WLADEMIR DIAS PINO

 

Elaborada em 2001, respondida em 2005, publicada em 2010, a entrevista a seguir, inédita e exclusiva, interage com a genialidade do criador do poema-processo Wlademir Dias Pino, que além de fazer justiça poético-cultural a um dos mais férteis e emblemáticos movimentos de vanguarda autenticamente brasileiro, oferece uma retrospectiva das experiências de leitura semiótico-visual que marcaram a inventiva das linguagens no país e no mundo.

 

Wlademir Dias Pino nasceu no Rio de Janeiro, em 1927. Poeta, programador visual, gráfico, professor e pintor. Seu primeiro livro, A fome dos lados (Cuiabá: Edições Cidade Verde,), foi lançado em 1941, época em que integrou a direção do jornal literário Saci, naquela cidade. Em 1949, fundou o jornal Arauto de Juvenília, lançando, no ano seguinte, o movimento Intensivista, através do jornal Sarã, que propunha um Simbolismo duplo. Em 1952, transferiu-separa o Rio, onde permaneceria por 20 anos, quando começou a elaborar A Ave, funda o jornal Japa, e edita Os corcundas e A máquina ou a coisa em si (Cuiabá: Edição Igrejinha, 1954 e 1955). Em 1956, publicou A Ave, com gráficos a nanquim desenhados à mão, "onde a perfuração, a cor e os gráficos funcionais fazem dele o primeiro livro-poema cibernético, cuja lógica está na física do objeto-livro quando o poema se realiza e a descodificação se dá pelo uso" (Revista Vozes, Petrópolis, nº 1/1977). Ainda em 1956, entrosa-se com o movimento intelectual estudantil, em torno da revista Movimento (1957/1959), da UNE. Juntamente com os poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Ronaldo Azeredo e Ferreira Gullar, participa da equipe fundadora do movimento de Poesia Concreta. Ao lado destes e de 22 artistas plásticos, participou da Exposição Nacional de Arte Concreta, em dezembro de 1956, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, e, em fevereiro de 1957, no Ministério de Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, em evento realizado no Teatro Universitário Brasileiro da UNE/Rio, realizou a Noite de Arte Concreta, quando explicou e expôs o poema "Solida", em apresentações estatística, gráfica e tipográfica. Em 1958, fez a primeira decoração geométrica do carnaval de rua do Rio de Janeiro. Em 1960, publicou Elementos e Numéricos. Em 1967, liderou o movimento do poema-processo, ano em que, convidado, participou da IX Bienal de São Paulo e, no ano seguinte, da I Bienal de Arte Construtiva de Nuremberg (Alemanha). Desde então, participou das mais importantes manifestações poético-culturais do país e é, aos 83 anos de idade, símbolo de resistência da poesia experimental do mundo. Referência bibliográfica: Wlademir Dias Pino, livro-catálogo, Edições do Meio, Cuiabá, 1982, organizado pelo Departamento de Letras da UFMT. [Márcio Almeida]

 

 

Márcio Almeida – Aos 74 anos, publicando desde 1940-41, depois de liderar o movimento Intensionista, em Cuiabá; de editar com Silva Freire o jornal Sara; de atuar na UNE, já no Rio, durante a década de 50; de publicar no Jornal do Brasil de Reinaldo Jardim: de ser um dos mentores da poesia concreta, que você distingue do grupo Noigandres; de publicar o livro-poema A Ave, considerado por Moacy Cirne "o maior livro já produzido no Brasil"; do poema "Solida", que levou à fundação do movimento do poema-processo, quais são, em retrospectiva, outros fatos relevantes de sua trajetória de vanguarda poética, sempre marcada pela ruptura e a polêmica?

 

Wlademir Dias Pino Tenho como estrutura do desenvolvimento da civilização ocidental o conceito matemático de ordinal e cardinal. Assim é que sempre tive a pretensão de que isso fosse visualizado no poema, então procurei dar uma direção ordinal à A Ave e cardinal ao "Solida". De um modo geral, o ordinal obedece ao fluir horizontal de leitura, resultado direto da escritura, enquanto que as coisas cardinais deverão ter um compromisso maior com o inscrever. A Ave é resultado de uma manifestação em Cuiabá chamada de intensivismo, que durou como movimento de 1948 até 1951, que em seu manifesto exaltava a importância da multiplicidade de leituras e dando menor valor ao ato de inscrever. Digo inscrever o registro que não se submete ao código alfabético.

