Através dos Escombros | Paulo Miranda | Técnica Mista S/Lona | 200x150 cm | 2001
 
 
 
 
 
 

A noção de ruína é uma boa ferramenta para uma aproximação com o texto enigmático de Diário selvagem: o Brasil na mira de um escritor inconformista e irreverente (José Carlos Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2005), apesar de significar um enigma da clareza, pois não fica nada escondido no texto, mas trata-se de um livro que pode ser compreendido como um diário, um ensaio autobiográfico, um ensaio sobre a doença do corpo e da escrita, ou pode ser lido simplesmente como prosa. Ou nada disso, uma outra coisa. Enigma é o que de melhor a literatura pode apresentar para se diferenciar. Para se distinguir. E para dizer que ainda é possível abrir trilhas, sem querer levar ninguém a qualquer lugar, mas levar a lugar algum. Deixar o leitor estupefato. Textos que se justapõem não para produzir um sentido fechado que acalme o leitor, mas cintilações que formam um "romance arruinado" que pode provocar tanto o leitor levando-o até a fechar o livro, mas o diário permanece, latência incômoda, selvageria propiciadora de muitas epifanias.

Nesse longo diário desenha-se a lei de toda busca: nada conhecer do objeto buscado, conhecer apenas algo de si mesmo. "O significado da vida do homem romancista é construir um romance sobre o significado da vida" (p. 228). "Volto a mim. O espaço da introspecção (fenomenologia do ego) deve ser o meu universo" (p. 230). "Preciso ser escritor o tempo todo" (p. 236). Difícil disciplina: "trabalhar de meio-dia às sete da noite (p. 236).

Nada aprender, desaprender, diz Barthes, e empreender esse longo trabalho de reencontros, de volta, de uma alma por longo tempo ausente. "Quero ser o escritor que escreve a sua voz, tornando-a concreta, como o escultor escreve (inscreve) a sua imaginação na pedra (Barthes, A preparação do romance, p. 102). José Carlos Oliveira ambiciona e é compelido a escrever um romance ou alguns romances, objetos que possam lhe conter, que sejam a sua pessoa, artefatos nos quais ele se reconheça: É assim que quero este diário: tudo dito, nada retórico. (...) pensamos que um poeta há de ser, por fora, aquilo que é por dentro; não compreende que a justaposição dos dois fenômenos, a alma torturada e a personalidade exteriorizada semelhante recebem um nome só que resume a consequência catastrófica dessa justaposição: esquizofrenia (p. 26).

O lado de dentro de toda pessoa é um constante murmúrio, por isso, ao tratar do livro Diário Selvagem, pedirei licença a José Carlos Oliveira para mostrar o discurso de seus dias, que se parece muito com a dicção neobarroca, um modo de se mostrar como leitor/escritor faminto e pródigo de digressões, de conversas com outros textos e autores. Parece-me que ele não escolhe um escritor e o lê sistematicamente; nem é um só escritor, de preferência, a tendência é pular de uma coisa para outra, e incluir todos os possíveis gêneros literários. Tudo se encaixa na sua poiésis, nada é, em princípio, descartado. O descartado, desperdiçado, lixo, o rejeitado, é uma parte de seu texto, e muitas vezes é o texto. Fala sobre o escrever, e sobre escrever um diário: Ocorreu-me que Deus é caçador, pratica a caça ao pombo. Os pombos somos nós, artistas, quando atingimos a maturidade e, antes de iniciar nossa revoada, somos abatidos em pleno vôo (p. 26). Acaba por conformar-se que escrever é bom. Diante da sua doença da alma e a doença grave do corpo ele anota uma frase de uma carta suicida, de Léo Vítor: "Diz que a vida é doença incurável que leva fatalmente à morte". (p. 31).

Entre o poeta e o romancista, o ser-aí dele no mundo diz: "constato que minha intuição, leituras, lembranças e imaginação coincidem (digamos assim) em 30 por cento com a vida real. Porcentagem suficiente para assegurar o domínio do sonho, atestado de ficção" (p. 42). Este, que queria ser escritor em tempo integral, nos afirma: "estou também ansioso por escrever, escrever, escrever (p. 44). E segue: "observo que meus personagens não têm caráter, mas nada posso fazer, porque os brasileiros não têm caráter. Isso é real". E, no mesmo clima do escritor em tempo integral se jura: "sacrifício sexual, ausência de festas, tudo vale, tenho que me tornar escritor, a começar por um best seller digestivo, policial, inverossímil como 1001". Sempre abandonar a retórica (p. 46). "Cada vez me atormenta mais a ideia de que não tenho tempo a perder" (p. 47). "Também não sei se começo pelo real ou pelo sonho. A linguagem é tudo. (...) Estou perdendo o medo de escrever descuidado, começando a valorizar as palavras mais simples, o palavrão, o neologismo fugaz (gíria), inventando sobre a invenção popular. (...) Mas, droga, e a minha disciplina interior? Minha obrigação de escrever ao menos uma página de literatura por dia? Não me refiro ao diário, mas também ao diário, cuja feitura venho negligenciando" (p. 48).

