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UM POEMA DE AFFONSO ÁVILA

 

 

GLOSA DA PRIMAVERA

 

                Com a vossa permissão, a primavera chegou

                De uma crônica de Rubem Braga

 

Com a vossa permissão,

a primavera chegou.

Eis que vos louvo e, senhora,

renovo os votos de amor.

 

Com a vossa permissão,

dou-me criança e pastor,

minha veste é a vossa carne

e quanto em mim despertou,

meus lábios são vosso arauto:

a primavera chegou.

 

Anuncio a vossa festa,

a primavera chegou.

Estendei o vosso corpo

que a boa-nova é calor,

com a vossa permissão,

eu trago a seiva e o amor.

 

Com a vossa permissão,

semearei meu ardor,

crescerei no mesmo sonho

que o vosso ventre acordou.

Olhai que sou verde e tenro:

a primavera chegou.

 

[Do livro Carta do solo]

 

Mais Affonso Ávila em Germina

> Entrevista | Poemas

 

 

 

 

 

CAFÉ COM LETRAS

 

 

"Se você quer melhorar sua compreensão, beba café; é a bebida inteligente".

Sydney Smith

 

"A necessidade básica do coração humano durante uma grande crise é uma

boa xícara de café quente". Alexander King

 

 

Desde o século XII, seja etíope, africano ou árabe, o café destaca-se por facilitar a digestão, espantar o sono e melhorar o humor. Em 1615, o café entrou no Brasil via Veneza e sofreu forte resistência da igreja: cristãos fanáticos incitaram o papa Clemente VIII a condenar o consumo da bebida, tida como invenção de satanás. Na Turquia, séculos XVI e XVII, quem fosse pego tomando café era condenado à morte. Com a mudança de hábitos, o café passou a ser consumido em lugares públicos, criando pontos de encontros políticos e culturais. No século XVII havia cafés em Paris e no Brasil ele chega em 1727, na cidade de Belém do Pará e, em seguida, ao Rio para, no século XIX, tornar-se um dos principais produtos de exportação do país. Em 1876, foi inaugurado o primeiro café de São Paulo, na esquina do Beco do Inferno com a Rua da Imperatriz.

José Bonifácio, no poema "O tropeiro", põe na boca do cozinheiro da tropa a quadrinha: "Vamos depressa / tomar café / depois veremos / quem bate o pé". Cornélio Pires, em sua "Seleta", de 1926, diz no soneto "Ideal de Caboclo": "Um rancho na bera d'água / vara de anzó, poça água / pinga boa e bão café. / Fumo forte, de sobejo / pra compretá meu desejo / cavalo bão e muié". Nos "Cantos Populares do Brasil", de 1897, Sílvio Romero registra o café no "Abc do Lavrador", colhido no Ceará: "Quase sempre os lavradores / de cana, café, cacau / têm feitores de campo / para não passar tão mal". Do folclore pernambucano, Pereira da Costa, em livro de 1908, registra com sua chocarrice sertaneja: "O Zé prequeté / tira bicho do pé / pra comê com café / na porta da sé!". Crispiniano Tavares, em "Contos Inéditos", resgata de um violeiro-cantador referência ao café mineiro-goiano: "Não te dou chá / porque não tem / queres um beijo? / Vem cá, meu bem! / Ah! Quanto a isso / muito obrigado / Não te dou café / que não tem torrado". A colheita do café, ao Norte do Brasil, tinha muita semelhança com a colheita da uva em Portugal, quando muito namoro tinha início: "Quem tivé fia bonita / não mande apanhá café. / Se fô minina, vem moça / se fô moça, vem muié". No Brasil, já teve até um Dr. Domingos Jaguaribe, que se pôs a educar macacos para colher café: Eu quisera sê penera / na coieta do café / pra andá dipindurado / nas cadera das muié". Nos chamados "Autos Setentrionais", Catulo da Paixão Cearense colheu a quadra seguinte: "Parece história, parece / mas fantasia não é: / a vaca branca dá leite / e a preta é que dá café". As Folias de Reis cantam assim: "Deus lhe pague sua comida / e também o bão café / no céu haveis de comer / com Jesus de Nazaré".

