Wilmar Silva em Rio Paranaíba, fotoimagem Sandro Vieira
 
 
 
 
 
 
 

A Crítica

 

Quando a linguagem padrão engessa a Fala Poética, é tarefa urgente do Poeta a criação de uma nova Linguagem, através de uma Reforma Linguística, com termos ou vocábulos novos. Exatamente assim ousou James Joyce na prosa, em Ulisses e Finnegans Wake, e Guimarães Rosa, em contos e no romance Grande Sertão: Veredas. Assim ousou Maiakovski, no Futurismo russo, assim ousou Ezra Pound na poesia elegíaca, inspirando os Concretistas, com a exploração da 'palavra-em-si', até a 'palavra-objeto'.

Estes 'reformadores' ousaram uma nova forma de Escrita, que vem afrontar os padrões ossificados pela mesmice, pelo 'óbvio ululante', quando de tanto uso as palavras perdem o acesso ao sensível, tornam-se 'chavões', antigos sentimentos tornaram-se 'frases feitas', tudo vulgariza-se, cai no banal. O reformador atua como Interferência: obriga o 'sistema linguístico' a se re-adaptar, para abrigar a agudeza da 'afronta' (assim criou-se toda uma cátedra em torno de Joyce, e em torno de Rosa — interessantemente, homens com pós-nomes femininos, o que por se só gera alguma ambiguidade, deslocamento)

Esta ousadia ocorre muito em 'forasteiros', naqueles que abandonam uma pátria, uma cidade natal, em busca de ares outros em cidades, países outros. O 'forasteiro' acaba por sentir-se deslocado, e começa a construir seu 'próprio mundo', quer será diverso, e será depois digerido pelos que não mudaram, e ficaram pra trás. É o fenômeno de toda Vanguarda: ir na frente, 'com o facão na mão' (numa imagem resgatada pelo escritor Vinícius Fernandes Cardoso) para desbravar (ou para criticar/resenhar) a novidade. Depois, os outros seguem a sombra dos Desbravadores, os Gênios.

Então, o fenômeno se explicita: Wilmar Silva, o autor de Cachaprego não é belorizontino, mas de Rio Paranaíba (próxima a Araxá), assim da mesma forma que Carlos Drummond de Andrade era de Itabira, Juscelino Kubitschek era de Diamantina, Cyro dos Anjos era de Montes Claros, Pedro Nava era de Juiz de Fora, X era de A, Z era de B, e até o fim do volume, pois parece que Belo Horizonte só é mesma agitada pela passagem dos 'forasteiros'. É que os filhos da terra são mesmo muito acomodados...

(Culpa não apenas de BH! Vejam a História: parece que só mesmo o estrangeiro, o Ausländer, para agitar a mornidão, a estagnação dos nativos. Assim, Alexandre Magno não era grego, era macedônio. Trajano não era romano, mas da Hispânia. Napoleão não era francês, era da Córsega. Stálin não era russo, mas da Georgjia. E Hitler não era alemão, mas austríaco. Etc., etc.)

A publicação de Cachaprego, em si, já é um marco. Não pela obra apenas, mas pela localização: os jardins internos do Palácio das Artes. O Quartel-General (perdoem-me o militarismo) dos Artistas Mineiros do mainstream. O palco dos menestréis e bardos para o fino ouvido da Burguesia (perdoem-me o marxismo) E com a presença de vários poetas outsiders, marginais, geograficamente dispersos (gente de Betim, Contagem, Sete Lagoas, Nova Lima, e outros interiores) misturados aos poetas da BH downtown.

Um marco também pela obra, claro. Uma escrita que desestabilizou muita gente (inclusive este Autor), e ficou suspensa nos olhares perplexos dos leitores (que viviam assustados com o ANU, e depois seriam apaziguados com Estilhaços no Lago de Púrpura). Tudo porque a obra de Wilmar Silva não dá tréguas: sempre incomodando, sempre interferindo, criando mal-estar. Como se somente ele tivesse a 'nova forma', aquela que vai nos redemir.

Durante uns dois anos eu mesmo pensei assim: o Wilmar quer arrumar barulho. Todavia o Poeta pode ser performático, mas ele é sério. Não está aqui brincando, não faz teatrinho (é ator profissional, aliás), mas Poesia, e quer ser reconhecido. Então com Estilhaços, ele não mais deve a ninguém. Estilhaços é a Obra, visceral como as anteriores, e lírica como nenhuma das anteriores, talvez com exceção de Arranjos de Pássaros e Flores (outro 'clássico' da Novilíngua Agrolírica).