De toda forma, o gesto implicado na narrativa autobiográfica envolve necessariamente a ação ficcional de temporariamente suspender o ato de "viver", busca-se um intervalo para, paradoxalmente, narrar a vida em movimento. O diário íntimo, que parece tão dócil aos movimentos da vida e capaz de todas as liberdades (o que não seria o caso desse visceral diário), já que pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si mesmo, acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe convém, na ordem e na desordem que se quiser. Mas, ao mesmo tempo, escrever um diário é colocar-se momentaneamente sob a proteção dos dias comuns, colocar a escrita sob essa proteção, e é também proteger-se da escrita, submetendo-a à regularidade e à perspectiva do cotidiano. Postulo uma visão ficcional da vida: se tenho um corpo e uma alma, não há neles abismo algum a ser investigado pelo "escritor". Corpo e alma formam um todo imprevisível chamado abismo. Desta forma se elimina a priori a hipótese da (in)verossimilhança. O homem é capaz de tudo desde o momento em que se alça ao prestígio do animal de ficção (p. 163) (...). "Quanto tempo ainda me resta para me reperder e me reencontrar?" (p.166). Quase como se fosse uma taquicardia da alma, um pavor de morte arrancado lá do fundo dos tempos da minha carne, do meu ser. E não se trata de literatura: sensações objetivas. "Ah! Hoje eu realmente gostaria de rezar. Parece que a dor vem vindo violenta. (...) Estou escrevendo em condições lamentáveis, mas a literatura, a boa e a má, sempre foi produzida na adversidade" (p.167). "Amanhã ou daqui a pouco continuarei este encontro sem piedade comigo mesmo. Não posso mais me enganar, daqui a pouco estarei morto".

Há vários movimentos nesse diário, idas e vindas, busca de um conforto físico e existencial sempre provisório. No prefácio ao livro O rebelde precoce, de Renato Pacheco, há um momento em que ele diz que a volta de José Carlos Oliveira à terra natal, retornando de um exílio na terra dos outros para um exílio na sua própria terra, seria uma volta em termos geográficos, culturais, religiosos e literários às suas raízes. Mas, ao mesmo tempo, em seu diário, muitas vezes ele diz dessa temporada e da falta, da abstinência, como de um toxicômano longe de suas drogas, em relação ao Rio de Janeiro: Quero voltar para o Rio. Descontrole emocional. Consequências do confinamento prolongado sem ao menos os companheiros do Antonio's. (...) O nervosismo continua. Sinais de conflito em Vitória: uma oficina literária "dissidente"... Regionalistas contra scholars... e eu no meio (p. 506). Vê-se que um escritor selvagem, que tem o sentido trágico da vida não tem um lugar sobre essa extensa terra, sobrevive em regiões sempre fronteiriças.

Para Heráclito, "a mais bela ordem é como um monte de lixo jogado ao acaso". Às vezes reclama-se também de que a obra de Carlinhos Oliveira ficou pelo meio do caminho. O nosso autor situa-se num país do desperdício, onde as construções se tornam ruínas não por excesso de uso e abandono ou desastre, mas por abandono sem uso, construções inacabadas. Foi isso o que aconteceu com este menino, que saiu de Vitória aos dezoito e voltou menino decrépito aos cinquenta, para aqui morrer sem ter sido devidamente "usado", lido por seus leitores e companheiros.

As 512 páginas de Diário selvagem estão longe de produzir consenso. De um leitor eu soube que terminou a leitura e começou de novo, com a certeza de que havia perdido alguma coisa. Não havia, não encontrou o que perdeu. O que procurava não estava lá. De outra, ouvi que o livro era mesmo ruim, muito duro de ler, não era o que procurava num livro, de jeito nenhum, e o abandonou nas primeiras cem páginas. Isso me faz lembrar um dos aforismas do Carlinhos Oliveira: "a solidão é intransponível. É o mais precioso dos bens. Quem não entender isso não entende nada". Por isso posso dizer-lhe que se ainda é possível contar uma história de amor (pois para mim trata-se disso), ela procura se construir no ponto do arbitrário começo (se é possível marcar o começo e se essa busca não passar de adiamento) numa construção inacabada no meio do quarteirão (de uma rua do Rio ou de Vitória ou de Belo Horizonte, ou no meio do caminho desta vida), será sempre o produto de uma vida interrompida.

Não escapará a uma leitura atenta deste diário a percepção de que três temáticas são, na verdade, aspectos diferentes de uma única e mesma questão. O trágico, a temporalidade e a história são maneiras de investigar a obra de José Carlos Oliveira numa perspectiva ontológica, voltada para a preocupação com o problema do ser e de sua manifestação. O modo inusitado com que ele volta para o tempo trágico e para o tempo histórico indicaria precisamente a capacidade profunda que teve de se deixar interrogar por aquilo que é o essencial na questão do ser: a sua "destinação". Em todo o seu conteúdo humano de dor e sacrifício ou imolação, o autor se mostra como um herói sacrificial, ou seja, a figura trágica é uma "exposição" de um todo, mas de uma forma muito especial. É que ela supre uma carência intrínseca aos próprios deuses: na partilha daquilo que caberia a cada um, estes receberam a beatitude, mas ficaram, por isso mesmo, desprovidos de sensibilidade. Isso explica o destino do herói trágico, pois ele é o destinatário de uma "mensagem" que nem mesmo aos deuses foi dado ouvir. E não deixa de ser curioso observar como a figura trágica da "individualidade em demasia" é a única forma na qual se pode ser sensível ao todo, ter a "sensibilidade do todo", daí o seu ser tão gauche na vida.

Ao longo de sua obra, Borges fez uma série de observações críticas, de intuições, de alusões, que permitem reconstruir uma poética da leitura. Em sua obra define-se uma poética sobre a "nulidade da personalidade", para ele, não haveria um tal eu de conjunto, e assim formulou sua intuição:

Entendi ser nada essa personalidade que costumamos tachar com exorbitância tão incompatível. Ocorreu-me que nunca justificaria minha vida um instante pleno, absoluto, abarcador de todos os outros, que todos eles seriam etapas provisórias, aniquiladoras do porvenir, e que fora do episódico, do presente, do circunstancial, éramos ninguém.

