parece ser do campo dos hibridismos — quem sabe, das 'impurezas'.

Por outro lado, a necessidade inarredável de discutir o conceito sobre o que é o literário nos levou a autores com as mais amplas e distintas acepções acerca do que pode ser compreendido como a literariedade de uma obra.  Em nosso levantamento e consulta, pudemos ler e reler textos considerados canônicos sobre o tema e também textos mais recentes como o de autoria de Manuel Frias Martins, "Para a não definição de um conceito para a literatura" (Revista Dedalus, 1992). E exatamente na confluência dos estudos sobre esses dois temas surgiram algumas respostas e muitas outras questões que substanciam esta tese.

Optamos, para a estruturação deste trabalho, por partir de um contexto mais amplo acerca das narrativas memorialísticas, o que nos levou a estabelecer uma reflexão sobre memória para, a partir daí, pensar como as biografias acabaram por se tornar, nas mais diversas áreas como a história, filosofia, jornalismo, entre outras, um instrumento importante de registro e de construção da memória coletiva — uma espécie de chave de compreensão do passado e diagnóstico do presente. No caso da História, registramos a importância do Le biographie, de Daniel Madelénat. O autor apresenta em sua obra reflexões sobre a biografia como ferramenta científica e, ao analisá-la, faz uma curiosa transposição da Teoria dos Paradigmas, de Thomas Kuhn, para o estudo da biografia histórica. Também, nesse campo, as discussões propostas por Phlilippe Lejeune significaram importante contribuição, principalmente algumas noções apresentadas pelo autor como as vidas mítica e heróica e o mitotropismo que se estabeleceram como contraponto para o cotejamento das biografias analisadas neste estudo. A partir desses autores, chegamos também à reflexão da biografia como inscrição artística por meio, especialmente, de Virgínia Woolf. Pode-se afirmar que Orlando, de Virgínia, tenha sintetizado, há quase 80 anos, muitas das questões aqui apresentadas. A biografia, como obra artística possível, é a biografia do ser humano em sua complexidade, mazelas e desejos mais profundos, nos alerta Woolf.

Foi a ponte para, aí sim, pensarmos a biografia no âmbito da literatura. Na medida em que estudávamos as manifestações biográficas e suas mais diversas ligações com as áreas já mencionadas, consideramos importante destacar que, na literatura, as biografias podem apresentar características e estrutura ainda mais distintas.

Para a reflexão sobre o literário, a revisão bibliográfica compreendeu textos de autores como Blanchot, Compagnon, Derrida, Bakhtin. Gennete, Todorov, Carlos Ceia, entre outros. No limite recomendável e do que consideramos produtivo, investimos na reflexão sobre o conceito acerca do literário que, tenho certeza, foi fundamental para, na análise das obras de Mário Cláudio e Ruy Castro, pensarmos sobre a manifestação do literário e do biográfico nas narrativas construídas pelos dois autores. Isso porque as duas noções fundamentais — biografia e literariedade — se encontram, todo o tempo, articuladas neste estudo. A referência a uma delas demandava, quase que imediatamente, a presença da outra. Nesse sentido, algumas idéias, em especial, tiveram papel fundamental para a construção de nosso entendimento: Gennette e sua forma de percepção do valor literário de textos e obras que possuem configuração distinta em relação àquela caracterização que sempre referenciou a Teoria Literária; as discussões apresentadas por vários autores sobre uma não definição para a literatura e o belíssimo escrito de Manuel Antônio de Castro, em que ele trata da ambígua condição de presença e ausência no literário.

Na tentativa de compreensão das biografias, percorremos caminhos disciplinados por outros tipos de conhecimento. Foi assim com noções como a dos biografemas, a partir de Décio Pignatari. Já a idéia de ilusão biográfica, de Pierre Bourdieu, pareceu-nos sintetizar, de algum modo, o que entendíamos ser uma contraposição entre Mário Cláudio e Ruy Castro, apesar de que, mais à frente, tendemos mais a considerar que não há aí posturas conflitantes ou que se contradizem — mas distintas perspectivas sobre o ato de escrever; o entendimento hermenêutico da biografia como possibilidade e forma de conhecimento e compreensão do mundo e, mais ainda, distintas intencionalidades e contratações propostas por esses autores aos leitores a partir das obras referenciadas.