 

O intensivismo fez pesquisas principalmente com superposições de leituras em busca de uma camada de interesses tendo como exemplo, o tratamento da página do livro (de artista) através da perfuração, da espessura de quantidades, rompendo assim com o sentido tradicional de uma folha ser composta apenas de suas páginas. Talvez o fator principal dos resultados tenha sido a dificuldades que se tem ao se sobrepor uma escrita sobre a outra, o que resulta em ruídos. Para que isso não acontecesse houve a necessidade de geometrizar o poema até atingir uma leitura eletrônica (código de barra). Já a superposição do inscrever (como propriedade do poema e não da poesia) pode ser avaliado e até mesmo conter significados. Por isso mesmo fiz questão de frequentar a exposição de lançamento da Poesia Concreta com o poema "Solida" e algumas versões. É que o "Solida" (poema cardinal) está preocupado em descobrir novas formas de grafias, onde o conteúdo semântico pode se repetir continuamente sem produzir redundância e nisso constitui talvez a sua grande implicância.

 

A repetição nem sempre é uma redundância porque ela está no conteúdo e não na forma. Assim é que a repetição de letras (um texto, por exemplo, em que entre 100 vezes a letra A, não a torna repetitivo). O que salva o código é sua funcionalidade de uso. A falta de mutação de seu valor é o maior inimigo da poesia.

 

Para nós, a simetria continua sendo uma redundância que cria um eixo em que as figuras se opõem sem deixar de ser repetitivas, muito usada no concretismo em sua fase ortodoxa. A simetria acaba criando uma espécie de figuração geométrica passando a limpo os testes psicológicos. O propósito da repetição é criar uma falsa coerência impositiva.

 

O "Solida", ao dizer que o poema se faz com repetição de vírgulas em lugar de letras, na verdade ele quer superar a afirmativa de que o poema não se faz com palavras.

 

 

Em entrevista ao competente Edgar de Andrade na revista O Cruzeiro (506 mil exemplares), em março de 57, que deu carona ao concretismo no rock & roll e na minissaia, que faz com que a ressonância dos três fatos unidos cheguem aos nossos dias, logo em seguida da exposição da Poesia Concreta, registra em cima da hora as divergências teóricas dos participantes. Eu não negava a necessidade do poema ter a obrigatoriedade de usar a palavra, enquanto Décio e Ferreira Gullar defendiam o seu uso. Na questão de precursores também o grupo Noigandres apresentou diversos nomes, enquanto eu insisti que era um movimento de origem brasileira.

 

O poema-processo com o intuito de ressaltar a sua origem brasileira fez questão de surgir antes da entrada do estruturalismo, mesmo ou porque Lévi-Strauss levou para a Europa o pensamento dos Bororós de Mato Grosso, que tínhamos certeza que nos seria devolvido como experiência do saber europeu. A falha de não haver manifesto assinado pelos participantes e de carona na exposição dos pintores (em maior número), mostra claramente que o prestígio dos poetas não era lá grande coisa e que nem esperavam tamanha repercussão. Os integrantes tinham menos de 30 anos, por isso duvido muito, ao contrário do que se pensa, da cultura de todos nós.

 

Criado em célula comunista, quer dizer WDP de nascença, tinha como autorização entrar para a História da Literatura só uma figura barbuda como a de um Vitor Hugo (assim mesmo entre nós), porque tinha alguma semelhança com as barbas de D. Pedro II e de repente aparecem seis fedelhos de uma só vez abordando como piratas a própria história universal da Literatura.

 

Louvo a estratégia do grupo Noigandres em chamar de Poesia Concreta à semelhança de um poema de Arp, e ter como precursor um Mallarmé que dá credencial para a circulação na Europa da ideia da Poesia Concreta, ainda mais tendo como reforço as criações suíças de Max Bill em tipo futura. Outra coisa elogiável são as traduções e a apropriação dos nomes mais conceituados da literatura universal que põe em circulação entre nós esses "gênios" do passado, que ficam parecendo relações públicas logo da vanguarda. Isso ao mesmo tempo fortalece a luta de uma posição histórica com todo o seu brilho e heroísmo dos primeiros tempos do movimento.

 

 

MA Que leitura você faz da adesão experimental de poetas mineiros ao movimento do poema-processo, como Sebastião Nunes, Márcio Sampaio, Henry Corrêa de Araújo, José Arimathéia, Joaquim Branco, PJ Ribeiro, Márcio Almeida, Fernando Teixeira, Dayse Lacerda, Hugo Pontes e outros?