Sob essa ótica manifesta-se uma convicção definitiva: a irrealidade do mundo aparente, a irrealidade do eu individual. Para ele o Tempo não existe, fora do presente o Tempo não existe e que este mesmo presente, contemplado por nosso eu, é de natureza ilusória. Na base destas especulações está a intuição da vaidade de todo conhecimento intelectual e a convicção de que é impossível penetrar no desvão último do mundo (se é que ele existe). Falo de tudo isso porque tenho para mim que nesta obra tão flagrantemente pessoal de José Carlos Oliveira, nesse "diário selvagem", o Tempo fica abolido não porque ele, assim como Borges, se sinta eterno ou porque sua arte seja capaz de preservá-lo para sempre da eternidade da obra, mas porque ele não é ninguém. Ou melhor: é ninguém. Isso é importante, porque negar a personalidade do escritor é negar a personalidade individual. Por isso que neste livro/diário concebe-se o Universo, o pessoal e o de todos nós, como um Livro, cada um de nós (sejamos autores ou leitores) somos simplesmente letras ou signos desse livro; somos parte de um todo, e nos perdemos nesse todo, somos alguém e ninguém.

E é nesse dilema, acompanhado do dilema da solidão e da doença que se debate Carlinhos Oliveira nessa conversa consigo mesmo e com seus leitores. Entremos em 1980... Primeira pergunta: POR QUE ESCREVO O QUE ESCREVO? (p. 196). "Em suma, tenho problemas. Sou escritor passo a passo colocado diante de sua infelicidade peculiar, a ausência de homens humanos no mundo". (...) "Estou parado à espera da iluminação; isto é inevitável. Estou parado e andando, indo ao encontro de mim. Meus temas, meu estilo. Minha filosofia. Minha razão de viver (escrever). É verdadeiramente catastrófico malbaratar o dom que Deus me deu, de às vezes escrever como um anjo (p. 200-1). Importante falar da minha TRAGÉDIA. Meus olhos contemplam esse espetáculo do interior de pálpebras oblíquas, murchas; esses olhos no espelho me lançam uma indescritível mirada, a mais funda expressão de pavor e desamparo que hei visto nos olhos de alguém. "Está vendo? Estamos doente. Você-eu estamos gravemente enfermo. Observo "ele". É verdade: todo ele está doente; todo ele, da cabeça aos pés, acometido da doença mortal de ter vivido. Não se pode chamar um médico, a decrepitude se alastrou por toda parte, não tem cura, esse homem doravante será um morredor (p. 201-2). (...) "Ele é órfão da frente para trás: órfão de seus netos, órfão de seus filhos. Órfão de seu futuro, sua descendência. Tudo isso é muito indizível". (...) Paremos aqui. É atroz. Ler o Eclesiastes. Humilhar-se. Os velhos é que devem fazer a revolução dos jovens, pelos jovens, porque eles, velhos, não têm nada a perder, exceto a vida. O heroísmo deveria ser um privilégio da decrepitude altiva. (...) Espelho e duplicação da dor de existir.

Constrói-se, assim, uma poética da leitura, da sobrevivência pela escrita/escritura. "Malogramos sempre ao falar do que amamos" (Barthes, O rumor da língua). Haveria uma razão para escrever? "Nesse tempo todo eu me preocupava dia e noite unicamente com esta questão: escrever; tem algum sentido escrever? E, em caso afirmativo, escreveremos o quê?" (p. 67). Ótima pergunta sem resposta. As respostas vinham através de sua carência de ser sempre um menino: "Por trás do efêmero arco, alguém chorando sorria a prometer-me um futuro problemático, mas um futuro em liberdade. Doçura minha, problemas sempre me seduziram, de enigmas sempre me alimentei; de outra fome ninguém me nutria, inscrita no céu — a esperança, a prova singular, visível a olho nu, de que uma presença invisível me levaria aos caminhos do amor (p. 87).

O momento da verdade seria o momento do Intratável: não se pode nem interpretar, nem transcender, nem regredir. Amor e morte estão ali, é tudo o que se pode dizer. Na realidade, pouco importam as chances de ser realmente pleno (admito que elas sejam nulas). Brilha apenas, indestrutível, a vontade de plenitude. Ser mortal não é um sentimento natural. A idade traz essa evidência: sou mortal. Condenação à repetição? Ver seu futuro, até a morte, como uma rotina? Para o Carlinhos Oliveira seria assim? Quando eu terminar este texto, este curso, só me resta recomeçar outro? — Não, Sísifo não é feliz: ele é alienado, não pela inutilidade de seu trabalho, mas por sua repetição.

Ser infeliz se traduz frequentemente pela impossibilidade de se dar aos outros. Ora, para aquele que escreve, que escolheu escrever, isto é, que experimentou o gozo, a felicidade de escrever (quase como primeiro prazer), não pode haver Vita Nova que não seja a descoberta de uma nova prática de escrita. Por um lado, acho que, na atividade de uma vida, é preciso sempre reservar uma parte para o Efêmero: aquilo que acontece uma vez e desaparece, é a parte necessária do Monumento recusado. Aquilo que, presente, vai, no entanto, morrer.

