A poesia no Rio Grande do Norte apresenta dois momentos culturais da maior plenitude literária e (anti) literária: a publicação do livro de poemas de Jorge Fernandes, em 1927 e o lançamento local da poesia concreta, em 1966, com o seu posterior desdobramento no poema/ processo, tendo Moacy Cirne como principal expressão. O Rio Grande do Norte sempre teve bons poetas: Auta de Souza, Zila Mamede, Palmyra Wanderley, Maria Lúcia Lima de Macedo, Myriam Coeli.  A jovem Marize Castro uma das mais importantes poetas, senão a mais representada, é figura de proa da moderna poesia norte-rio-grandense. Sua obra tem especial significado na historiografia literária, entre outras razões por ter conquistado um espaço inóspito que predomina as vozes masculinas.  

Se a história não escreve poemas de alguma forma é ela que lhes abre a possibilidade de nascer, por meio de circunstâncias e acidentes, valores e representações convencionais, como instrumento histórico de sua poesia. Nos anos oitenta, principalmente no Nordeste Brasileiro encontrava-se a poesia com seus cânones, regras e normas estabelecidas. O rompimento com as amarras poéticas dominantes e a busca de uma palavra menos contaminada se inscreve como necessidade básica de preservação de sua poesia, ante as ameaças.

A publicação de Lábios-espelhos, pela Una, 2009, sua quinta obra poética, procura nunca perder de vista o leitor que se disponha a freqüentá-la. Um livro de 106 páginas e 42 poemas, que convém ler e que confirma a importância da boa poesia norte-rio-grandense. Madura e consciente de sua missão poética, nada se perdem em seus versos curto e conciso. Ao definir sua obra, Nelly Novaes Coelho diz ser "sua linguagem, oscilante entre prosa e poesia, nutre-se dos principais mitos e musas da literatura ocidental, tal como os ventos da pós-modernidade o vem exigindo".

Sua obra é um processo em construção, com um modo único de fazer poesia. Uma poesia suave, serena que se chama amor, para acalentar as camas vazias, as bocas silenciosas, os corpos trêmulos, os olhares oblíquos e as mãos envelhecidas. Uma poesia para quem precisa de um sonho, para todos que trazem uma dor profunda do peito. Porque a dor está em tudo, espalhada por todos os cantos do planeta, por todos os cantos de nós. Os sentimentos mudam, mas a dor persiste.

Observar, analisar um texto literário é investigar as suas características estilísticas, porque cada autor desenvolve técnicas próprias e revela uma particular concepção de mundo. Marize Castro produz uma poesia curta, rápida, direta, incisiva, impactante, com grandes momentos luzentes, com fonte de luz em meio às sombras da ausência. A presença do erotismo recorrente em sua obra, agora ressurge com força singular que traduz expressivamente com a magia criadora que lhe é peculiar. Uma poesia do desejo, do amor, erguida pela dor como meio de aliviar a árdua vivência de uma paixão. Marize retoma aos temas mais comuns aos humanos e mais uma vez, exercita sua poética transparente de perdas luminosas, que transitam entre o amor e a ausência. Nesse mundo subjetivo, tudo ganha vida, tudo é cor, sem concessões.

Os poemas de cada novo livro publicado por Marize Castro abrem as portas de uma viagem cheia de encantos, fundamental para se entender a obra lírica marizeana, nos desvendando toda a sua força rítmica e expressiva. A autora tem o poder de levar consigo o leitor para dentro do universo de cada poema, oferecendo-lhe situações que conduzem direto ao âmago do ser humano. Enfim, Lábios-espelhos, poesia de fino afeto que mergulha nas possibilidades internas da linguagem, conduzindo o leitor moderno para aquele mundo de sonho onde o princípio da realidade é dominado pelo princípio do prazer.

O amor e suas múltiplas formas de manifestação são apresentados: a mulher, sua beleza e atração, a carne e o desejo, percorrem toda sua obra, multiplicando-se em imagens e figuras de linguagem que lhe dão consistência e permitem com os quais construírem sua visão da mulher e do sentimento amoroso, especificamente o poema "Lábios-espelhos" que se propõe como se fora um ritual próprio da ocasião, onde a corrente se estabelece e a comunicação se faz, para que a emoção se ritmasse em verso e se exteriorizasse em poesia. Portanto, o amor, a atração dos corpos não precisa justificar, tem seu próprio sentimento de completude, às vezes, amor e desejo de algo que se quer e não se tem, como se ver em Platão, ao buscar a definição de amor.

Um exame mais atento da poesia de Marize Castro mostra que o sentimento erótico tem nela um lugar importante. Embora às vezes esse sentimento se apresente dentro de um clima de tristeza e ternura. Senhora da situação, liberta das imposições para se entregar à poesia de verso livre em pacífica convivência com o equilíbrio e sabedoria, livre da tutela, a poeta atinge o ponto máximo de amadurecimento e a conquista da harmonia. Aqui, tanto a distância como a idealização da mulher amada se materializam nos afetos da saudade.

Assim é Lábios-espelhos, de Marize Castro, uma experiência decisiva de segredos, fantasias e inquietações, desvendadas pela autora que navega por dentro das veias abertas dos sete sentidos. Uma poesia femina, sáfilica, bilitisana que se faz carne, sangue e brota do próprio corpo ferido pela chama. Em lugar dos frutos do ventre e dos produtos de suas mãos laboriosas, mostram a entrega das amadas entre si, as ternuras do coração, das quais os homens por desatenção continuam excluídos. E num desabafo exclama: a poesia não é só adorno, artifício literário; pode ser também testemunho de vida autêntica. Não é só sentimentos, é também reflexão, raciocínio, desejo de compreender e não apenas sentir.

 

 

Dois poemas de Marize Castro

 

Devolva-me

 

Devolva-me a cólera, a lanterna mágica,

que transportei comigo enquanto te amei.

Devolva-me a morte, a doença, a saúde,

o caos, o cais, as âncoras, o segredo,

teus ataques me deixaram forte

teus gozos me atingiram a alma

me fizeram odiar o amor.

Devolva-me a fantasia, as árvores sólidas

plantadas à margem de um delicado homem

que caminhava certo para a sabedoria dos pássaros.

Devolva-me o néctar, o túmulo dos milagres

a liberdade dos escândalos, os bosques, a lei da botânica,

a letargia da não-paixão,

o doce repouso nas águas da noite. 

 

 

 

Lábios-espelhos

 

Espere-me lá fora.

Ainda não estou pronta.

Esqueci meu colar de estrelas

Meu kimono

Minha zori

Meus adereços de gueixa.

Minha língua te recompensará.

Ela (esfomeada) saciará tua fome.

Ela (sedenta) te levará ao leito

mais próximo.

Ela (saliva e cristal) revelará o enforcado

— seu destino, sem nome.

Espere-me lá fora.

Aqui há um naufrágio púrpuro,

um rio de mel que corre entre lábios-espelhos.

Dele, sou filha.

 

 

[Publicado originalmente no jornal Cinform, 1º a 6 de novembro, 2010, Aracaju/SE]

 

 

 

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O livro: Marize Castro. Lábios-espelhos.

Natal/RN: Una, 2009, 100 págs.

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dezembro, 2010

 

 

 

 

Gilfrancisco. Jornalista, professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.