 

WDP – Para o poema-processo, com o cuidado de não entrar em contradição com o seu próprio título, não existiram adesões ao movimento. O que há na verdade são os que chegam primeiro ou a coincidência de lugar, de estar presente nos dois polos do eixo entre Natal e Rio de Janeiro.

 

Sendo um processo o movimento, todos os criadores, ao se manifestarem, estão fazendo a coisa evoluir, acrescendo naturalmente, chegam a ser, neste sentido, mais importante do que os que estavam na inauguração. A função do modelo 2006 é superar com naturalidade o 2005, sem se esquecer de que o 2006 não existiria sem o 2005. Esta relatividade histórica emprestada da tecnologia dá ao poeta-processo uma habilidade especial em lidar com o tempo.

 

Não sei bem se em homenagem aos poetas da Inconfidência ou ao queijo mineiro que é redondo, mas que em fatias se transforma em triangular, ou até hoje não sei se por economia, mas a verdade é que esse povo, ao tirar uma perna do banco (de sentar), ele se torna mais firme em qualquer espécie de terreno, ressaltando assim a identidade triangular, Minas teve uma importância fundamental no desenvolvimento do poema- processo, não só pela quantidade de colaboradores como desde o início foi reservada como sustentação da batalha territorial. Enquanto que o eixo Natal/Rio em sua quilometragem tinha a função de impressionar os estrangeiros pela sua ocupação territorial (geográfica) e a quantidade esmagadora de participantes nunca vista na história da literatura. Isto, em certo sentido, como resposta à Poesia Concreta composta de seis autores. Essa história de poucos poemas para que se confirme qualidade é coisa pra boi dormir. Não acreditamos em gênios de uma obra só.

 

Por falar em Minas, a editora Regininha está tramando, à maneira das pontas de cordas do poema-processo, um eixo entre a cidade de Cataguases com "de ver", uma brincadeira da poeta silabaria com a revista Verde e Cuiabá, com sua Casa de marimbondo em pé de pequi, homenagem à língua ferina de Aprígio dos Anjos, irmão do poeta Augusto, na literatura cuiabana.

 

As edições de livro de arte, com tiragem de 40 exemplares, formato A3 em caixa-papel cartão 400 g, numerados e assinados, é uma oposição às edições comerciais. Um mestre como Manuel Bandeira, ou um gigante como Jorge de Lima não tem uma edição ilustrada por uma artista gráfica como se vê na Europa com a presença de um Picasso ou um Matisse. Com isso ela quer demonstrar, ao lançar de uma só vez, quatro volumes da geração atual com que um PJ Ribeiro é capaz de criar a nova escola literária de Cataguases colocando em saldo a dúvida que, para alguns, a geração Verde tinha com os excessos de reconhecimento, já que Rosário Fusco não foi documentado em toda a sua pujança criativa.

 

O poema-processo teve desde o primeiro instante um slogan que bem definia essa preocupação: Estamos numa guerra epistolar. Ter como estratégia o uso do próprio órgão oficial como condutor do pensamento guerrilheiro do movimento, como na guerra asiática os revolucionários amarravam bombas aos ratos que infestavam os quartéis adversários. Em seguida foi tomada, por medida de precaução, colocar sempre um nome do poeta acompanhado de seu endereço postal. O importante é o contato direto entre os participantes onde a estratégia de guerrilha cultural pudesse ficar protegida em sua ação, já que vivíamos num regime de espionagem (sem passar pela mídia), coisa que acreditamos tenha influenciado no uso comum da imprensa no fim do artigo colocando o nome do autor acompanhado não mais do endereço, mas da instituição que o credenciava no trabalho. Só atualmente começa a aparecer o nome principalmente dos cronistas acompanhados de seu e-mail com intenção de um relacionamento com o leitor.