 

 

A Obra

 

A publicação de Cachaprego é o Manifesto da Reforma Agrolírica. O que é isso? Reforma Agrolírica: mais do que reforma da Expressão e da Escrita: uma Reforma do Sentido. "Voltemos ao Campo", eis a proclamação. Algo de bucólico, de Arcadismo? Anseios dos "Alberto Caeiros" em nós? Voltemos ao Campo: assim o simbolismo de Grande Sertão: Veredas. Por que? Pois, a cidade está falida. Está sufocante e sufocada. A cidade fede: gasolina, diesel, urina. A Reforma Agrolírica é também Reforma Agrária: terra para todos, e não aquela cova da Vida Severina, "é a parte que te cabe / deste latifúndio" (J C de Melo Neto)

A Reforma Agrolírica não é apenas textual ou ortográfica. Limitadas e logo superadas. A Agrolírica é linguística, teatral e fonética. É sobretudo expressiva. Como fazer a Poesia resgatar a 'frescura' (a novidade) das primeiras palavras? Como exumar a proto-linguagem? Como trazer novo vigor aos verbetes e novas expressões aos chavões? Assim, o Poeta jogou o Super-Ego pela janela, abandonou as Repressões, e deixou vir à tona as manifestações do Recalcado: as falas bestiais (no bom sentido!) do Id sub-Egóico. (Perdoem-me o freudismo)

Primeiro que a noção de Eu (aquela 'positivista') não faz sentido aqui. O Eu é uma dispersão nos Elementos (Água, Terra, Ar, Fogo) e uma Pulsão solta, ao mesmo tempo ave de rapina e presa, ao mesmo tempo carrasco e vítima. (O Eu que desde Baudelaire, Poe, Dostoiévski, Nietzsche, Freud, Lacan, Sartre, percebemos como fragmentado, não passando de mera 'ficção' e 'jogo de máscaras'.) O eu é sem forma e cheio, é sem rumos e ambicioso, é todo lírico e profundamente árido e cruel.

 

Eu sou corvo sou capimerva para quemia febre nunca amofine meuencherto de plantas e minha mão plantasndo os raios de relampagosjiase

...

 

eu venho de longe de onde nem eu mesmo sei onde fica estas lonjura nunca vista e mais uma folha dezinco para zincar e folhar estas

 

...

 

sou a faísca fugidia que vemb ramir em meupapel
de casa onde abroos braços e encontro esporasnos pés e mesmo quando
abroosbracos e abraço onada eestico osdedos ecresem as unhas em busca de um sol
em naco e nesgas de febre para adormieser oinvernoqueiberna umloboerval
umcoiotesolto umalontranapuberdade que me anoitece no seio nop ólen que étodo
grude parauma noitada na calada da noite eu escuso no escuro sou o espantalho
que espantava pássaros e arribados e agora sou espanto na sombra de um
espantalho

 

....

 

E mil outras descrições personalificadas de seres animalescos, de entes da Natura, soltos e em redemoinho, igual diabo e saci-pererê, deixando os cabelos em pé e as bocas abertas, a lembrar que a descida ao intimo de si-mesmo é vertiginosa e mui perigosa ("se eu conhecesse a mim mesmo, eu fugiria", disse Goethe), que a vida é um sertão pedregoso ("viver é muito perigoso", "o sertão é dentro da gente", "o sertão está em toda parte", vai dizendo Riobaldo) e que é uma viagem sem guias — a vida não tem ensaios — a gente já nasce em cima do palco: escolha então a tua máscara!

Mas aí o Leitor aponta primeiro a 'estranheza' linguística — do mesmo jeitinho que fizeram com o Rosa — e deixa de lado o Chamamento: ousas conhecer a ti mesmo? (coisa que um certo Sócrates de um certo Platão já tinha dito há mais de dois mil anos!) A linguagem 'estranha' é apenas um teste: o primeiro do labirinto (e confesso que eu mesmo — o Crítico-Mor — estremeci.) A linguagem é afiado espinho de cactus, é lâmina de abrir peixe, é ferida gotejando sem socorros. Então, o Leitor dá um salto e berra: que diabos é isso?

 

Cansao/ esperoia / aceino / deulgum / meues / liqueido / ardsente /

 

nsanhaçom caocantante / papaeis / escarevo / dsaesearto / cantochaoa

 

aégua / maeu / pestge / óipio / diamtante / dianamite / atrauvesso /

 

carnefecinan / jutasombiram / mesmios / quebraanzoal / ntoviago /

 

bicosquebrados / gambvás / deumalontra / árovredod / estilhasasdos

 

eis alguns exemplos de 'estranhezas' que pontuam o texto hermético (eu adoro esta palavra!) e à espera da pronta intervenção de um especialista em léxicos — aquele que vai explicar, catalogar e dar significações engessadas ao verbetes, igualzinho fizeram com o léxico do Rosa. (Então, precisaremos de um outro 'Wilmar Silva' e assim por diante...)