No livro Mil quadras populares brasileiras, de 1916, recolhidas por Carlos Góis, encontra-se a expressiva quadra de galantaria espontânea: "Menina dos olhos pretos / sobrancelhas de retrós / dá um pulo na cozinha / vai quentar café pra nós". Tem uma moda de viúva, em oitavas, extraído de um Cancioneiro de trovas do Brasil Central, de 1925, conforme registrado por Americano do Brasil: "Eu oiei na cara dela / fiquei muito invergonhado / meu braço pegô tremê / que fico disguvernado. / Minha xicra de café / derramo mais da metade / e meu coração batia / como o baque do machado". A graçola que inspirou Manuel Bandeira tem origem nos sinos de S. Francisco, segundo pesquisa do erudito J. da Silva em seu A voz dos campanários baianos: "Café com pão / café com pão / bolacha, não!". O café foi também motivo para começar um grande amor no sertão brasileiro: "Eu também vou casar já / com uma dúzia de muiés / três Chiquinhas, três Aninhas / três Teresas, três Zabés. / Três para coser a roupa / três para lavar meus pés / três para anelar meu cabelo / três para me dar café". Murilo Mendes escreveu: "Os emboabas entraram / na fazenda dos paulistas / os paulistas, de sabidos, / mandam servir o café". Mário de Andrade, no seu "Paisagem nº 4", fala da importância do café de São Paulo: "Os caminhões rodando, as carroças rodando, rápidas as ruas se desenrolando, rumor surdo e rouco, estrépitos estalidos, e o largo coro de ouro das sacas de café!". Cassiano Ricardo registra o "café expresso" como "o sangue quente de S. Paulo." Mário Quintana espalha no ar: "O café é tão grave, tão exclusivista, tão definitivo que não admite acompanhamento sólido. Mas eu o driblo, saboreando, junto com ele, o cheiro das torradas-na-manteiga que alguém pediu na mesa próxima". Carlos Drummond de Andrade, em "Infância", diz: "No meio dia branco de luz / uma voz que aprendeu / a ninar nos longes da senzala / e nunca se esqueceu / chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / café gostoso / café bom". Adélia Prado em seu "Bucólica nostálgica" registra: "Ao entardecer no mato, a casa entre bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo, aparece dourada, dentro dela, agachados na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo, rápidos como se fossem ao êxodo, comem feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis, muitas vezes abóbora. Depois café na canequinha e pito. Louvado seja Deus".

 

 

 

 

O BRILHO RARO DOS ALUMBRAMENTOS DE CÉLIO BALONA

 

 

O músico belorizontino Célio Balona lançou recentemente novo CD intitulado Alumbramentos. É um dos mais sublimes momentos do melhor da música brasileira de hoje. Dou a cara a tapa se o ouvinte de bom gosto não se emocionar. E muito. Sou amigo de Balona, a quem chamo de Sibalona, há décadas. Trabalhamos juntos no Palácio das Artes. Seu pai, Lourival Passos, tocou com o meu nas rádios Inconfidência e Guarani. Nos anos 60, Balona tinha um programa na TV Itacolomi. Foi ali que o ouvi pela primeira vez, interpretando "Canção para um homem no espaço", de Nilo Sérgio, um dos melhores maestros brasileiros.

Balona é músico completo, refinado, compositor elegante, arranjador que destila as melhores escolas do jazz, da bossa nova, do samba-canção e do bolero orquestral. Suas composições são o retrato do Brasil genuíno, gostoso, vibrátil, lírico e surpreendente. Duvido que alguém consiga ouvir "Canção para Stela", feita para sua neta, sem conseguir sonhar e ver a Deus. Esta aí é daquelas que quando acaba de tocar a gente diz só de memória: uau!, para não ferir o silêncio que paira conduzindo os acordes de festa no céu. Ou no corpo da mulher amada. Você aí, que me ouve em palavras, experimente.

Tem valsas que lembram sacadas barrocas em fins de tarde e noites enluaradas. Tem xotes e frevos em momentos muito especiais de criação no clima nordestino-cosmopolista de um João Donato. Tem toadas ao jeito de Tom e Lupicínio. Blues sôfregos em shows de riffs dignos dos standards inesquecíveis da música de cinema. Boleros dilaceradamente contidos, tudo de extrema beleza, tudo muito emoção de brilho raro de alumbramentos vivenciados numa existência de exemplos marcados sobretudo pela mulher que chega e fica, pela mulher que vai e nunca esteve senão em sonho.

Balona é um poeta do piano à moda de Dick Farney, do acordeon à la Dick Contino, afinadíssimo; da voz limpa pós-boêmia em bares emblemáticos de periferia. Um mineiro universal. Balona comove com requinte técnico profissional, com experiência profunda de quem tem a música como/vida e um bom gosto personalístico similar ao que há de máximo na referência arezziana do país. E do mundo. Sem favor algum.

O repertório de Alumbramentos tem algo de mis-en-scène, de histórias bem contadas, do astral de pessoas felizes, de comoções muito dignas. Junto com Balona estão músicos do naipe de Marilton Borges, Jairo Lara, Juventino Dias, Cristiano Caldas, Fábio Gonçalves, Milton Ramos, seu filho Pingo Balona, o letrista Murilo Antunes e Paulinho Pedra Azul, que consagra uma performance vocal afeita a aboio para capim novo molhado de sereno, na música que dá título ao CD.