 

O primeiro número, logo no início do movimento, a publicação Processo I, dispensou o uso de capa para se utilizar da fisicalidade de uma caixa (livro de artista) contendo diversos envelopes, tendo o propósito específico de enfeixar a produção de cada poeta. Todos sobrescritos como parte da teoria do movimento, que ao mesmo tempo justificava a presença do autor, ainda mais agregando na parte exterior dos envelopes, agora sim como crítica, sobre o contraestilo do poeta. Essa fragmentação, embora atuasse de forma direta, deu uma sensação proposital aos críticos adversários de que o poema-processo não tinha uma crítica consistente. É que é da tradição discursiva ter como coerência o fluir contínuo como

 

Outro fator, que a nosso ver, deu origem aos poemas da arte correio, foi o poema coletivo nordestino, formado por um envelope gigantesco que punha em xeque a funcionalidade do próprio meio de permuta oficial. Isto deve ser lembrado como um fator de complementação do Grande Poema Pão, comido entre seus participantes. Como o que caracteriza a antropofagia é o rasgar da carne e o sangue, (produto do modernismo oswaldiano de 26), o pão não tinha conotação religiosa, mas o social, da fome do nordestino: poema comestível como encerramento definitivo da poesia tipográfica.

 

Sabemos perfeitamente que a diferença entre um poema-processo e o visual é que o poema-processo sempre tem, como prova dos nove, uma versão, enquanto que o poema visual é fechado e concluso. Talvez devido a estas facilidades de criação, não seja estratégico colocar esta última exemplificação em circuito, porque diante de certas dificuldades na criação a complexidade talvez embarace muitos poetas.  Mas não vemos como não se concluir de que o poema visual tenha vindo de uma das facilidades do poema-processo mesmo ele, historicamente, ao injetar a imagem no poema tornar superada a poesia de compromisso tipográfico. Não nos resta a menor dúvida de que o poema visual como o próprio nome indica, se diferencia justamente pelo acréscimo da imagem.

 

 

MA Em depoimento de 1987, baseado em entrevista conduzida por Evandro Sales, Carla Guahiard e Márcio Rolo, publicado com o título "Antologia" e com o apoio da Funarte, você afirma haver relação entre "Solida", A Ave e Numéricos e o trabalho de Amílcar de Castro. Como se estabeleceu essa relação? Você acompanha o trabalho atual do artista plástico mineiro?

 

WDP – A intenção no "Solida" é um desdobrar, uma continuidade. Está tudo interligado. Ele não é só ele, é ainda o desenvolvimento da leitura. São intencionalidades diferentes. Na simplificação das coisas, tudo dá no tudo, por isso temos de penetrar na especificidade do que ele quer ser. Para um leigo toda arte geométrica se assemelha e toda arte geométrica tende a uma simplificação às formas básicas ou simplesmente à linha vertical ou horizontal. Eu me interessei nesse sentido, mais pelo trabalho do Amílcar do que o de Lygia Clark, porque o Amílcar é um bloco só que se abre, já o de Lygia, não. Ela trabalha com curvas e a articulação de dobradiças. No "Solida" desarmado o escultural (leitura não mais a um palmo dos olhos) o material usado volta à condição de coisa plana para pertencer a um livro-poema, depois de passar por um teste de codificação do espaço. O simples fato de Lygia chamar o trabalho de "Bicho" já liquida com a obra, porque foi buscar uma figuração no abstrato. "Bicho" é essencialmente figurativo. Assim também a Lígia Pape, ao fazer um livro de formas abstratas, o batiza de "Livro da Criação", e o título fica como uma espécie de prefácio do trabalho. Por isso no "Solida", quando passo para a estatística, ele não tem mais título. O título não tem mais compromisso com o tipográfico.

 

 

MA "Espantar pela radicalidade" foi, no pico da vanguarda até início dos anos 80, uma espécie de slogan do poema-processo, mas, sobretudo referente dessacralizador do seu próprio trabalho. Com "Solida", "A Ave" e "Numéricos" você radicaliza não só a estrutura da poesia, que torna-se processo, versão contínua, aberta work in progress, como também rompe com os cânones das próprias vanguardas históricas e da literatura. Houve uma recepção mais ampla do seu "biscoito fino"?

 

 

 

WDP – Quando um poeta escolhe a direção da vanguarda ele não pode de maneira alguma esperar, até mesmo uma simples notícia de seus trabalhos, ele sabe que não é um cantor popular para ser um dia apontado na rua. O sonho de todo poeta de vanguarda, contraditoriamente, é passar como o roçar de uma sombra no quase invisível.

