ciclo

 

A cama espinha teu corpo

e na meia-noite insone

teu desejo ofusca a pálida minguante.

Sou eu que me vingo e surjo com as marés

semente no chão solta pela preamar

Sou eu, homem, que venho e broto

os lenhos que crescem nos Ciclos, a seiva que corrói

Raiz que afunda a coifa no teu desespero

sorvendo a inquietação em fome crescente

Ou o tronco largo

silhueta em poros na anatomia dos abraços

Não, não passarão as estações

Porque todos os homens me levarão a ti

No teu corpo continuo em verdes frutos

que amadurecem em escândalo no verão

 

 

 

 

 

 

semente

 

As nêsperas na mesa

       abrem-se fartas

de carne e suco

       E o violento temporal

vai dedilhar os poros

      revolver pedras

enxaguar

               raízes e vermes

afogar

Teu fruto

      (eu lembro)  desfibrava fácil

e a carne vinha mole entre os dentes

      As enxurradas vieram

como baladas rápidas de ávidos curumins

      E os pássaros vieram sujos

de Bering ou Marrakesh

      As águas chegaram. Outra vez, perenes

levando retratos, remexendo sulcos de discos esquecidos

       evolando perfumes suaves de roupas e camas

 

Ah por que entre os verões o manancial da tua boca?

Por que esses perfis de narizes e lábios

entre o abandono de girassóis que já não buscam mais?

Por que a frase que tu queres e que não está em mim?

Pássaros e chuvas vão e vêm

      e redesenharão fantásticos infinitos

enquanto for grande a imaginação da Esperança

      Enquanto não pousarem no único fio retesado e

melódico

E as fibras desse Verão venham entre os dentes

      como reescrevessem   c o n t r a p o n t o s

de melodias e réquiens

 

 

(Prêmio Carlos Drummond de Andrade, SESC-DF. Seleção 2008)

 

 

 

 

 

 

elegíaca

 

"A palavra é a minha quarta dimensão".

Clarice Lispector

 

Segui os passos

da menina de Tchetchelnik

Dez luas passaram flechadas por Sagitário

Maçãs no claro ofertam-se de tanta maturação:

ensanguentadas, reluzem. Balançam lustres

em din-dlens de poeira suja

Aqui

a Praça Maciel Pinheiro

circunda o Tempo

O casarão 387

é agora insípido e laranja

(mas vi entre uma e outra janela

a menina sorrir para mundos distantes)

Longe

as esquinas de Nápoles Berna Torquay Washington

(As esquinas do mundo são iguais

quando punge à solidão

a lembrança de tudo que fomos)

Corro pelos caminhos de mais um solstício

a cidade ergue-se em dóricas faiscantes

escaravelhos brotam da terra

e no rosto eslavo

pupilas pulsam quasars

É por ti:

elevo-me à tua memória

Candelabros iluminando a noite

o Kaddish arrebanhando os perdidos como nós

— percorro os caminhos da mulher de Tchetchelnik

O olhar oblíquo

A boca rubra

A safira no dedo

A Estrela de Mil Pontas

rompendo gargantas. É Palavra

Aponta Sagitário mais uma seta em riste

Agora, sabeis: no coração selvagemente livre

                             

Salve  9  de dezembro.

 

 

(Prêmio Mostre Seu Talento 2006 - Chesf / Sindicato dos Bancários de Pernambuco)

 

 

 
 
 

outra canção para desiderata

 

"Oh carne, carne mía, mujer que amé y perdí,

a ti en esta hora húmeda, evoco y hago canto".

Neruda

 

Desiderata

abençoaram teu corpo no domingo

As abóbadas de pedra

imitavam a renda

do vestido azul

Agora, querida

 és íntima de todas as ocultas sapiências

 Desiderata

 os campos estão lavrados em nome da fome

 e há essa romaria

 de brotos inertes

 zumbindo afônicos sob a terra

 Nada permanecerá

 — o mundo corroendo-se de novíssimas vidas

 e os homens correndo para vesti-las

 Eu pensei que também tu fosses eterna

 Lembro que nada exigias

 e calculavas com a alegria sem risos

 os passos lentos da Velha Senhora

 Dizias: sou tão fraca... !

 Eu falava: és tão forte!

 E fingias ouvir

 trancada no cimo

 de torres inatingíveis

 Miosótis cresciam em teu caminho, Desiderata

 e quando colhidos por tuas mãos tornavam-se

 "não-te-esqueças-de-de-mim"

 Ah como esquecer esse profundo abandono

 de não querer amar

 porque o futuro já passou?

 Desiderata

 que bordava à tarde

 e morria à noite, com o sol

 "Sou tão triste... !". "És tão calma!"

 Ou quando cansada

 erguia os olhos impacientes e pressagiava

 nas asas de uma borboleta preta:

 "vê: é a minha vida que se vai"

 (Nem plenilúnios nem meus lábios coravam teu rosto

 E o linho que bordavas era extenso

 já marcado pelas estações)

 Desiderata

 eu que pensava que tu fosses eterna

 Até que te vestiram de renda e azul

 e foste calma para o chão.

 Estavas verde

 como se circulasse musgo nas veias de vidro

 Eras sem destino desde o início

 O presságio do fim absoluto acontece em surdina:

 músculos desabrochando no ninho de pedras e vermes

 O Retorno

 O mofo tecendo nos cabelos

 a velhice que não houve

 Desiderata

 és uma lembrança. Mas nada permanecerá

 Minha fraqueza a negar tua força

 teu nome a desafiar o Tempo

 a suavidade das tardes

 a revelar a solene tristeza do teu rosto

 

 

(Menção Honrosa no Prêmio Helena Kolody 2007 – Secretaria de Cultura do Governo do Paraná)
 
 

 

 

 
 
 

passagem

 

Conheceis bem a barca dos mortos:

o condutor estira a mão

e jogam-lhe moedas

Estou nu, com frio

— a Poesia roubou-me tudo

Serve a Dor como troca?

É o que tenho e o que terei ainda

 

 

 

 

 

 

em final

 

Esse jogo de armar: a Poesia

Não quero mais

Armem o puzzle por mim

Não quero mais, minha vida

(Por mais que uma noite

 sepulte a verdade de um homem

 amanhã acordarei lúcido novamente)

Não mais perseguir os ídolos de pés de barro

nem beijar as mãos de pedras

nem correr entre sombras

que me enganam em seus domínios

Não quero mais, vida minha

Só a força dos meus amantes

 
 
[imagens ©magda]
 
 

 

Raimundo de Moraes (Recife/PB). Jornalista, publicitário e coeditor do Interpoética, maior portal literário de Pernambuco e primeiro ponto de cultura virtual do estado. Vem da eclética geração do Movimento de Escritores Independentes, que levou para as ruas da capital pernambucana, através de happenings e recitais, a nova proposta de arte dos chamados "escritores marginais". Se divide entre os heterônimos Aymmar Rodriguéz e Semíramis, reunidos no livro Tríade, a ser lançado em 2010 através de projeto do Funcultura/Fundarpe. Mais sobre o autor: clique aqui.
 
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