Não há porque comparar Balona, possuidor de dicção musical própria em tudo que faz, mas, em analogia, ele está no nível mais arrojado de um Michel Legrand, de um Gregg Karukas, de um Paul Hardcastle e do que há do sóbrio mas arrebatador talento mineiro. Balona é made exportação. A prova de como ser simples tem a força luminescente do diamante.

Ter Alumbramentos em casa, no carro, no trabalho é garantir a companhia de música de qualidade rara. Com Balona, você é quem faz a diferença.

 

 

 

 

A VEZ DA VOZ DO POVO

 

 

"A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como

recorda para contá-la". Gabriel García Márquez

 

Uma grande emoção tem surpreendido a equipe de pesquisa e produção da História Contemporânea de Oliveira (HCO): a receptividade do povo às entrevistas, à iniciativa espontânea de colaborar com informações, fotos, fatos históricos guarnecidos pela memória popular em sua infinita sabedoria. Na cidade, em Morro do Ferro e na zona rural, a receptividade aos pesquisadores vem acompanhada por entusiasmo ante a expectativa de os segmentos periféricos terem, pela primeira vez, um lugar de reconhecimento na História do município. Tem sido assim com ex-operários das fábricas locais, ex-funcionários de órgãos públicos, aposentados, profissionais liberais, horticultores, pequenos empresários, comerciantes e comerciários, músicos, religiosos, desportistas, pessoas comuns e anônimas, cuja grandeza humana de todos constitui a autêntica História municipal.

A História Oral assumida como condutora dos trabalhos da equipe, mediante rigorosa metodologia, vem trazendo à tona fatos, informações, dados e fotos de importância vital para a recomposição dos últimos 50 anos da história de Oliveira e de Morro do Ferro. O que interessa é o povo. É a voz dos mais simples, os que por décadas foram marginalizados, postos à sombra das elites e dos poderes. É a História feita com entrevistas-diálogos: agora, ninguém fala sozinho ou em vão, ninguém fica mudo. Agora, até o falar abobrinha pode significar a mágica de o povo ser fiel aos próprios princípios. Porque princípio é tudo que o povo respeita na gênese de sua origem comunitária, do seu estar em convívio. O princípio é o tempo, e o tempo é o pai da História. O princípio é Deus, porque Deus é o Verbo. O Verbo é o que conta. Por isso Deus é a voz do povo. A Nova História, a História vinda de baixo, a História colhida nas ruas e no coração do povo — essa é imprescindível para comprovar uma verdade incontestável, enfatizada pelo historiador Peter Burke: Não há substituto para o conhecimento local. A referência que se propõe a ser universal e eterna para um povo passa inexoravelmente e primeiro pelo saber do povo.

O trabalho de equipe da HCO já finalizou cerca de 80 entrevistas: trata-se de um acervo referencial inédito no município, que deverá alcançar o total de 150 depoentes de todas as classes sociais, material precioso para o livro e para o documentário audiovisual. Nessa imensa fortuna da História Oral olíveo-morroferrense estão as narrativas populares agregadas ao horizonte de expectativas de uma população que de modo honesto, sério, imparcial e científico se vê refletida em seus próprios modus vivendi e modus operandi. Pela voz do povo vamos todos conhecer — e ter motivo para admirar e reconhecer — quem de fato somos, o que e como pensamos, qual é a profundidade do nosso modo de sentir e de fazer as coisas, que leitura fazemos do nosso jeito de ser, o que realmente nos interessa do passado de 50 anos que mereça registro histórico, que motivos temos para nutrir esperança no futuro.

Conscientes de que "o trabalho da mulher foi, com frequência, desconsiderado pelos historiadores, porque boa parte delas não foi nem registrada nos documentos oficiais", como analisa Peter Burke, os pesquisadores/historiadores da HCO privilegiam a mulher em todas as manifestações de sua magnitude humana, da mãe à cidadã, da prostituta à costureira, da professora à médica, da dona de bar à doméstica, da ruralista à comerciária, da empresária à salgadeira. A voz feminina conta a História municipal pelo viés da luta que pouco ou nada foi antes reconhecida.

A HCO, por isso, é a história de gente. Gente que faz junto, que cresce junto, que sofre junto, que junto convive no presente e junto semeia paz e harmonia para o futuro. A História Oral assumida pela equipe da HCO não é a que fala mais alto, mas a que fala com liberdade, não é a verdade única, mas o pluralismo de vozes, não é a que se esconde em aparências, mas a que conta a caminhada do povo no seu dia-a-dia com a própria cara, seu suor, suas lágrimas, seu sangue e seu sorriso franco. A HCO que se constrói agora não é a história de sempre, mas a que se renova para ser melhor. Não é a História toda, mas a História que faz falta. É a História na qual o poder da memória, da imaginação e dos símbolos está cada vez mais enraizado na história de cada um e de todos.   