Este estudo analisou biografias construídas por dois autores: Mário Cláudio (português, escreveu a Trilogia da mão, em que biografa três artistas portugueses: um pintor, uma musicista e uma ceramista) e Ruy Castro (escritor e jornalista brasileiro que, entre suas obras de maior sucesso editorial, escreveu as biografias de Mané Garrincha, Nelson Rodrigues e Carmen Miranda). E um dos aspectos que consideramos relevantes para que nos debrucemos sobre eles é o investimento estético-literário que, cada um a seu modo e intensidade, em proposições e contextos diferenciados, empreenderam os dois autores.

Os conceitos, noções, idéias e entendimentos a respeito dos temas biografia e literatura — que tentamos clarear nas perspectivas desta tese — articularam-se de maneira efetiva na análise das obras que empreendemos em dois capítulos dedicados aos autores, em que, mais detidamente, nos dedicamos à análise das obras de Mário Cláudio e Ruy Castro.  Um primeiro esclarecimento a ser feito é que o cotejamento das obras desses dois autores foi precedido por algumas questões para a análise a fazer. A começar pela extensão das obras - enquanto as três obras de Ruy Castro somam 1.453 páginas (Estrela Solitária - 487, O Anjo Pornográfico - 420 e Carmen - 546), toda a Trilogia da mão soma 353 páginas (Amadeo -116, Guilhermina - 117 e Rosa - 120). Ou seja, das obras biográficas de Ruy Castro, a menos extensa, aquela dedicada a Nelson Rodrigues, era bem maior que toda a trilogia de Mário Cláudio. Aspecto, no entanto, que não se revelou um problema para efeito das análises, dadas as profundas distinções no que diz respeito à natureza narrativa e tipo de contratação biográfica estabelecida pelos autores em suas obras, que mereceram atenção e busca de explicitação das variáveis presentes em cada trabalho, na nossa tentativa de demarcar, nas obras em análise, os aspectos do literário e do biográfico — que era o que diretamente nos interessava.

Para a análise das obras, além de um mapeamento e comparação entre as estruturas usadas em cada uma das biografias pelos autores — além do cotejamento entre elas próprias — tentamos perceber, em termos dos aspectos narrativos, de estratégia discursiva e de recursos de linguagem, como se deu a tessitura dessas biografias. No caso de Ruy Castro confirmou-se, com a publicação de Carmen, uma tendência que havíamos percebido: depois da biografia de Nelson Rodrigues (1992) e de Garrincha (1995), em Carmen (2005) parece o autor ter optado por uma escrita menos poética, mais objetiva e documental. Além disso, percebemos nas biografias de Castro um outro movimento, pendular, interno às narrativas, de passagens que se sucedem com maior e menor investimento estético/literário.

As entrevistas realizadas, pessoalmente, com Mário Cláudio e, por e-mail, com Ruy Castro, foram muito importantes na tentativa de transcender as análises das obras biográficas, a partir de questões que tentaram contextualizar e buscar melhor elucidação para distintos aspectos dos livros estudados. Como Apêndice, apresentamos uma edição das entrevistas realizadas com os dois autores. Pequenos trechos dessas entrevistas foram incluídos, oportunamente, no corpo deste estudo.

Este é um estudo sobre narrativas que contam trajetórias de vidas. É resultado, antes, de uma forte desconfiança — ou será uma leve certeza? — de que vidas e narrativas só existem em fusão. E em transfusão. De que o narrado é o acontecido acontecendo. De novo, e para sempre, diferente.

 

 

 

junho, 2010

 

 

 

 

 

Mozahir Salomão Bruck (Belo Horizonte/MG). Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa (PUC-MG), professor de jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (PUC Minas), pesquisador, escritor e ensaísta. Biografias e literatura: entre a ilusão biográfica e a crença na reposição do real (Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2010) é o terceiro livro do autor. Em 2003, publicou Jornalismo radiofônico e vinculação social, fruto da dissertação de mestrado em Cultura e Comunicação pela UFRJ, e no ano de 2008, coorganizou a coletânea Interações plurais (ambos pela Annablume Editora), que reuniu textos sobre comunicação e cultura.