Escrever só é plenamente escrever quando há renúncia à metalinguagem; não se pode, portanto, dizer o Querer-Escrever senão na língua do Escrever. Toda narrativa mítica recita (conta) que a morte serve para alguma coisa. Para Proust, escrever serve para salvar, para vencer a morte: não a sua, mas a daqueles que ele ama, testemunhando por eles, perpetuando-os, erigindo-os fora da não-Memória. Talvez o que faz proliferar o sentido: que o depois da leitura seja diferente do antes). As feridas do Desejo podem ser recolhidas, transcendidas pela ideia de "fazer um romance", de ultrapassar as contingências do malogro por uma grande tarefa, um Desejo geral cujo objeto é o mundo inteiro. O romance seria uma espécie de grande recurso — sentimento de que não nos sentimos bem em parte alguma. A escritura seria, pois, a única pátria?

Pensar que a "perturbação" da Memória é diversa: não existe memória pura, simples, literal, toda memória já é sentido. Na verdade, não é a memória que é criadora (de romance), é a sua deformação.

O propósito de Carlinhos Oliveira seria "anotar as mínimas notícias que são sensacionais para mim, e que eu quero "capturar" na própria vida". 1985: Às vésperas dos 50 anos sou um escritor que, encerrada a educação cultural já li todos os livros. Conheci, estudei, assimilei, rejeitei todas as ideias em movimento na época. No momento sou um intelectual livresco. Todos os livros foram lidos. Mesmo os não lidos (p. 358).

A Anotação, a prática de anotar: notatio. Em que nível ela se situa? Nível do "real" (o que escolher), nível do "dizer" (que forma, que produto dar à notatio?). Como se: será que farei realmente um romance? Respondo apenas isso: agirei como se eu fosse fazer um — vou me instalar nesse como se. O importante é o caminho a andar, não o que se encontra no fim — a busca da fantasia já é uma narrativa — não é necessário esperar para empreender, nem triunfar para perseverar. Haveria um desejo de substituir a leitura banal, na qual é preciso ir de parte em parte, por uma fala simultânea em que tudo seria dito ao mesmo tempo, sem confusão, num brilho total, calmo, íntimo e enfim uniforme. Criar (poeticamente) é esvaziar, extenuar, fazer morrer o choque (o som) em proveito do Timbre. Timbre esse às vezes ensurdecedor, desesperado, luta da vida da escrita contra a morte. O amor obriga a falar maciçamente de si: mobilização grosseira (pânica) do imaginário.

Até a questão regional seria uma questão de amor (e de dúvida): O homem é um ser regional. É sua origem geográfica, étnica, antropológica, social. Daqui surgem as diferenças. Daqui surgem os conflitos e as alianças. Daqui surgem as relações humanas. (...) Kafka era judeu, alemão, tcheco. Apátrida perseguido e repudiado. Joyce irlandês. Todos cosmopolitas. Drummond: mineiro até a raiz. Conflito Oliveira X Maria Ignez: choque da mentalidade capixaba, provinciana, preconceituosa, com a mentalidade carioca, sensual, interessada em todos os forasteiros. Vitória imita o ritual do ser carioca, sem o núcleo desse ser. Sou pois cosmopolita por imitação (p. 360).

A percepção das coisas está numa frequência moderada: Me agradaria viver, dia e noite, nesta região. Assim, escutando o discurso do momento, um fragmento do discurso dos meus dias, desatado quando aprendi a falar e que vai comigo até o momento da morte. Gostaria que meu corpo se afeiçoasse a esse fluir. Meus gestos. Gostaria de estar sempre assim, dois ou três segundos atrasado em relação à dinâmica da vida. Seria uma suavidade decepcionante: eu seria um sujeito lento; a suavidade tem um estilo, uma ênfase, um esplendor, uma aura cativante; a lerdeza não tem brilho nem cor, é insípida, inodora. Pode ser que esteja aqui a fonte da literatura autêntica. Que viria daqui porque a partir daqui só se pode falar mediante um esforço retórico, uma predisposição a construir alguma coisa com as mãos; o pensamento se faria literatura como a pedra se faz escultura. Trabalho buscaria como única recompensa a contemplação do seu resultado: esta página coberta de palavras. É a recompensa autêntica (p. 374-5).

Essa disponibilidade para a palavra, para qualquer fim que seja, quer desejemos tomar notas na própria vida (e não num livro) — ou no próprio nível do livro da vida: romance, ensaio, ou nada mais do que o prazer de anotar —, compreender bem isto: para que uma prática da notatio se realize, dê um sentimento de plenitude, de gozo e de "bom uso", é necessária uma condição: ter tempo, muito tempo. Ora, a experiência mostra que, para ter "ideias", é preciso estar disponível, mas é necessário um peso da disponibilidade, como um húmus. Nada, senão aquilo que eu propus a mim mesmo, mas no Diário patenteia-se a corrida contra o tempo, a certeza de uma doença que apagaria os seus dias.

O que a Memória deve preservar não é a coisa, é sua volta, pois essa volta já tem algo de uma forma — de uma Frase. Numa manhã clara de domingo o pensamento: o primeiro dever do animal em sociedade é se emancipar dos constrangimentos sociais. Deus, Pátria, família, sociedade basta! O homem está livre na solidão. (...) Vejamos o que sobra: o sentido da liberdade. A finalidade da vida. A questão crucial do morrer. O suicídio filosófico. Os limites da liberdade. A questão do homicídio. O senhor e o escravo: a questão do poder. A questão literária: há nela algo mais que vaidade e desejo de poder? (...) O que está sendo aguardado enquanto o homem sofre por não saber aonde vai? O que é a mentira e o que é a verdade?(p.323).

"Tudo dito em Nietzsche — Zaratustra. A consequência imediata, no plano da escritura, é o afastamento do preceito clássico da proximidade dos afetos no drama. O homem novo, o herói não tem família nem apego aos bens da sociedade, essa coisa caduca. O herói é livre e solitário" (p. 324).