 

 

MA No referido depoimento, importante porque se abre em direções diversas, dando a conhecer-se, em rara ocasião, você diz que, desde 1948, a proposição de uma "leitura de vértices" dos intensionistas baseava-se na tábua de multiplicação de Pitágoras, substituindo o sentido de adjetivação da poesia, estabelecendo um código de suporte, a leitura por oposição da palavra como é na matemática o número, donde inclusive o "Numéricos", do início dos anos 1960. Philadelpho Menezes, que faz uma análise muito pertinente dos seus mais significativos poemas em "Poética e visualidade", afirma, contudo, haver em sua produção "uma certa organização geométrica que estrutura o poema, mas sem a predominância da simetria e da matemática, e concorre com a parataxe que, no entanto, se dá de modo diverso do grupo Noigandres". Um paradoxo? Contradição?

 

WDP – A proposição de uma leitura de vértices foi produto das pesquisas intensivistas de Cuiabá o ferir do compasso ponto geodésico da América do Sul — que teve o privilégio de receber Ricardo Franco, o astrônomo demarcador de suas matemáticas fronteiras. Márcio, não estranhe, pois sou carioca de nascimento, cuiabano de criação crocante e cooptado por Minas Gerais. Eu cheguei até a descobrir documentos que provam a presença do irmão de Tiradentes preso em Cuiabá, usando batina e arrecadando fundos para a nossa independência. Agora, toma cuidado que nós vamos querer uma parte na sociedade dos poetas da Inconfidência.

 

Continuando, com o livro A AVE tinha como princípio contrariar a direção de leitura oficial, da esquerda para a direita, as palavras foram fragmentadas e as letras projetadas nos mais diversos níveis da página. Assim, houve a necessidade de se criar um orientador de leitura já que havíamos percebido que no relógio circular os ponteiros é que permitem a ordem de leitura. Na questão da página ter umas funções (níveis, espessura, centro, limites, porosidade etc.), me despertou a consciência do livro-objeto, isto é, o vértice do indicador de leitura ao invés de usar curvas. Preferimos que ele potencializasse a rotação dos ângulos agudos como em Pitágoras, pois já existia o valor da rigidez dos ângulos retos.

 

Resolvemos assim, porque, repare bem, o sinal de somar, ao ser inclinado, adquire um poder de progressão geométrica e se transforma em sinal de multiplicar. Talvez venha daí a razão do sinal de proibir ter apenas um travessão, porque é uma espécie de mutilação do sinal de multiplicar e se transforma no obstáculo de uma cancela. Já a página translúcida (amarela) e a branca com o registro tipográfico, somam e transformando-se em uma única página, enquanto que a perfuração (radicalidade da transparência) permite que atravesse diversas folhas no ato da leitura, com o intuito de romper a divisão de uma folha ser composta apenas por duas faces: expressão da espessura móvel. Além de permitir a possibilidade contínua entre a oitava página e a vigésima sem a necessidade do manuseio (expressão da espessura).

 

O livro-objeto, pela sua própria fisicalidade, rompe com o hábito do uso do livro, porque ao falar pelo conteúdo, ele apenas está fazendo um discurso e não a prática. O livro é que se lê a si mesmo até que ele se apague como uma fita de gravação. Além disso, se você transformar uma página em tábua de palavras (como é hoje a memória do computador), pela superposição de orientadores de leitura, você terá a leitura de quantos livros quiser. Além de ao fixar uma palavra com constância, em um ponto, esse lugar adquire um significado alfabético, semiotizando o espaço. Hoje, a questão mais importante nas artes, na minha maneira de ver, é a questão do livro-objeto, porque abrange a questão da leitura e do assinalar simultaneamente como no "Solida" a inscrição nasce ao mesmo tempo que a leitura, para que a visualidade não se apresente como uma ilustração.

 

Depois fizemos uma versão de A AVE em que há a invenção espacial do algarismo romano. O centro é uma coluna e o lado esquerdo o espaço negativo em oposição ao direito, positivo. Uma palavra ao ocupar esse espaço, dispensa os adjetivos. Ao codificar palavras a números percebi também em A AVE que posso entrar por toda a experiência das operações matemáticas.

 

Uma pessoa tem todo o direito de pensar na minha contradição. Desenho três mil "As" diferentes e venho a vida toda lutando contra a ordem alfabética. Birra é birra, meu amigo!

 

O poder ideológico só é poder porque sempre exerceu a arbitrariedade do código alfabético. Todo ditador desde os primeiros bárbaros ao tomar uma civilização militarmente, estabelecida a invenção de um alfabeto e por isso digo que só é poeta quem inventa a sua própria escrita, como uma civilização cria um alfabeto como atestado de nascimento de seu poder civilizatório.    