A HCO é do século XXI, da pós-modernidade; não é a história do "controle recomendado", da "ditadura das opiniões majoritárias", da "ocultação do trabalho da ideologia na cultura", da "doutrina naturalista conservadora", que com preconceito, reducionismo, hipocrisia e cinismo tenta banir da sociedade o que incomoda seu status quo estagnado, empobrecido, sem sentido na dinâmica do povo. A HCO digna do município é a que, como pretendia Descartes, associa-se a uma "ideia de eficácia", ou seja, que funciona na prática da memória que o povo tem de sua própria vida no tempo e no espaço.

É a História feita com gente de carne, osso e alma, na qual a verdade não está na quantidade, mas na qualidade rara de sentimentos, de opiniões socialmente construídas, de mentalidades, representações e imaginários compartilhados, cujo efeito plasma a identidade do povo de Oliveira e de Morro do Ferro.

 

 

 

 

A POESIA HERMÉTICA DE LUÍS SERGUILHA

Leitura Preliminar

 

 

Meu caro Luís

 

Seus textos levaram-me a um revival da poesia hermética, ao ocultismo, ao surrealismo, ao poder paratático/hipotático da linguagem constituir estranhamento, mistério, embevecimento, emoções raras de uma concepção primeva, porquanto eles fundam uma mitopoética que exige acuidade e conhecimento, a fim de não limitá-los a um reducionismo sempre empobrecedor.

Em nível lusitano, seus textos remetem à tradição de uma Ordem do Templo, da qual Pessoa se dizia afiliado — "sentir tudo de todas as maneiras"; à "circunscrição autorreflexiva comum em poetas portugueses, revelados nos anos 50 através da intensificação verbal (Fernando Guimarães), quando se leva às últimas consequências um horizon fabuleux como tendência hermética na poesia, que privilegia o fechamento do texto, entregue à iniciativa das palavras e à qual se opõe uma tendência hermenêutica na qual a linguagem é encarada como meio de interpretação de si e do mundo (Collot)", conforme analisa, e bem, Ana Paula Coutinho Mendes.

Os textos revitalizam também a anarquia no surrealismo português, mormente sob o registro emblemático em A única real tradição viva — antologia da poesia surrealista portuguesa, organizada/prefaciada por Perfecto E. Cuadrado, reunindo, entre outros, Mário Cesariny, Alexandre O'Neill, Mário Henrique Leiria, Pedro Oom, Antonio Maria Lisboa, movimento que, segundo Claudio Willer — talvez o melhor especialista no gênero de Breton no Brasil —, além de ter causado, em Portugal, "algum desconforto e consternação", mostra-se, ainda hoje, "o mais importante e influente em poesia, afora aquele do âmbito francófono".

É por isso, reconhece o poeta-crítico brasileiro na edição 9 da revista eletrônica Agulha, que "boa parte do melhor da literatura portuguesa de hoje, se caracteriza pela riqueza imagética, por qualquer coisa de transbordante e transgressivo, em contraste com a produção brasileira contemporânea, cerebral, regrada, em suma, bem-comportada em autores de maior prestígio".

E acrescenta: "Natália Correia em O surrealismo na poesia portuguesa vê a irrupção vigorosa desse grupo com algo inerente à tradição literária de Portugal, de origens medievais. O culto ao escárnio e maldizer, ao exagero, à metáfora extravagante, ao grotesco, permite um trabalho de arqueologia...".

Seus textos aludem a uma mitopoética, de simbologia hermética, cuja linguagem contém implícitos não apenas impressões anticartesianas, mas revelações iniciáticas, que suscitam a existência complexa da transmutação de palavras em signos potencializados de núcleos axialmáticos alicerçados por analogias, paradoxos, relações bizarras, cifradas, constituindo uma tensão dialética, uma "multivalência de conotações" (Júlia Kristeva).

Tem-se assim, como resultado, uma linguagem a exigir decodificação para promover sua recepção pelo leitor, uma vez ser intenso o código do estranhamento.

Há em seus textos o que Raúl Antelo chama de "actitud demolidora de la solidez discursiva", donde o surrealismo e a poesia hermética serem, por igual, "una continua perforación de la intimidad, una serie de aproximaciones hacia lo más adentrado y movedizo de un yo despojado y essencializado, un rosário candente de interrogaciones angustiadas ante las sombras errantes que se desatan allá, en los abismos estremecidos y creadores de cada ensueño".

