Mesmo esta, agora, é

 

Nunca pude escrever nem uma

única linha sobre as casas onde morei.

Nunca, para você ter uma idéia,

alguma delas amanheceu com estrondos,

fendas inexplicáveis ou um

gato degolado junto às rosas

e à pequena horta.

 

Eram casas, apenas. Estruturas,

antienigmas, pedras encimando

pedras. Mesmo esta, agora, é

uma mera máquina de signos —

demasiado gastos para que se extraia

dela, na melhor das hipóteses, mais

que uma outra (mera) máquina de

signos gastos.

 

 

[de Trívio, 2001]

 

 

 

 

 

 

 

Noite

 

O menino viu

sair da boca

 

da mulher, talvez

sua mãe, uma voz

 

estrídula e lábil, que

logo desandou,

 

em cadência

de sonho, a quê?

 

— A enumerar desas-

tres já ocorridos

 

e por ocorrer,

a fecundar

 

harpias, a frisar

as marcas

 

da passagem

da pantera pelo quarto,

 

a aturdir relógios,

a enegrecer o sol

 

e outras mais

de tais proezas.

 

[de Modelos vivos, inédito]

 

 

 

 

 

 

 

Estrondo

 

para Maria Esther Maciel

 

Naquele entrecho

mais lento dos

dias, aqui, onde,

 

não importa o

modo como os pés

pisem as folhas

 

ao caminhar, o

barulho quebradiço

da sombra deles

 

(espraiada entre

a calçada e as

pedras-escombros

 

da casa) bem poderia,

se ouvido por uma

detalhista

 

como você,

ser chamado de troar,

estouro, estrondo.

 

 

[de Modelos vivos, inédito]

 

 

 
 
 

Cabeça de serpente

 

a serpente morde a própria cauda. a serpente pensa que morde a própria cauda. a serpente apenas pensa que morde a própria cauda. a serpente morde a própria cauda que pensa. a serpente morde a própria cauda suspensa. a serpente pensa que a própria cauda morde. a serpente pensa com a própria cabeça. a serpente sonha que simula o próprio silvo. a serpente sonha ser outra serpente que simula o próprio sonho e silva. a serpente pensa e silva selva adentro. a serpente sonha que pensa e no sonho pensa que as serpentes sonham. a serpente pensa que sonha e no sonho pensa o que as serpentes pensam. a serpente morde sem pensar no que pode. a serpente pensa que morde a própria causa. a serpente pensa e morde em causa própria. a serpente pensa e morde apenas o que pensa. a serpente pensa que pensa e morde o que pensa. a serpente morde o que pensa e o que morde. a serpente pensa o que pensa a serpente. a serpente se pensa enquanto serpente. a serpente se pensa enquanto ser que pensa. a serpente pensa o que pensam as serpentes. a serpente morde o que pensa a serpente. a serpente morde o que mordem as serpentes. a serpente morde o que pode. a serpente pensa em se morder. a serpente morde sem pensar o que pode. a serpente morde sem pensar o que morde o que pode. a serpente morde o que morde. a serpente morde enquanto pode. a serpente pensa sem palavras. a serpente só não pensa a palavra serpente. a serpente só não morde a palavra serpente. a serpente pode o que pode sem palavras. a serpente morde o que pode sem medir palavras. a serpente mede de cabo a rabo a própria cabeça. a serpente emite a própria sentença. a serpente morde a própria cabeça.

 

 

[de Modelos vivos, inédito]

 

 

 

 
 

Dedicatória

 

Prefiro a paciente

proeza das traças,

 

meu caquético rapaz,

aos versinhos

 

bem traçados

dos quais

 

te mostras capaz

(assépticos e sérios

 

como os de

ninguém mais).

 

Ah! Ler-te

é penetrar na paz

 

dos cemitérios.

Pelo modo como caminhas,

 

nota-se que ainda

respiras, mas

 

já entreleio,

junto aos títulos

 

dos teus livros,

os dois precisos

 

vocábulos

("Aqui jaz")

 

com que, um dia,

te saudarão os vivos.

 

 

[de Máquina zero, 2004]

 

 

 

 

 

 

Paupéria revisitada

 

Putas, como os deuses,

vendem quando dão.

Poetas, não.

Policiais e pistoleiros

vendem segurança

(isto é, vingança ou proteção).

Poetas se gabam do limbo, do veto

do censor, do exílio, da vaia

e do dinheiro não).

Poesia é pão (para

o espírito, se diz), mas atenção:

o padeiro da esquina balofa

vive do que faz; o mais

fino poeta, não.

Poetas dão de graça

o ar de sua graça

(e ainda troçam

na companhia das traças

de tal "nobre condição").

Pastores e padres vendem

lotes no céu

à prestação.

Políticos compram &

(se) vendem

na primeira ocasião.

Poetas (posto que vivem

de brisa) fazem do No, thanks

seu refrão.

 

 

[de Máquina zero, 2004]

 

 

 

 

 

 

Máquina zero

 

Quarto dia: entendo que o q

ue preciso, se q

 

uero mesmo continuar a p

erambular com alguma chance de êxito p

 

or uma cidade ( duas ) como Berlim, é

de sapatos de largo fôlego. Caminho ( penso e

 

nquanto caminho ), permeável a t

udo: ao frio sol cortante, às crianças t

 

urcas com seu comércio informal de b

rinquedos usados, à b

 

eleza sem rumo da adolescente que ( longas p

ernas abertas sobre um p

 

rosaico selim de bicicleta ) c

avalga o c

 

omeço da tarde, aos grafites que "d

ariam belas fotos", à Topografia d

 

o Terror, às ruínas, ao r

asta que me saúda ( "R

 

asta!" ) na Wilhelmstrasse, às l

ascas do Muro na vitrine da pequena l

 

oja, ao a

marelo-zoom do metrô a

 

pontando na curva a

ntes do teatro, à

 

História,

 

 

[de Máquina zero, 2004]

 

 

 

 

 

 

Labirinto

 

Conheço a cidade

como a sola do meu pé.

 

Espírito e corpo prontos

para evitar

 

outros humanos polícias

carros ônibus buracos

 

e dejetos na calçada,

incorporo hoje o Sombra amanhã

 

o Homem In

visível sexta à noite

 

o perigoso Ninguém

e sigo.

 

Como os cegos

conheço o labirinto

 

por pisá-lo

por tê-lo

 

de cor na ponta dos pés

à maneira também do que

 

fazem uns poucos

com a bola

 

num futebol descalço

qualquer. Conheço a

 

cidade toda (a

mínima dobra retas cada borda

 

curvas) e nela — à

custa de me

 

perder — me

reconheço.

 

 

[de Máquina zero, 2004]

 

 
(imagens ©27147)
 

 

Ricardo Aleixo. Belorizontino de 1960, poeta, artista intermídia, performador, ensaísta e professor de design sonoro na universidade Fumec. Desde 2007, concentra suas atividades de criação e pesquisa no LIRA (Laboratório Interartes Ricardo Aleixo), onde também coordena cursos, oficinas e aulas particulares. Autor, entre outros, de Trívio e Máquina zero, em setembro de 2010 publica Modelos vivos, escrito com recursos do Programa Petrobras Cultural. Escreve o Jaguadarte.