 

Os egípcios, ao tentarem substituir a escrita tradicional pelo código alfabético, logo no início, acabaram destruindo a sua história. As civilizações às vezes não suportam invenções maiores que a sua própria cultura. Os russos, ao descobrirem uma matemática que não tem mais emprego, nem mesmo em suas viagens interplanetárias, talvez esse fato tenha sido o responsável por sua queda político/ideológica. Assim como um estado socialista pode anunciar uma matemática em que o cérebro humano não consiga utilizar e tenha que recorrer às máquinas? Aí é que consiste o perigo dos poetas que venham a inventar processos de inscrições. Os poetas do poema-processo, ao geometrizar seus poemas, tiveram que criar chaves léxicas como retardador de leitura.

 

O "Solida" quer inscrever poemas (versões) só com vírgulas e que cada uma tenha o valor de um significado diferente pela simples ocupação no espaço (não visibilidade), como os matemáticos visualmente já haviam praticado antes com os números. E mais a possível mosca (a mesma que lá atrás ficou presa na vidraça árabe) a fazer sujeira sinalizadora na ficha de algum valor na conta do Valério.

 

Os "Numéricos" não querem fazer mais poemas nem mesmo com a sinalização, nem quer mesmo o branco sobre o branco, mas a leitura analfabética do livro-poema. Eu sempre defini que a Poesia Concreta é antes de tudo higiênica.

 

 

Para o intensivismo uma das questões propostas foi a de como haver uma repetição em qualquer poema sem que aconteça a redundância. Esse desafio aparece, numa versão de A AVE em que são empregados como processo os algarismos romanos que por falta de solução para seu emprego matemático também ruíram o seu estado civilizatório. Márcio, faz de conta que isso tudo é um circuito integrado.

 

Na sequência de nosso raciocínio, por exemplo, a questão do bastão (I) é somável até (III), que pode ser visto como intensidade de significado que vai mudar o sinal de valor, como ocorre no aviso da luz vermelha numa máquina. O curioso é que o bastão ocupando o espaço negativo (à esquerda) aparece na linha seguinte antes dos elementos de valores renovados que formam o eixo divisor entre o lado negativo e positivo, para não se somar com os três bastões anteriores. Se se codificou no poema um lado negativo e positivo, a presença da palavra numa das áreas adquire o valor codificado dispensando assim elementos de descrição de qualidades ou negatividades. Outra versão como continuidade foi feito o aproveitamento dos números maias.

 

Para os poetas do intensivismo cuiabano, os algarismos romanos não tiveram um desenvolvimento maior dentro da história da matemática, porque sua estrutura lembrava o rigor da formação de seus exércitos, e ao mesmo tempo não tiveram a oportunidade de expansão dos árabes. Assim o desafio de incorporar esse processo à geometria cuiabana, que tem o Sol geodésico como matriz de todas as direções. Trata-se de uma vingança paradoxal contra a audácia dos árabes criarem cursos de latim em toda a península ibérica. Assim como os próprios espanhóis transformaram as touradas em turismo.

 

 

MA Transdisciplinaridade, fractalização, ou como diz Marli Scarpelli, da UFMG lacunas, recortes, descontinuidades, dissensões, dissonância dialógica e intersemiótica, frágeis rastros de sentidos... Há lugar para a vanguarda? O que é pós-moderno em poesia?

 

WDP – A falha ou lacuna no poema-processo é tida propositadamente como leitura. Assim é que no livro A AVE, o vértice do indicador de leitura contínua, ocorre num espaço em que deveria estar a letra A e, no entanto, o que se vê é o espaço vazio. Já no "Solida" o vazio é a falha desenhada entre os dentes de uma engrenagem: sequência funcional. Naturalmente em oposição ao vazio simbólico é o silêncio que no objeto já é a espera, disponibilidade.

 

No "Solida", ao se projetar cada letra sobre uma das seis partes de um sólido, ele se codifica a essas formas descontínuas, permitindo, através da aproximação de outras maiores, à escolha do tamanho espacial e de acordo com o interesse do leitor: recortes. Os cubistas já tinham projetado a paisagem sobre um cubo. Fragmentar para libertar do contorno da forma geométrica matriz, e compor sua inscrição: transdisciplinaridade.