São esses textos "agulhas de fogo" a dessacralizar o senso comum na fundação de um nonsense que esgarça significações inóspitas, surreais, ocultistas, mágicas, míticas da linguagem ou linguagens críticas de si mesmas que se arrolam como lavras despercebidas a susterem as sentenças primaveris dos labirintos — as linhas iluminadas das alavancas — as origens das premeditações [que] aperfeiçoam as metamorfoses, como se lê no texto 1.

Há uma intenção precípua, ainda que quase sempre inconsciente e/ou afeita ao automatismo, de des/dizer essas linguagens primordiais, teriomórficas e isomórficas como se a humanidade derramasse os reflexos das letras surdas, com a ereção da platina do diálogo inadiável (texto 2).

Ao cifrar o código ao extremo, a poesia poesia (A. de Campos). Donde as linguagens embarcarem na celebridade dos signos, nos porões de letras aclimatadas (texto 4). As "agulhas de fogo" iniciativas têm em seus textos forte incidência, são um incêndio discursivo: ora uma é o fogo volátil [que] pertence ao teatro da longevidade, mas sempre a inteligência do fogo (texto 4), inspirador das gôndolas; os fogos organizadores do verbo para uma difusão dos candeeiros; ou aqueles que originados da mitopoética apontam para confluências das fogueiras [posto que] auxílios acantonados nas regenerações dos guardadores de vertigens (texto 5).

Ainda que surrealistas, às vezes gnósticos, os textos mergulham em tensões linguísticas à procura de uma forma de dizer poesia, em que as palavras "funcionam" como fendas/fulcros por onde apalpar significações tangíveis. As palavras, nesse contexto hermético, são parteiras soberanas do mistério, que fazem  cópias linguísticas dos saracoteios solares, que por seu turno localizam os desígnios das transgressões (texto 7).

No jogo palavra-puxa-palavra tem-se assim como uma bandeira imaginária da incomensurável linguagem, mas, também, degoladas definições onde as banalidades das bandejas verbais aspiram rudemente... (texto 8). O nonsense pensa em si para conotar vagabundos versos nas trajetórias interiores das provocações obsessivas (texto 9). O anticlímax do estranhamento enseja, por conseguinte, carroças de linguagem [que] insinuam os ofícios alienígenas e gramáticas dos casulos nas vaginas furiosas das metáforas.

Sua alquimia poética faz de cada palavra extemporânea um espelho surpreendente (texto 13). Nesse sentido, ou nessa falta de sentido, é possível comparar os seus textos com a produção de Herberto Helder. Para Nelson de Oliveira, "a poética de Helder tem sido sempre a metamorfose unificadora e da transmutação alquímica; é a simbiose absoluta entre todos os seres". Essa transfiguração alquímica reúne elementos de todos os "reinos", sagrados, profanos, míticos, mágicos, cósmicos, indo do primordial à mutação onto-genética. Ambos, Helder e Serguilha, constroem "enunciados sintática e semanticamente subversivos, articulados de maneira proibida pelo código" numa "estratégia de desautomatização", geradora de imediata incompreensão.

Serguilha retoma parte do repertório de Helder: árvore, vulva, o sentido de ocultação, uma "utopia órfica" dependente de tautologia, "da repetição áspera de determinados motivos", de uma "radical subversão da linguagem utilitária", do "abandono das formas fixas", a intenção de fazer "com que a atenção do leitor caia diretamente no sentido do enunciado, ou, melhor dizendo, na falta de sentido do enunciado" (Nelson de Oliveira).

Ambos, Helder e Serguilha, comparativamente, banem dos seus textos as associações lógicas e a coerência aristotélico-cartesiana, analisa Nelson de Oliveira sobre o autor de O corpo o luxo a obra, cultivando "os nexos descabidos e as incongruências sintáticas e semânticas". Contudo, é importante para desvendar os textos de ambos os autores lusitanos, Antonio Cândido, que atenta para um fato: ainda que haja transgressão, subversão, até mesmo aporia linguística, "os códigos continuam a existir".

Assinalada por Nelson de Oliveira para situar a poética de Herberto Helder, a observação de Antonio Cândido é pertinente, também, no caso de Serguilha: "a combinação se torna poética no nível linguístico devido à seleção: no caso, ela instaura o impossível lógico, inesperado e incongruente, mas transfigurador."

Donde não haver, pelo menos a priori, explicação plausível para construções surrealistas, que se nos surpreendem pela leitura imagética de supostas surpresas sígnicas. É, por exemplo, o caso de florescências extasiadas de límpidas catedrais — retorno dos candelabros na exaltação das gargantas dos guindastes (texto 2); ou como as cores da minerografia tateadas magnanimamente pela fugacidade das crinas do embarcadouro (texto 4); ou os palpites das miniaturas dos astros formando nas cavilhas infinitas do sangue a comunicação lenhosa e rosa (texto 7); ou a crucificação das papoilas sobre a aceitação das clavículas esquecidas das estrelas (texto 9); ou ainda um exército de detergentes-galgos triturados pelos dédalos viscerais dos cobradores de abafos fotográficos explicam a ancestralidade dos exílios dos chocalheiros como os telefones das cascavéis a calafetarem as detonações gangrenadas das avelãs.

