Um homem muito velho está num leito de hospital. Membro de uma tradicional família brasileira, ele desfia, num monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual. Esse trecho explica parte do enredo do romance Leite derramado, de Chico Buarque (São Paulo: Companhia das Letras, 2009). Conforme Leyla Perrone-Moisés, na apresentação do livro, trata-se de "uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos".

O enredo de Leite derramado põe em cena, portanto, certa elite brasileira flagrada em seus privilégios e arrogância, e em seu empenho em manter, a todo custo, a superioridade. Assim, o nome Eulálio d'Assumpção é atribuído a cada filho na sucessão geracional que se pretende nobiliárquica, na intenção de constituir uma "marca registrada" do poder do grupo familiar, que pratica livremente a corrupção, o compadrio, os preconceitos de classe e de raça, entre outros mais.

Nesse cenário ocorrem as lembranças de Eulálio d'Assumpção — aquele que não queria ser chamado como tal, mas de Lalinho, o marido de Matilde; o pai de Maria Eulália, o avô, o bisavô e o já muito confuso tetravô — de muitos outros Eulálios, cada um de sorte diversa, sempre decadente.

Se o nome assinala o egocentrismo cultivado entre gerações, e o "eu" indica o centro de gravidade da história, a eulalia, a boa fala — a linguagem fluida do narrador conduz o leitor por um discurso maravilhoso que trata, bem mais, de questões como a esperança (e a quase impossibilidade) de se ser feliz.

O título Leite derramado não se inscreve explicitamente na história, mas induz analogias. O conhecido ditado popular "não adianta chorar pelo leite derramado", ao nos advertir sobre a questão da impotência diante da irreversibilidade de certos fatos, evoca também a imagem da perda de bens preciosos que, tal como o alimento leite lançado ao solo, não são recuperados jamais. A imagem do leite, para todos os efeitos, surge poderosa na imaginação, pois, além do mais, evoca o alimento pela primeira vez ingerido no seio materno, lugar também fonte do primeiro afeto.

Nesse sentido, essa narrativa trata de um "leite" que não bem alimentou; e de bens preciosos que, de certo modo, desperdiçaram-se no plano afetivo. O pai e a mãe que não sabem amar; a mulher que não sabe ou não pode amar, e o homem — filho, marido e pai — que a eles sobrevive, índice e também cúmplice do contexto. Do descompassado enredo familiar-amoroso, resta a Eulálio, no leito final da longa vida de idoso, sonhar incessantemente com a mãe e a esposa, ambas já perdidas. Assim, ele revê suas faces, corpos, cabelos; ouve o timbre das vozes, e recobra odores e texturas da infância. Do pai, recorda sempre a surpresa e o espanto. Além desses, outros personagens complementam a ilusão da vida ao vivo da literatura.

Ao narrar os episódios de sua existência, num movimento de fluxo-refluxo da memória, o ancião/narrador carrega consigo o leitor e provoca reflexões e emoções diversas. Ao relembrar para possuir de novo suas relíquias amorosas, Eulálio derrama nos ouvidos-olhos das páginas, uma encantadora ladainha; uma comoção verbal convulsiva; uma singela cantilena; ou um belo acalanto. A sonoridade dessas ondas "leitosas" bem faz lembrar que o escritor é o nosso já imortalizado compositor e musicista.

Leite Derramado oferece aos leitores alimento sem desperdício: nutriente para mentes ávidas de conhecimentos sobre a existência, as relações familiares e a sociedade brasileira.

 

 

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O livro: Chico Buarque. Leite Derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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junho, 2010

 

 
 
 
 
France Gripp [de Oliveira] (Governador Valadares/MG). Formada em Letras, interessou-se pela literatura, colaborando com crônicas para os jornais de sua cidade, e participando da edição do periódico cultural "Poet'Arte". Professora de Letras, mestre em Teoria Literária pela UFMG, leciona Língua Portuguesa e Produção de Textos na PUC Minas, em Belo Horizonte, onde vive. Publicou Eu que me destilo (1994) e Vinte lições (Dimensão, 1998). Letrista, é parceira de Basti de Mattos no CD Luanaluz (2002). Tem poemas, contos e crônicas publicadas nas coletâneas A arte do professor e Palavra de mestre, (SINPRO/MG, 1996/1997/1999), Saboreando palavras (SESC/MG, 2006), Terças Poéticas jardins internos (2006), Antologia ME 18/Mulheres Emergentes (2007) e Antologia Poesia do Brasil (RGS, 2008). Participa da coleção didática de língua portuguesa Tudo da trama/tudo dá trama (Dimensão, 2000), e obteve o 2º lugar no 4º Concurso Internacional Mulheres Emergentes (2002). Tem publicado regularmente no "Jornal Aldrava", Mariana/MG, e realizou a exposição "Poesia e Forma", com a participação do design gráfico Roberto Marques, no Parque Municipal Renné Giannetti, em Belo Horizonte.
 
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