 

O poeta precisa ter consciência que toda a forma geométrica é prisioneira de um contorno matemático e que a função dele é transformar a prisão em arte. Os árabes ao inventarem o uso do vidro plano prenderam o espaço e com isso quiseram dizer que o que faz uma forma geométrica é seu contorno e o vento uma tangente. Assim como visualizou na escrita o gesto guerreiro de suas adagas e não contente deram através da álgebra uma função numérica que os povos bárbaros já haviam misturado aleatoriamente.

 

A invenção da imprensa nestes 500 anos de descobertas criou um "espírito gráfico" que acompanhou o desenvolvimento do registro impresso e até hoje não temos a resposta do que seja esse "espírito." Sabe-se apenas que uma veneziana, por exemplo, é mais gráfica do que pictórica. Um gradil, a mesma coisa. Aliás, o livro sempre esteve visualmente muito próximo da arquitetura. Basta ver as portadas e até mesmo a funcionalidade da diagramação.

 

Caligramas

 

Embora a imagem gráfica esteja ameaçada pela virtual, não existe no mundo uma biblioteca iconográfica. O homem não possui uma enciclopédia visual (cardinal) que se diferencie da enciclopédia ilustrada que não consegue se libertar de sua condição de dicionário (ordinal). Aos escritores compete alertar a civilização desse fato, da mesma maneira que compete ao cientista falar que o século XX (o da eletricidade), da dona de casa que usa a geladeira no subúrbio e os técnicos não sabem explicar o que ela seja, mas afirmam que o uso da eletrônica no século XXI é uma propriedade pós-moderna. O importante não é o instrumento de registro, mas a própria inscrição.

 

O poeta é aquele que inventa uma máquina específica para cada um dos seus poemas e não aquele que faz poemas para o computador ler. O importante não é fazer um DVD para ser lido por um aparelho já construído para consumo industrial. Antigamente, o homem mais importante de uma empresa era aquele que tinha a solução para todas as dificuldades da companhia. No mundo pós-moderno, o importante é o poeta que cria alimentando o computador que custou milhões e neste instante está de braços cruzados num canto.

 

Vanguarda hoje é por enigmas à tecnologia de ponta. Nos dias de hoje a ausência de criação nos parece vir da importância que a crítica assumiu como forma de sobrevivência profissional. Os suplementos literários se transformaram em boletins comerciais das editoras, havendo um profundo desinteresse pela criação, principalmente dos poetas. As teses universitárias privilegiam de uma maneira absurda a crítica elogiosa que se autojustifica como única forma de promover a carreira universitária. A crítica universitária nasceu entre nós na PUC do Rio de Janeiro. Era, por força de um conceituamento a valorização do professor/autor. Essa estrutura foi propositadamente destruída para deslocar a sua importância geográfica, daí em diante surgiu a profissão dos doutores. Nos bons tempos da universidade brasileira a luta de vanguarda estava entre a universidade de Campinas e a Universidade da Selva. A UFMT editava a própria produção enquanto que a USP tinha que recorrer de uma editora particular no Rio: a Vozes. A morte de Severino Vaz significou uma queda sem igual na história de nossas instituições culturais, tão perversa como o poder econômico industrial usando das informações oficiais das instituições de ensino. O monopólio dos caros livros didáticos entregues a gramáticos ignorantes dos problemas da criação leva a que esses compiladores consultem aos líderes de movimentos. Isso é responsável de que a literatura contemporânea não tenha um registro da produção das gerações. E o pior é que a história é apenas escrita através dos movimentos. E graças a isso eu estou aqui firme e forte.

 

Outra indústria é a dos "curadores", uma espécie que se aproveita do prestígio antigo das funções dos editores para que sem grande esforço comecem a decidir sobre o destino da história da arte. Assim a criação fica entregue à mídia de instituições oficiais que se diferenciam porcamente dos veículos comerciais. Muitas vezes, fico triste ao me lembrar de que colegas morreram pisoteados por cavalos no Largo da Carioca por causa da hoje multinacional Petrobras, financiando artistas que de forma tão privilegiada surgem do dia para a noite, tão distantes dos que eticamente não procuram o caminho da bajulação. Esses donos de centros culturais me dão nojo, tanto quanto tudo o que é passageiro em seu autoritarismo.

 

O poema-processo a princípio era para ser formado pelos ex-funcionários do Banco do Brasil. É que a minha geração não tinha outro lugar para trabalhar fora do funcionalismo público. Os talentos sem ter onde ser utilizados eram jogados atrás de uma máquina de escrever, dando prejuízo cultural à nação. Essa seria a nossa forma de protesto contra esses burocratas que não sabemos por que critérios financiam de forma mais que generosa a produção carreirista, e a essa "coisa" chamo de "caixa sete".