Mas creio que tais 'verbetes' nascem de um espontaneísmo da Escrita, tal uma escrita espontânea dos Surrealistas, muito usada pelos escritores-datilógrafos (vide um Jack Kerouac ou uma Clarice Lispector), onde a escrita hipnótica é intensificada pelo dinamismo dos dedos — sendo a caligrafia mais lenta... No mais, experimentem 'traduzir' tais 'neologismos' (ou 'neo-grafias') e elas perderam a 'magia' (do mesmo modo que traduzir Ulysses e Finnegans Wake, ou passar Grande Sertão para o alemão. (Quem já leu a correspondência de Rosa com o tradutor alemão Curt Meyer-Clason? É sensacional) Experimentem:

 

cansaço / espera / aceno / meus eus / líquido / arde sente (ardente)/

 

ou

 

canto - chão / notivago / gambás / árvore-arvoredo / estilhaçados /

 

o que conseguimos? Somente voltar a 'forma de dicionário' (aquela forma engessada da palavra, da qual o Poeta a libertará) e deixar 'tudo como está', sem nenhuma tentativa de 'exumar' a proto-linguagem, aquela antes da 'burocratização' do mundo (O Burocrata é aquele que 'desencanta' o mundo, segundo uma leitura de Weber).

A presença do corpo e da sexualidade é outra afronta. Desde seus primeiros versos, o Poeta Wilmar Silva mostra que é um corpo falante, não um 'figura de linguagem'. Seu corpo não é uma metáfora, é entranhas, cuspe, suor, cheiro, gestos. Não é um 'corpo literal' mas um 'corpo de delito', a denunciar quando a Palavra despreza o Corpo (graças ao nosso Platonismo cristão, que continua atacando o Corpo. O que muito incomodava Whitman, que escreveu: "Sagrado é o corpo do homem / e também sagrado é o corpo da mulher, /
sagrado — não importa de quem seja
." )

E o Poeta esta ciente da sua 'missão' de resgatar o simbolismo e a validade do Corpo, neste tempo de hipocrisia, outdoor de lingerie e revistas pornográficas na sala-de-estar. A língua ferina do Poeta ousa dizer o que anda escondido nas mentes sujas que andam com poses de santorrões, em linguagem de Tartufo pra inglês ver.

 

meu destino é ser um animal felino e provocar a fagulha de olhos que me olhem
antes que os olhos virem gralhas longe das folhas que folham os bicos deminhas
botas que farfalham atrás de linces a cego faro olho o próprio olho da fome onde
sou arrefecido no cardume do escuro e mais que a fome do mundo e mais que a
boca famélica sou vadio

 

Como se a Poesia fosse mesmo 'missão' (não mais um Sentido que inventamos para viver, além dos 'imperativos fisiológicos) e o Poeta mesmo vivesse se espantando com suas ousadias (aliás, sem 'assombro' o Poeta mesmo não escreveria, não recitaria, não sairia de debaixo das cobertas), como um cão a se surpreender quando ouve o próprio uivo para a lua,

 

sou espanto e sombra sou espantado e sou o espantalho na casa de
lona onde sou vira-lata e meu latido fosse uma fala e minha fome tivesse

uma bandeja e minha sede uma talha eu caço meu semblante na poça

d’água e um fogopara afogar a sede que racha a boca onde procuro

um açude piscoso na lâmpadaque me enxerga de longe através de

árvores as sombras de minhas pálpebras onde moinhos de sobrancelhas

arremessam eu todo calado e meu mundo mudo eu com minha lanterna

presa dentro de meus olhos e dentro de minha boca

uma palavra impronunciável como o amor

 

Repito: sem o 'assombro', o Poeta não produz (perdoem-me este industrialismo), então o Poeta precisa, urgentemente, sempre se assombrar, se surpreender, se deixar laçar por novidades léxicas e fonéticas, ou gestação de palavras, ou pretensão de Desbravador, para que a Novilíngua possa ser concretizada — e, se possível, publicada. É esta Novilíngua de Cachaprego (e de ANU, e de Arranjos, e de Estilhaços) é que denomino (sem patente ainda) Agrolírica. E Reforma Agrolírica é a Reforma Agrária proposta por um ousado Poeta Wilmar Silva, para remodelar nossas sensibilidades urbanas — asfaltadas, concretadas e banalizadas. 

 

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O livro: Wilmar Silva. Cachaprego. Belo Horizonte: Anome Livros, 2004.

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março, 2010

 

 

 

 

 

Leonardo de Magalhaens (Leonardo Magalhães Barbosa). Crítico literário, escritor, tradutor, escreve e traduz desde os 15 anos. Tem engavetados três volumes de poesia e três volumes de contos, além de dedicar-se a um ciclo de romances em seis volumes. Divulga sua contribuição ensaística de crítica literária, especializando-se em autores vivos, demasiadamente vivos. Ocupa-se da promoção de eventos para a OPA! (Oficina de Produção Artística), ONG da qual é o atual Secretário. Belorizontino, atualmente, estuda Letras na FALE/UFMG, com ênfase em tradução. Escreve o blogue Leitura e Escrita e Traduções.