A caminhada ao encontro do próprio caminho comporta erros, de que devemos rir, e perigos que nos podem aniquilar. Mas temos que ir subindo com nossos próprios pés, sem alternativa desde que queiramos chegar (p. 325). "Ainda não me ocorreu escrever sem esperança. Só agora. Escrever ciente de que literatura é exercício sem futuro. Escrever por teimosia. Viver essa dimensão masturbatória" (p. 337). Desde setembro de 1980 em Guarapari. Dois anos não representam nada diante desta vasta pesquisa no universo da consciência. Meu propósito é saber: quem eu sou, quem vou ser doravante, que tipo de literatura esse homem emancipado, reduzido a zero, vai escrever. (...) A vaidade do artista que quero ser só se satisfaz com um prêmio que espero ganhar em 1992: o Nobel. O homem emancipado emancipou-se de suas lamúrias mais nobres. O escritor em busca do sentimento trágico da vida esbarrou na trágica comicidade dos conflitos (p. 343).

A região no limite do imaginário e do real chama-se Reino das Palavras. É no espírito que surge a literatura. No espírito se dá a pronúncia inteligente do homem, o som inteligível ao outro (p. 347).

Mas, na massa dos tipos humanos, por educação, sensibilidade (classe social também), alguns receberam a marca da literatura, nesse nível, viver, no sentido mais ativo, mais espontâneo, mais sincero, e eu diria mais selvagem, é receber as formas da vida das frases que preexistem em nós — da Frase absoluta que está em nós e nos faz falar como um livro, viver como livro, como Texto.

Há uma extrema dificuldade (ou coragem): a de não dar o sentido, um sentido; privada de todo comentário, a futilidade do Incidente se põe a nu, e assumir a futilidade é quase heróico. "Há perdas triunfantes que rivalizam com as vitórias" (Montaigne, Essais). Por isso o Diário selvagem transcende a morte: "Estou proibido de morrer como um rato. Essa proibição vem diretamente de Deus. Não pode haver dúvida, Deus é quem proíbe um homem, qualquer homem, de morrer como um rato" (p. 377). O pensamento: "deve sair calmo, claro, judicioso; deve ser o que é, sem floreios, deve provir da fonte do pensar, no limiar do murmúrio, ainda antes da ante-sala da pronúncia" (p. 379). Aqui (no reino das palavras onde se deve penetrar surdamente) o pensamento repousa. Aqui a emoção é palavra sem emoção. É aqui que mora a solidão. Aqui, agora, a solidão sólida. A solidão sem lamento. A solidão só. Apenas a solidão aqui agora (p. 389). "Arte da escrita, arte da leitura, arte de viver". Lembrar, escrever, esquecer... Palavra nua de afeto quer dizer palavra nua de carnalidade, pura luz espiritual. A dimensão da suavidade, da câmara lenta, brotando do silêncio e da calma. Pensamentos, palavras e gestos suaves, não barulhentos, brotando do silêncio do ser (p. 390). "Os dias atuais são anódinos mesmo para este caderno. Continuarei buscando. Essa procura orienta a minha existência. Sem ela, já não me seria possível continuar sobrevivendo em meio a tamanha solidão e tanto sofrimento" (p. 393). "Estudarei agora o próprio ato (fato) de escrever (p. 66).

"Um problema evidente nesta minha síndrome de carência é a sensualidade reprimida. O outro é a necessidade imperiosa de ser escritor o tempo inteiro, tirando da cabeça a apavorante perspectiva de que os leitores não vão gostar porque não vão entender" (p. 120). "Minha produção de similitudes psíquicas alcança uma espessura irrespirável; a vírgula significativa; uma palavra qualquer sofre a metamorfose brusca e enigmática das aspas; estou maduro para ser escritor ao longo de toda a página branca, sem pausa; mas decerto nenhum leitor do JB tem a noção precisa do que está se passando; é possível que me achem enfadonho; mas me sinto bem neste novo, túrgido espaço" (p. 125).

"Sair de tarde mendigando calor humano" (p. 135). Escrevo sobre os joelhos dobrados minha prancheta de meio inválido animado de fé, esperança e enérgica determinação de cura. No fundo acredito que sou dono do meu destino corporal. Em outras palavras, a doença seria pouco condizente com o lastro de conhecimento acumulado em minhas andanças de observador infatigável, profissional em atividade de tempo integral, da qual se originam a ilusão e a certeza de que sou escritor (p. 144). "Eliminada a dor, passarei a viver em cima da máquina de escrever. Minha disposição de espírito: vontade e anseio de beleza estilística" (p. 145). "Confesso que vivi, de Pablo Neruda. Uma lembrança concentrada: uma palavra — e de repente o estilo (vontade + desejo) reconstrói o mundo" (p. 147). Desconfio que as pessoas todas as pessoas, exceto os artistas receiam ansiosamente a atividade invisível do espírito em transe criador. Escrever não faz barulho; meditar, muito menos. Em resumo, ninguém ama a augusta liberdade do ser em levitação, o vôo desconcertante do artista imóvel em sua mesa de trabalho (p. 148). "Devo aplicar toda a minha energia no objetivo de me tornar não digo o maior, porém, o mais original dos escritores brasileiros" (p. 151). "Tenho medo de começar minha nova literatura. Será que alguém deseja o meu martírio? Minha destruição?" (p. 154). "Todos aqui pensam que vida e morte é um assunto local, uma festa na qual se entra mesmo sem convite" (p. 156). "Mas não me deixarei levar pela beleza solene. Sou (tenho que ser) prosador, escritor de narrativas" (p. 160). Escrever como forma de vencer a morte. Quem reconhece o drama quando se precipita?