 

 

MA O computador, e por extensão a internet, acrescentaram à produção poética ou são meios de pulverização e vulgaridade? Em que sentido pode-se entender, hoje, a sua afirmação de que "o grande papel do artista é ser o consciente do seu trabalho"?

 

WDP – O general Jiape sempre usou como forma de guerrilha contra o adversário, portador de alta tecnologia, soluções baratas (viáveis) que levassem através da redundância de ação à destruição dos instrumentos agressores. Assim é que contra uma metralhadora codificada à forma humana é inventada em madeiras articuladas nas trincheiras para que o instrumental inimigo atirasse até que explodisse. É preciso conhecer mais do que o adversário, hoje, a tecnologia. Parece-nos que a arte caminhou para a abstração com o intuito de fugir dos meios de reprodução. Penso que o pontilhismo é uma influência da retícula do offset. A instalação não está muito longe disso. A arte hoje mais importante seria a irreprodutível, por isso mesmo é que os mistérios da fisicalidade do corpo assumem uma importância que substitui até mesmo o político e desastre ecológico anuncia o futuro.

 

O fato de o poeta realizar o registro do poema, em que exista o contrariar do que sempre foi considerado livro, e não usar nem mesmo sinalização de sua intenção, o que é isso? Pode o artista desprezar sua própria intenção e continuar criando sem passar por qualquer espécie de arbitrariedade de um código? Para mim a distância do poema sem palavras para o poema sem sinalização cria caso para as classificações históricas que sempre exigiram intervalos como periodicidade. Na contracapa (1971) do livro Processo Linguagem e Comunicação (na segunda edição vetada) de que a bomba atômica como ação repentina da ciência bélica havia interrompido o fluxo natural da história e como necessidade subjetiva nasceu a Guerra Fria, que terminou justamente no prazo que deveria ter findado a Segunda Guerra Mundial. A ciência que havia imposto a velocidade como padrão chegou ao seu ponto de maior radicalidade e anunciando uma nova medida de viagens interplanetárias. Pode-se considerar esse fato pós-moderno sem se considerar o poema sem palavras como coisa modernista? A questão de referência pode ter seu valor evolutivo e até mesmo relativista, mas não deixa de ter uma parcela de teimosia da redundância como continuidade.

 

 

MA Em uma de suas últimas idas a Belo Horizonte, por ocasião do "2º Salão do Livro", você não perdeu, felizmente, a capacidade de indignação. O que você sentiu indigno e de provocativo em Minas? Ou, de resto, no Brasil?

 

WDP – Fico preocupado com os poetas do Brasil que aceitam 50 anos de domínio cultural da Poesia Concreta e como repetem expressões primárias postas em circulação com teorias históricas que quando se referem ao passado, usam imprecisamente a década de 50 como datação histórica de origem. Chegam até a não ouvir o que os próprios poetas dizem sobre o valor atual de seu manifesto. 

 

Minas anda muito silenciosa como rebeldia artística. Parece que as conquistas em prosa de Guimarães Rosa ainda satisfazem como compensação pela falta de poesia nova. Clarice é produto dessa mesma necessidade.

 

 

MA - A que você atribui o fato de haver um interesse restrito à produção de teses, dissertações e pesquisas acadêmicas sobre poética da radicalidade? A derrocada da própria poesia? Ou, segundo Antoine Compagnon "a bolsa de valores literários não joga ioiô"?

 

WDP – Parece-nos que a separação do poema-processo entre o que é poesia e poema deu uma impressão de enfraquecimento da poesia e uma supervalorização da materialidade técnica do poema. O desenvolvimento eletrônico valorizou o suporte a tal ponto que deu valor de ciência à destreza do poeta.

 

 

MA Que objetivos norteiam a transformação de sua imensa casa na Rua do Catete em oficina?

 

WDP Nunca tive um espaço adequado para guardar a produção que foi se acumulando durante tantos anos. Embora inconclusa, penso que ao publicar a Enciclopédia, isto é, ao oferecer ao poeta principalmente do interior, o arquivo passado a limpo de 20 mil imagens, estarei possibilitando que os poetas se apropriem desse material e com ele realizem, através da invenção de cada um, uma revolução social de cunho cultural de que estamos tanto precisando.