 

Luís Serguilha em Germina

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> Na Berlinda (texto)

 

 

 

 

 

A DURA REALIDADE DE SER NEGRO NO BRASIL

Autoras publicam obra importante sobre

a condição de professores universitários da UFMG

 

 

"No Brasil, a construção das identidades negras passa por

processos complexos e tensos". Nilma Gomes, 2006.

 

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2009, 50,3% da população brasileira são negros. Na pesquisa Retrato das Desigualdades, do mesmo ano, a população negra representa 51,1% do contingente do país. Último país a abolir a escravatura, o Brasil mantém, em pleno século XXI, reflexões brutais do passado. Mesmo com metade da população brasileira sendo negra, a influência dessa etnia é mínima na sociedade atual. Em Minas Gerais, com base em autodeclarações pesquisadas, a população negra fica entre 40 e 75% do total. O que há de errado com os negros? Com todo absoluto rigor: nada.  Contudo, "professores negros não passam de dois ou três nos institutos, cursos, faculdades ou no conjunto do corpo docente das universidades no Brasil. Negros e negras foram secularmente excluídos do acesso a espaços, práticas e aquisição dos bens culturais legitimados no Brasil, ainda que estejam incluídos na lógica da produção e da reprodução da riqueza e da força de trabalho. Negros e negras não atingem nos dias atuais sequer 5% da totalidade de seus docentes". Essas são algumas conclusões a que chegaram as professoras doutoras oliveirenses Vanda Lúcia Praxedes e Inês de Castro Teixeira et alii,  do projeto "Memória e percursos das gerações de professores e estudantes negros e negras na UFMG", financiado pela Uniafro/Prodoc/Fae/UFMG, enfeixadas no livro homônimo recém-lançado. O livro reúne 16 entrevistas individuais gravadas em áudio e transcritas com análise, envolvendo professores de diversas áreas do conhecimento acadêmico, sendo cinco pós-doutores, oito doutores, dois mestres e um especialista.

Em depoimentos crus, os professores universitários negros expõem suas lutas intensas para quebrar barreiras, fazer "demarcação de posição", para "superar o jogo que mistura raça, cor, cultura, tradição, que constitui o sujeito negro no interior do universo negro familiar e grupal, religioso e profano, no espaço da política, no senso comum e no mundo científico", para "afirmar algo da negritude". Os depoentes revelam que para alcançar cargo docente na UFMG foi preciso superar muitos preconceitos, inclusive dos próprios negros, por haver rivalidade entre eles mesmos; a discriminação, as "situações em que o fato de ser pobre talvez conte mais do que o de ser negro", tendo sido a pobreza o principal problema para todos; as desigualdades incrustadas na cultura trabalhista, política, social e política do país. Em suas narrativas orais, enfatizam a importância da família numerosa de estrato social mais baixo como origem de superação das dificuldades financeiras, com destaque para a figura materna; dos movimentos sociais com a participação em grupos de igreja e a militância política conscientizadora, e "a formação de amplas redes de solidariedade tecidas ao longo da vida estudantil".

Uma das professoras entrevistadas afirmou: "Nosso sistema de discriminação é mais eficaz que o apartheid da África do Sul". Outro: "ser pobre é muito mais problemático do que ser negro". E um outro: "você vê os desaforos, vê os desapontamentos, mas a maneira que você encontra para superar as dificuldades não tem mistério: caminho é a educação". Em sua análise das entrevistas, o experiente Miguel Arroyo assinala: "A escola [em nível de trabalho na UFMG se caracteriza] como passagem do lugar social, do campo, do lugar racial da pobreza, da sobrevivência, das dificuldades do viver para uma promessa de vida melhor" e para superação das condições segregativas, seletivas, fechadas e discricionárias impostas pela sociedade. Ainda assim, pontua Arroyo, "a inspiração de políticas educativas não equaciona o acesso e a permanência dos coletivos populares negros (...) como garantia de seu direito ao conhecimento, à herança cultural, mas como processos de abandono, do atraso, da tradição e da ignorância". E conclui: neste cenário em tudo muito mais difícil para os negros, "avançam aqueles que incorporam os valores de esforço, trabalho, estudo, sucesso e mérito".