O que pode ser escrito da Morte é o Morrer — e o Morrer pode ser longo. Por que é verdadeiro (e não apenas real ou realista)? Porque essa radicalidade do concreto designa aquilo que vai morrer: quanto mais concreto, mais vivo, e quanto mais vivo, mais aquilo vai morrer. "Me convenço pouco a pouco de que sou escritor adiante do meu tempo e não há remédio. Estou condenado a vôos altos" (p. 204). A controvérsia com Deus, desde sempre: A situação básica, em qualquer ficção, é o homem no planeta obscuro, abandonado pelas constelações. A ausência de Deus há de ser a presença dominante em cada momento de ficção. Essa ausência produz sua angústia cósmica. O resto é banalidade (p. 220). "Sei que tenho poucos anos de vida e devo aproveitá-los escrevendo a literatura que justificará minha existência". "Escrevo para nada este diário e me proponho a continuar trabalhando nele" (p .224) SÍSIFO. Digo em primeira pessoa como se pudesse ser a voz de Carlos de Oliveira: quando produzo anotações, elas são todas "verdadeiras": eu nunca minto (nunca invento), mas, precisamente, não tenho acesso ao Romance; o romance começaria não pelo falso, mas quando se misturam, sem prevenir, o verdadeiro e o falso: o verdadeiro gritante, absoluto, e o falso colorido, brilhante, vindo da ordem do Desejo e do Imaginário.

A posteridade como tribunal de recursos de Deus, a época do leitor: Posso descrever minha época como quem se dirige às pessoas que viverão daqui a 50 anos, quando eu estiver morto, e assim todos os meus contemporâneos, e quando a cidade e o mundo estarão transformados. É o ponto de observação ideal, a começar pelo fato de ser fictício: é quando a memória tem que ser necessariamente imaginação e vice-versa (p. 261). "Uma autobiografia inventada, levada às últimas consequências" (p. 271). A literatura brasileira começa a ver-se no mundo e a olhar o mundo com seu olho peculiar, mas sei que vou fazer a literatura necessária. (p.  272).

Esses dois momentos de verdade: momentos de Morte e de Amor; com certeza é preciso que assim seja para constituir um momento de verdade. O momento de verdade não é desvendamento, mas, ao contrário, surgimento do ininterpretável, do último grau do sentido, do depois do quê, nada há a dizer. Daí a filiação, a Epifania — os dois planos (o do sujeito que sofre e o do sujeito que lê) formam apenas um, no nível de uma noção: a Piedade. Eu sei, a palavra é ruim: quem ousaria hoje falar de piedade! Apenas se admite a palavra quando se trata de ter piedade de um animal. Mas piedade é uma palavra antiga: é o afeto escrito na medida em que ele justifica a catharsis, isto é, a Tragédia. Em 30 de novembro de 1981 ele traça os princípios, crenças, incredulidades: fundamentos de uma percepção do universo. Fala sobre Deus, família, mulher, amizade, esperança (que lhe falta no momento) e sobre os dois últimos que vou citar: "Amor — o amor é um sentimento que se recolhe por falta de correspondência no mundo exterior. Ambição — a ambição de Oliveira é salvar-se pela literatura. Daí que é na literatura, no naufrágio de suas tentativas, que viverá e vem vivendo sua vida, paixão e morte" (p. 273). "Não nos alçamos à dimensão do homem. Enquanto isso, o tempo vai passando; quanto mais progrido moralmente, estilisticamente, literariamente, menos estima vou tendo do leitor. Minha vitória é vista como um fracasso clamoroso: a vitória sobre o que é brasileiro em mim, leia-se o que em mim é pequeno por mesquinharia" (p. 276).

Uma literatura bela, profunda, descrevendo o ser em si mesmo, fechado em si, aberto para o real com todas as ventosas. Clarice. Trevisan. Virgínia Woolf. Eu. Mas é inútil. Só mesmo uma desmedida, uma cega vaidade me faria deslumbrar-me com meu virtuosismo. A literatura tem que ser fraternal. Não lhe basta ser bela, de uma beleza apolínea. Tem que entrar em cadeia com o resto do mundo. Tem que ser dialética. (...) Vivo emimesmado. Não sou feliz assim. Deus me deu o dom de arrancar beleza de mim mesmo, mas não foi para eu ficar atolado em mim (p.  286). "Como não sei o que quero escrever, porque sou escritor, escrevo este caderno que chega à última página — já tenho outro, virgem, esperando. É a minha única atividade, o último reduto do meu afeto" (p. 293). "Estou oco louco mouco. Rouco. Rico. Radical. Rancoroso. Broxa. Feio. Careca. Covarde. Amedrontado. Neurótico. Talvez psicótico. Desamado. Desafetado. Bobo. Ai! Que fiz da minha juventude, dos meus sonhos?".

"Mas também não devo me indisciplinar na volúpia da escritura" (p. 294). "Medo medo medo. Reconheço o estado de medo total, permanente, inibidor. Qual é a técnica para combatê-lo? Medo de ser mal interpretado. Medo de estar escrevendo besteira. Medo medo medo" (p. 298). "Já sou doutor na minha loucura específica de escritor" (p. 301). "Passando a praticar o diário, passo a percebê-lo como gênero literário (...) passo a ser escritor profissional aqui também" (p. 302).

