A TARDE CAIRÁ CINZENTA

Proferiu Goebbels ao ativar a fornalha.

 

 

 

 

 

 

CHUVA

costurados ao
céu
algodões
engravidam de escuro

por mentirem o sol

 

 

 

 

 

 

BAILAVA EM SEU PEITO UMA CRUZ

Na cadência das estocadas que impunha ao sacristão.

 

 

 

 

 

 

FALAVRA

 
de Guimarães
tatuei Rosa
mas não me entenderam
o traço

não importa

nos espinhos
descobri que sangro
em latim

 

 

 

 

 

 

NÃO SE FURA FILA

em Auschwitz.

 

 

 

 

 

 

AFOGADO

 

 

Por que os dois sóis?

Por que a textura inefável

Do Azul marinho?

 

 

 

 

 

 

TEXAS, 1963

Blasfemava, enquanto o crânio regurgitava os miolos do marido, não contra as diretrizes da política bélica e nem da fragilidade republicana — como o fizera horas atrás — mas pela demora em lhe providenciarem um balde.

 

 
 
 
 
 
 

NADA IRÁ NOS SEPARAR

 

Profetizou antes da cirurgia o que detinha, dos siameses, a maior parcela do coração.

 

 

 

 

 

 

PRONOME

            "Estou aqui, mais do que isso não sei". 
                                                      (Kafka)

Ontem fiz aniversário.
Ansioso, convidei a mim mesmo. Pensei que não aceitaria, mas aceitei. Pensei que não viria, mas vim. À porta, me vi trajado a rigor, me visto bem, exercito Armanis. Me cumprimentei, teci alguns comentários sobre Rimbaud, o 3- reich e, pasmem, fiquei-me... como me gosto!
Só eu e eu na festa de mim.
Impetuoso, tomei-me logo pelos braços e me levei ao quarto, na vitrola Duran Duran, mas gostamos mesmo é de Accept, eu e eu. Na cama, entreguei-me por completo a mim, beijando onde podia e cabia e delineando a entrega do que me tinha, me possuí com completude e vigor.
Me despedi quando já amanhecia e prometi me ligar assim que pudesse. Fui.

Hoje estou sábado.
E me espero ansiosamente.

 

 

 

 

 

 

SERTÕES

 
É Pedra que, à luz do dia, transpira e faca que, educada em pedra, emoldura a tripa.

É sede do barro costumeiro.

É o batalhar dos calos sob o reflexo solar dourado do fado.

É Lampião que, co'os pés trincados, pernambuca de chão a chão.

É tal qual o vento trafega a poeira, que sapeca o couro e dança o facheiro, esquenta o sol cajado e o cangaceiro.

É cordel cantoria, é língua quente, que afia o facão co'água ardente.
 
É bala sertão no catingueiro, é matéria sofrida da morte morrida, é carcaça passante de vaga-vida na ginga poeira que sec'a flor.

 

 

 

 

 

 

MORDISCOU-LHE A UVINHA

 

— Ai, pai!

 

 

 

 

 

 

O POÇO E O PÊNDULO*

Esticou em um prato a metade primeira de si próprio.

Inalado, percorreu em direção ao cérebro um trajeto perpendicular ao abismo; foi quando se deu conta de que precisava de mais de si. Cheirou-se. Em meio à euforia de cores e desatinos — seguidos de alguns minutos para reflexão —, lembrou-se de que cheirava, ali, o Renoir adquirido por sugestão de uma das filhas, assim como já cheirara ternos, motos, a Fender autografada por Clapton... prato limpo!

Há dias naquela espelunca, sozinho e em fim de carreira, descobriu que cheirava mal.
  

 

*título tomado da obra de Edgar Allan Poe

 

 

 

 

 

A CORDA

De todas as arestas odores suicidas encorpavam o ambiente, enquanto que, depreendidas em desalinho, de suas órbitas saltavam lágrimas insolúveis e inquietas.

Da parede, Sartre observava tudo.
Em silêncio.

 

 

 

 

 

 

DESUSO
 
as formigas sarapanteiam
pelas frestas
no lavabo
(é pega-pega)
mato uma, duas e
lembro-me da infância

sem mais a fazer
descubro que a calcinha de minha amada
cheira
a século dezenove

 

[imagens ©bright tal]

 

 

 

Muryel de Zoppa é mineiro de Uberlândia. Premiado em alguns certames literários (prêmios Moacyr Scliar de crônicas, Sintepe de poesia, Scritta Linguagem) e publicado em algumas antologias  (Microcontos da Andross, Bar do Escritor, Experimentando a Vida — editora EDUFU e as resultantes dos concursos referidos), além de revistas eletrônicas como o portal Cronópios, Minguante, Releituras e Veredas, é autor do livro (ainda em maturação) Crônicas, metáforas & outros mamíferos. Atualmente, finaliza com o Coletivo Teatro a composição dramatúrgica de um espetáculo baseado no processo colaborativo, intitulado Velórios acontecem no outono.