Lucília de Almeida Neves Delgado destaca, no prefácio, que Memórias e percursos de professores negros e negras na UFMG "traduz experiências sofridas, marcadas por preconceitos, dificuldades quase que intransponíveis e enorme esforço para superação dos obstáculos. Ao definir-se por uma opção memorialística que apresenta o diálogo entre a longa duração e o tempo presente, o livro é constituído por um conteúdo que dribla as armadilhas das generalizações e acelerações fáceis, contempla memórias socialmente construídas, memórias que falam de pertencimentos, estratégias de sobrevivência e superação de violências — inclusive as simbólicas, migrações, condições de vida, valores, expectativas realizadas ou frustradas, construção de esperanças, seleções, escolhas, realizações, segregações, travessias, retornos, preconceitos, identidade, racismo (...) e consciência racial".

É grande o mérito  da obra das professoras Vanda e Inês e motivo de orgulho para o país.

 

 

 

 

TERCETOS COM GABRIEL, DE PASCHOAL MOTTA

 

 

VOU SAUDAR A LUA CHEIA,

E GABRIEL ALUMIAVA

COM SEU CORTEJO DE SONHOS.

 

 

PENSO AGUAR O GIRASSOL,

E GABRIEL JÁ CANTAVA

COM O ZUMBIR DAS ABELHAS.

 

 

TENTO CONTAR AS ESTRELAS,

E GABRIEL CLAREAVA

FEITO O SOL DESTE PLANETA.

 

 

CORRO PARA A POESIA,

E GABRIEL JÁ RIMAVA

COM SUA AMADA FUTURA.

 

 

PROCURO A ÁGUA DA MINA,

E UM LAMBARI ERA O MENINO

NO RIACHO PARA O MAR.

 

 

TENTO FALAR COM OS HOMENS,

E GABRIEL, SÓ DE BRANCO,

ESCUTAVA A ESPERANÇA.

 

 

PROCURO FRESCA DE SOMBRA,

E GABRIEL ERA AS FOLHAS

DA MAIS COPADA MANGUEIRA.

 

 

PRECISO MATAR A FOME,

E GABRIEL PARTIA O PÃO

COM OS CÃES ESCORRAÇADOS.

 

 

ESPALHO O GRÃO PELAS LEIRAS

E GABRIEL PENDOAVA

MADURANDO O MILHARAL.

 

 

RASCUNHAVA ESTES TERCETOS,

E AMANHEÇO ENCANTADO:

GABRIEL TECIA A  AURORA.

 

 

NUM SORRISO ME CONVIDA

PARA DESENHAR AS CORES

DA PRIMEIRA PRIMAVERA.

 

 

[Porque chegou Gabriel, 22 de maio, 2010, São Pedro dos Ferros,

irmão de Hugo, ambos de Gilber e de Rita]

 

 

 

 

[charge de elder galvão: renan, sarney, lula, collor]

 

CANALHICES POLÍTICAS

 

Enquanto houver um político na Terra, a humanidade não será feliz.

 

Em qualquer parte do mundo e em todos os tempos, mas um ano-luz a mais no Brasil — política é uma aberração. Nunca, em toda a História, nenhum problema humano foi resolvido simplesmente porque o que mantém a função do político na sociedade é a desgraça do povo. É inconcebível a presença de gente como José Sarney, Collor de Melo, José Roberto Arruda, para lembrar maus exemplos mais recentes, que mesmo depois de tudo se mantêm no poder. Por iniciativa da CNBB, criou-se o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, do qual surgiu o projeto Ficha Limpa, que depois de 4 meses foi engavetado por Michel Temer. Há uma relação de 159 nomes de deputados de ficha suja na internet, alertando os eleitores contra seus crimes políticos. Quem primeiro se opôs à sua aprovação foram justamente alguns profissionais no poder: José Genoíno, arrolado no processo do mensalão, Geraldo Pudim e Ernandes Amorim, com processos de Justiça, e outros sub judice por homicídio, pelo mandraquismo de multiplicar recursos financeiros em causa própria e serem participantes do "leviano joguete de interesses escusos" no Congresso nacional. Gente séria como o procurador gaúcho João Heliofar de Jesus Villar concluiu que no Brasil a corrupção é o ovo da serpente. Assim como as hienas comem bosta e riem, os canalhas oficiais riem de si mesmos e gozam o povo no palco de suas fanfarronices, ilegalidades e cochos que engordam suas contas com o sangue e o suor dos contribuintes. Também em política há exceções, e os justos pagam pelos pecadores. 

