UIVO POR ESSA COISA DE PASSAGEM

 

 

A partir de certo ponto não há mais retorno.

É este o ponto que tem de ser alcançado.

                   Franz Kafka

 

 

essa coisa de passagem

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fale à vontade

conte toda sua história.

      Max M Egami

 

 

 

 

i

 

essa coisa de passagem castigava-me sem descanso. ficava todas as tardes olhando a estrada além do portão. quem se não ela me dizia de avisos e premonições. eu ficava a princípio acompanhando silenciosamente o coro da cachorrada e guardando as horas. cachorro sempre volta quando sai. só o vento talvez saiba de seus passos além deste portão. com olhos fixos dizia antever as duras penas na cidade grande. comida quentinha, roupa lavada, como então. eu forcei a cabeça em um sorriso entre amanteigado e impaciente.

por que não poderia, apenas para mim mesmo, desfazer este equívoco?

avisos e premonições sempre foram soprados ao meu ouvido.

as tardes e as incertezas, se me pesam, bastam-me.

não disse a ela que as palavras vibrariam desabrigadas no espelho de meus olhos marejados.

não disse que o vento nos corredores e beirais exasperam mais ainda os olhos atrás da vidraça.

não disse que estar sempre à véspera é eternizar-se vencido da espera.

não disse.

 

o choro rebentaria em convulsivo uivo e, mais uma vez, rabo entre as pernas, me aprisionaria à porta.

 

 

 

 

 

 

ii

 

obedece essa coisa de passagem às formas da palavra desassossegada como um uivo voltado ao chão tantos anos depois. formas que seguem assim um papo de vísceras. quentes raivoso. outras, numa goela de abstração, incham à custa de muitos exercícios espirituais por onde, caçador, persigo-me nos planaltos e contornos da dor.

percorro-me corredor porta portão. atravesso muro a muro o dia claro para uma dor inteira. cato-me na gravidez de uma partida tantas vezes adiada que uma estrelinha vem à luz dar-me o ofício de cantar o real, assim como dar de beber aos predadores.

 

quem diria que uns poucos cães, mesmo quando baba abundante escorre, resistem à lua cheia, e o uivo, se lhes escapa, passa despercebido num impressentido latido entre os dentes.

 

 

 

 

 

 

iii

 

tento desembaraçar-me dessa coisa de passagem até reconciliar-me na harmonia

dos dias circulares e permanecer todo olhos e alguma boca.

tenho esta posição de repouso, e alguma contração no íntimo que me obriga a estar

à beira e à fuga.

tenho a posição finda de quem pede socorro, mas conhece a serenidade terrível de um misterioso engano.

aquela posição de repouso de quem, à cata de si mesmo, enraíza-se e reclama raízes.

repouso de humanas raízes, grito circunscrito de perto pelo machado, a madeira
tirada a limpo pelo fio da lâmina alonga-se na queda que apascenta terra e fogo.

 

vê-la tombar com a face tranquila onde as aves sem árvore.
renascia mais uma vez o conflito.
eu até desci incontável ao canto de canários maritacas cisnes a caminho do uivo.

 

 

 

 

 

 

iv

 

desce-me nos dias de maior angústia essa coisa de passagem à respiração. apresse-se, sempre ouvia. acabei de tirar um de meus pulmões da gaveta. hidratá-lo com a umidade das águas baças e pantanosas da memória. a baba nesse rio afogava-me e só nestas águas, saídas de meu sangue, posso ouvir as aves que na linguagem dos líquidos passam

a limpo a poeira.

 

apressava-me de tanto ofegar, só ela para me dizer que enxergava a fluência dos trancos atrás da estrada. a poeira transtorna os passos. a montanha de lembranças sólidas em suspensão no ar. voltará solitária a hora certa. sempre voltará solitária. que há muito deixou o bando.

 

essa passagem é tantos anos depois uma espessura de pântano e pânico, um caminho para cima, dores baixas pendurando-se com todas suas asmas

na respiração: já foi, ou ainda não foi o uivo?

 

         um pouco de ti saindo de mim, a terra ainda exala teu sexo repondo tua voz

         neste uivo solitário.

 

 

 

 

 

 

v

 

que essa coisa de passagem me traz no uivo o eco de cada coisa. o rumor da monotonia sabe à árvore que espera. a presença da árvore junto ao portão sabe a um riso. adolescente incontido. as espirais da inocência sabem à menina por quantas ágeis curvas e inexprimíveis dores contornam o uivo.

 

teu nome me pede espera e assim descubro porque o espaço junto ao portão
são estes braços longos respiração limiar e este uivo que se poema solitário.

 

buscava então trincar essa coisa de passagem com os dentes na expectativa do engulho. a custo jogava fora apenas os grãos de uma dor sem estouro. suportada. lascas do portão na duração tensa e densa da carne viva.

 

era uma circunferência a dor.

 

         antes e depois do portão: uma planície o uivo.

 

 

   

[imagem ©adam cutler]

 

 

Marco Aqueiva. Poeta, autor de Neste embrulho de nós (Scortecci, 2005), vencedor do III Prêmio Literário Livraria Asabeça, professor de literaturas brasileira e portuguesa no ensino superior. É o idealizador, editor e administrador do Projeto Valise 2008 [ http://aqueiva.wordpress.com ]