Mas nem o escritor profissional seria um demiurgo, mesmo o demiurgo não tem o monopólio da criação, pois a criação é um privilégio de todos os espíritos. A matéria goza de uma fecundidade infinita, uma força vital inesgotável e, ao mesmo tempo, um poder de sedução, que nos leva a moldá-la. Nas profundezas da matéria desenham-se sorrisos imprecisos, germinam conflitos, engrossam formas apenas esboçadas. Toda a matéria ondula de possibilidades infinitas, que a perpassam com arrepios insípidos. Esperando pelo sopro vivificante do espírito, ela transborda de si sem parar, tenta-nos com mil redondezas e maciezas doces, fantasmagorias nascidas do seu delírio tenebroso, "ainda aqui é tudo muito, demasiado indizível" (p. 203).

A conversão: Meia-noite menos trinta minutos. Suavemente me tornei cristão. Nos últimos dias, o movimento se acelerou: um movimento íntimo que não se pode descrever. De ontem para hoje, operou-se a conversão. Hoje, agora, sou cristão e sou católico. É o sentimento de uma certeza: a certeza que não ouso chamar fé; uma doçura sem alarde; a consciência plena de ter chegado ao fim de um caminho atribulado. Uma consciência plena de sua plenitude, vazia de outras cogitações. Agora é a suavidade (p.395). Estou à mercê das epifanias e não creio que algo me possa vir de outra fonte que não seja a fonte da Luz, o Espírito Santo. Epifania: o nome e o milagre da criação artística, sinal de contentamento de Deus com o artista (p. 397).

Continuando o seu diálogo com Deus ele pede: "Senhor! Dai-me a disciplina necessária para contemplar, nu de afetos, o espetáculo do mundo!" (p. 403). Mas, também: "O espírito só deve receber filtrados os produtos do corpo e da alma. A alma e o corpo adoecem. A alma adoece o corpo (Freud)". "A situação literária — a toda a minha realidade — é o veneno que me mata (...) São pensamentos em carne viva, pensamentos podres que me apodrecem" (p.408). "A estrutura desta escrita tem uma feição. Afeição. Afeiçoou-se a um modo. No lugar nu de afetos precisa surgir uma estrutura nua de afetos" (p.413).

A proximidade da morte e o autoconhecimento: "Eu me sei agora o que sempre fui: um trabalhador. Um pedreiro cujo tijolo é a palavra. (...) Trabalhar em equipe, como na Manchete, eis o meu irrealizável sonho de escritor brasileiro" (p. 419). "Uma obra de engenheiro, a construção do objeto com a mão, a mão que só pode pegar uma palavra de cada vez, uma palavra que caiba no encaixe, nivelada às palavras precedentes". A cada existência corresponde um livro murmurado dentro da carne. Se esse murmúrio pudesse aparecer concretamente no mundo, cada existente seria o autor da própria biografia e a cada biografia caberia título igual: O Discurso dos Meus Dias (p. 421). "O escritor que sabe escrever é aquele cuja fala ressoa límpida, sem sono, sem rouquidão, igual a esses tijolos que se erguem em muros no espaço oco do dia claro. (...) "Não quero e não devo ser sentimental. Mas estou nu de sentimentos. Sem voz. Sem vós. Sem nós. Sem eu" (...) "Uma alegria posso ter: este caderno. É o meu trabalho de doido. (...) "Um escritor que escreve para não ser ferido enquanto escreve" (p. 422). "A realização como escritor não é mais possível nesta vida. Sobreviver é tudo o que posso fazer por mim" (p. 424). "Este destino de escritor, meu sonho mais honesto, não pode ser cumprido nesta minha vida, neste meu país. Devo me conformar à situação dada" (p. 425). "O escritor deve escrever como profissional, obstinadamente. Vale morrer trabalhando assim. Vale ir ao encontro da morte, apressando-a, se a marcha batida deste escritor para a morte é a marcha na direção da sua profissionalização" (p. 427). "Tenho o sentido trágico da vida" (p. 446).

 Não existe matéria morta, a morte não passa de um simulacro que oculta formas desconhecidas de vida. A sua escala é infinita, inesgotáveis seus matizes.

         Solidão calma, resignada. Todos de branco nas ruas. Bela cor, belo costume que se consolida. 1983 não foi malvado. Me deu alguns sustos, me provocou dores terríveis, mas foi um ano fecundo, o ano da pessoa nova: o escritor profissional, no JB e na vida. É vitória de valor inestimável (p. 460).

1984: Mas o pavor da miséria, da solidão administrativa, do desamparo social eis um pavor que se confunde com o meu ser. Sou sempre aquele menino miserável da favela atrás do Orfanato Cristo-Rei. Tenho medo até de me aproximar desse abismo (p. 462). "Não me agrada a ideia de morrer. Não estou maduro sequer para a verdadeira vida. De algum modo decepcionante, ainda estou para nascer" (p. 472). "Para não sucumbir: aceitar as coisas como são; desistir de lutar por mim e por minha literatura" (p. 478). "Já sou outro todo no sentido de que de amanhã em diante não serei ninguém no mundo cotidiano" (p. 479). Já vivemos tempo demais sob o terror da inigualável perfeição do Demiurgo, a perfeição da sua obra paralisou por tempo demais a nossa própria criatividade. Não queremos competir com ele. Não temos pretensão de igualá-lo. Queremos ser criadores na nossa própria esfera, mais baixa, desejamos a criatividade para nós, desejamos o êxtase da criação — numa palavra, a demiurgia, que seria um dos vislumbres de Carlinhos Oliveira ao escrever esse diário de uma vida, essa enciclopédia de sentimentos, sensações, sofrimentos e desavenças com a vida.