Ainda que as licitações sejam regulamentadas pelo artigo 17, XXI da Constituição, dispondo sobre os princípios que deviam nortear as relações na esfera pública — legalidade, impessoalidade, isonomia, moralidade, publicidade, probidade administrativa, a corja oficial constitui um truste que envolve desde presidentes a senadores, deputados federais e estaduais, prefeitos, vereadores, secretários municipais, membros de comissões, empresários, marqueteiros e jornalistas.  Essa gente frauda licitações, balancetes contábeis, falsifica notas fiscais de empresas investigadas, usa documentos falsos, emprega recursos públicos com irregularidade, usa o cargo para sustentar amantes e filhos bastardos, sonega impostos, pratica estelionato eleitoral, formação de quadrilhas, peculato, prevaricação e crimes contra a ética, a economia e gestões públicas; tem apenas privilégios como o direito a prisão especial, aposentadoria com oito anos, foro diferenciado, imunidade parlamentar. Mesmo sendo criminosos, gozam de bolhas protetoras que os distanciam do povo (menos quando vêm pedir/comprar votos), e a cloaca de podridão de que são autores é sustentada por conchavos, mamatas, negociatas e os expedientes da corrupção mantida por leis. As benesses do poder corrompem essa gente, que, como os novos caudilhos latino-americanos, agora querem ter poder eterno e usam do assistencialismo clientelista para manter seus glotões de eleitores. Além de salários polpudos, políticos recebem propinas, dinheiro para manter viagens, gabinetes, apartamentos, todos os serviços de Correios, verbas de representação, cartões de crédito especiais, no mínimo 14 salários por ano, cachês por comparecimento a reuniões extraordinárias, regalias bancárias, e muito mais. Enquanto isso, os brasileiros devem R$555 bilhões em financiamento bancário, crédito consignado, empréstimo para compra de veículos e imóveis, incluindo o Sistema Financeiro da Habitação, o que corresponde a 40% da renda anual da população, encerrando 2009 com débito equivalente a 10 meses e 20 dias de salário para pagar as dívidas, a maioria de sobrevivência. Para se manterem no poder, ou seja, mamando nas tetas dos contribuintes, os políticos inventam voto indireto, voto facultativo, voto distrital, voto do analfabeto, desde que lhes favoreçam. E mantêm um regime conveniente às suas práticas ilegais, sem dar chance ao parlamentarismo, praticado em países com amplo desenvolvimento e menos corruptos, como Estados Unidos, Japão, França, Alemanha, Espanha e Holanda.

"Não existem mais limites para a prática ostensiva da desonestidade no país. As infinitas oportunidades das impunidades recorrentes fazem do cidadão servidor público ou não, um potencial corrupto, prevaricador, e um ladrão, sem distinção de classe, cor ou renda. Os melhores exemplos vêm do poder público praticando o marketing do desvio da atenção sobre seus atos criminosos como forma de não permitir a perda do domínio da situação" — analisa o professor e economista Geraldo Almendra. "A quem, afinal, esse Congresso representa?", pergunta o bispo Dom Tomás Balduíno. "Se nós, eleitores, somos, efetivamente, os 'patrões', pois contratamos através do voto direto deputados federais, estaduais, senadores, vereadores, prefeitos, governadores e presidente da república, já que somos nós quem pagamos seus polpudos salários através da imposição de uma das mais elevadas cargas tributárias do planeta — próxima aos 40% do PIB — por que não disponibilizamos de institutos jurídicos para exercermos o direito de demitirmos maus políticos?", questiona o advogado Armando Bergo Neto. Por que só se lê e ouve sobre politicagem, mas quase nunca sobre os projetos de lei beneficiários do povo? Puxe pela memória, leitor(a), e tente se lembrar: que político devolveu o que roubou do povo, foi preso, cumpriu pena e foi banido do poder?

Em sã consciência: que mérito tem o político brasileiro? Ele orgulha a nação? Ele trabalha pelo povo? Ele serve de exemplo?

Você sabia que 31% dos brasileiros com curso superior (veja bem: formados em universidade) não sabem o nome de três ministros atuais?

Não fosse pela obrigação sob ameaça (isso num regime que se diz democrático) você votaria? Em quem e para quê?

 

 

 

 

[desenho de diego guerra | diggs | o louco: carta do tarô]

 

UM POEMA DE ALBA VARGAS DE ALMEIDA [16 anos de idade]

 

LÁBIA

 

Não sei se é Maria, João ou José

só sei que de onde veio

ninguém mais o quer.

 

Fui até num vidente

as cartas não mentem

perfil de assassino

com alma de delinquente.

 

Sujeito calmo, quieto, parado,

de olhar desviado

de quem tenta o ver.

 

Tem fama de perigoso,

te prende, mente e me sente

mostrando o lado impetuoso.

 

Bem aparentado

vive de um jeito apertado

entre críticas, elogios, amassos.

 

Eu lhe dou o meu amor

posso fazer o que for

e ele continua ingrato

mas não caio na sua de novo

conquistador barato.

 

 

 

 

setembro, 2010