         1985: "A arte está ausente daqui. Pode ser que arte e paz resultem incompatíveis. Pode ser que pax = silêncio — artistas fora! Porém queremos estar a serviço da arte — a nossa, arte literária" (p. 481). "Horas e horas perdidas, horas infindáveis perdidas nestes cadernos, fazendo o registro dos acontecimentos" (p. 482). "Perspectiva absurda: não escrever nada — nada: romance, conto, teatro — nada. No fim de tantas abolições, abolir a própria literatura. (...) Não tenho a quem me dirigir. Esta é a situação absurda em que vivo" (p. 484). Mais tarde. "Qual o sentido de tantos sacrifícios que me imponho para escrever livros? Que valor tem a arte literária na ordem das coisas?". "O medo crescente de não ter mais qualquer motivo para escrever" (...) "O trabalho é inútil. A arte narrativa não compensa" (p. 485). O autor, porém, desenvolvia o programa daquela outra criação demiúrgica, a visão daquela segunda geração de criaturas, que deveria opôr-se abertamente ao domínio da época atual. Em meio a tantas lutas com/pela linguagem, com/pela vida, é como se dissesse que não fazemos questão das obras de grande fôlego, dos seres de longa duração. As nossas criaturas não serão heróis de romances volumosos. Seus papéis serão curtos, lapidares, seu caráter sem profundidade. Muitas vezes por um só gesto, uma só palavra, nos daremos ao trabalho de as trazer por um instante à vida. Reconhecemos com toda franqueza: não faremos questão da durabilidade ou solidez do produto, as nossas criaturas serão como que provisórias, feitas para servir uma só vez.

Resumiremos a nossa ambição nesta orgulhosa divisa: um ator para cada gesto. Para cada palavra, cada ato, faremos nascer um homem especial. É isto que nos agrada, este será o mundo segundo o nosso gosto. Assim poderiam ser os devaneios do demiurgo Carlos Oliveira: apaixonar-se por materiais requintados, perfeitos e sofisticados — mas dar preferência ao barato. Simplesmente nos empolga e arrebata a precariedade, o mal acabamento e a vulgaridade do material. Será que vocês compreendem? É como se perguntasse. É o nosso amor pela matéria como tal, pelo que ela tem de macio e poroso, por esta sua consistência mística única.

          "Fora de Vitória não há salvação" (p. 490). "Tenho problemas de vida e morte a resolver, não me posso dar ao luxo de perder a cabeça" (p. 492).

         Em Vitória, alguma hora da noite. As luzes de Vitória vistas de avião, no negrume da noite, formam animais fabulosos, cativantes porque inexistem na dimensão para onde vão os seres inexistentes de nascença. (...) Se há algum afeto, a miséria não será absoluta (p. 495).

         "Letra é som. Cada letra, sem deixar de ser letra, é música" (...) "Tenho fome de absoluto, sim senhores, e detenho o abracadabra que abre a porta desses inumeráveis paraísos, mas preciso viver na adusta realidade cá de baixo" (p. 501).

         São dez da manhã do dia 20 de novembro segundo encontro do projeto UFES: 22 participantes inscritos. Uma piscina vasta, sol, nuvens brancas: "e através desses vazios triangulares os raios de sol penetram no abrigo, sob o qual estou escrevendo (...), e posso continuar escrevendo sobre o contentamento, esse estado de plenitude espiritual que inocula a sensação, o sabor delicioso do corpo de que somos o hóspede passageiro" (p. 508). De repente a chuva começa a descer em gotas esparsas, mas rapidamente engrossa: mas a água e o vento, o bulício e os pingos d'água fazem voar os papéis, desmancham a tinta, arruinando frases que, já que tudo é possível, poderiam figurar algum dia numa coletânea de frases espontâneas, nascidos do puro contentamento de escrever, do mais transparente desapego à fama, ao proselitismo, ao efeito engenhoso, à própria arte literária (p.509). Uma maneira épica de transmitir o inacabamento da existência, sempre precária.

1986: "A doença bloqueia a imaginação. Quando se abrem veredas, o caminho é deformado pela angústia obscura" (p. 510). 26 de fevereiro: última incursão no diário: Estou aqui apostando na calma, descrevendo meu ser estando aqui, sem ansiedade e sem amor à fantasia. Minha voz me foi dada cristalina por mim, tirada duma gorja por mim desbastada, hoje digo agora e nesse labirinto de auroras estou sempre eu mesmo agora. Nove dias depois, Carlinhos foi internado num hospital de Vitória. Ficou quatro dias, voltou ao hotel, voltou ao hospital. Faleceu na tarde do dia 13, lúcido. Sua mãe foi ao velório, revendo pela primeira vez o filho que saíra de casa 33 anos antes.

Para nós, leitores e sobreviventes, deixo o espírito dessa frase de Jules Michelet: Transmiti as coisas como elas existiam então em minha paixão, novas, animadas, candentes (e encantadoras para mim), sob o primeiro atrativo do amor. E assim saímos desse Diário Selvagem, trôpegos e fortalecidos na tessitura da vida e da literatura.

 

  

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Este texto é fruto da conferência proferida pela autora no Segundo Encontro de

Estudos Críticos sobre o Autor Capixaba, Vitória/ES, 2007.

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março, 2010

 
 
 
 
Tida Carvalho (Belo Horizonte/MG). Escritora, pesquisadora, ensaísta e professora de Literaturas Brasileira e Portuguesa e Teoria da Literatura. Doutora em Literatura Comparada pela UFMG com a tese: "Representações de Diálogos dos Mortos na Literatura ocidental. Publicou O Catatau de Paulo Leminski: (des)coordenadas cartesianas (São Paulo: Livro Aberto, 2000).