Frei João abriu os olhos. Ouviu o ruído das dobradiças e, logo em seguida, o estalo da fechadura. Levantou-se sem pressa, vestiu o hábito, calçou as sandálias e saiu para o corredor. Três portas depois da sua, girou lentamente a maçaneta e deixou a penumbra da noite penetrar o quarto: não havia ninguém na cama. Ele desceu as escadas sem alarde, contornou o átrio e, ao parar diante da porta de acesso à igreja, hesitou. Subiu no banco que havia em baixo de um dos vitrais e, discretamente, espiou pelo basculante. Ajoelhado diante do altar, frei José rezava.

Era tempo da Quaresma. Os frades foram despertados ao amanhecer pelo ronco da matraca, que os convocava para as laudes. O sol ainda não despontara quando cada um se posicionou diante da porta de seu quarto e, em seguida, todos caminharam em procissão até a igreja, onde tomaram seus assentos no coro. Enquanto as melodias do ofício ecoavam pela nave central, Frei João olhava furtivamente para frei José. Notou que o sono pesava sobre suas pálpebras e deixou escapar uma expressão de intriga ao perceber a ênfase com que o confrade entoou os versos do responsório.

 

Ó Senhor, minha força,

Vinde depressa em meu auxílio.

Não vos afasteis, próxima está a angústia.

Vinde depressa em meu auxílio.

 

Naquela manhã, enquanto se dedicava ao trabalho na horta, frei João repassou na memória os eventos recentes. Na semana anterior, frei José havia retornado tarde de uma visita pastoral e, após o jantar, os frades comentaram que ele estava em silêncio incomum. Dois dias depois, frei João caminhava em direção à cozinha quando ouviu o rumor de uma voz que parecia discutir em surdina com alguém. Logo em seguida, frei José despontou alvoroçado do gabinete telefônico e, sem perceber que era visto, dirigiu-se a passos largos para a garagem.

Dali a três noites, frei João levantou-se durante a madrugada para beber água. Ao passar pela capela interna, ouviu um estalo estridente, seguido de um grito abafado. A sequência repetiu-se uma, duas vezes e ele compreendeu que algum frade entregava-se ao castigo do flagelo. Retornou para o quarto. Na manhã seguinte, notou que frei José não compareceu às laudes e, ao encontrá-lo na hora do almoço, percebeu-o coxear. Aproximou-se do confrade e perguntou se ele machucara a perna. Um escorrego no banheiro, nada grave. — ouviu em resposta acanhada.

O silêncio, a discussão, a saída frenética, a auto-flagelação, a vigília na igreja e a ênfase no responsório, tudo conduzia à inevitável desconfiança de que havia algo errado. Na tarde daquele dia, frei João tentou aproximar-se de frei José. Encontravam-se ambos na sala de leitura, dedicando-se à hora de estudos, quando este cochilou sobre o livro que mantinha aberto diante de si e deixou o lápis cair da mão e escorregar sobre a mesa até parar no chão. O confrade acudiu-o com presteza e, ao entregar-lhe de volta o lápis, fez um comentário em tom proverbial:

— Vigílias são proveitosas para a alma, no entanto maltratam o corpo e diminuem o rendimento das tarefas diárias.

A princípio, frei José limitou-se a agradecer e esboçar um sorriso encabulado. Passados alguns segundos, durante os quais pareceu apenas fingir que procurava a página onde interrompera a leitura, afirmou com a voz meio débil que periodicamente era útil impor ao corpo algum sacrifício, a fim de aperfeiçoar a alma, afinal fora pelo sacrifício de sua própria carne que Nosso Senhor promovera a salvação das almas.

— Parece-me que nossos irmãos têm concordado com o senhor. Hoje mesmo, tive a impressão de ouvir a porta da igreja abrir-se durante a madrugada. Talvez um frade oferecendo sua cota de sacrifício...

Frei José não conseguiu esconder a perturbação no olhar, que errou pelos objetos da sala até aportar no relógio acima da janela aberta à esquerda:

— Parece-me que o sino já vai chamar para as vésperas, meu irmão. Depois, continuaremos nossa conversa sobre a utilidade das vigílias. — e, despedindo-se, saiu em direção à igreja.

Havia muito tempo, Frei João sabia de sua habilidade em notar a angústia dos confrades, descobrir sua causa e oferecer-lhes o conforto da confidência. Procedia às investigações e guardava os segredos com tanta discrição que jamais qualquer um deles desconfiou da existência dos sigilos alheios. Fora dessa forma com a aventura amorosa de frei..., o fraquejo na fé de frei..., os problemas etílicos de frei... e seria assim com frei José. Dessa maneira, ele gozava do respeito geral, que a comunidade reputava a sinceros indícios de santidade.

 

Nos dias que se seguiram à conversa na sala de estudos, frei João não percebeu nenhum movimento anormal nos corredores do convento durante a madrugada. Observou frei José de longe, sem fazer-se notar, e viu-o tão-somente dedicar-se às atividades rotineiras da comunidade. O estado das coisas manteve-se assim até a Quinta-Feira Santa, quando os frades saíram para o Lava-Pés na Catedral. Frei José permaneceu no convento, sob o pretexto de uma crise de labirintite, e não escondeu o aborrecimento diante da insistência de frei João em fazer-lhe companhia.

Eram quatro horas da tarde quando a campainha da entrada principal soou. Frei José — que fingia repousar em sua cama; mas, na verdade, revirava-se inquieto sobre o colchão — pôs-se bruscamente de pé para atender ao chamado, mas logo em seguida hesitou. Avançou até a porta, perscrutou discretamente o corredor; caminhou lentamente até o quarto de frei João, onde não o encontrou. Insistiram na campainha. Frei José saiu em direção à porta, vacilando entre o passo apressado e o andar sôfrego como convém a um doente.

Ao descer as escadas, a campainha voltou a soar. Frei José deixou escapar um grito exaltado: — Já vou! Já vou! E deteve-se, espantado, olhando ao redor de si mesmo. Ao segurar a chave da porta, murmurou algo em volume inaudível. Inspirou o ar pausadamente. E girou a maçaneta. Diante de si, um casal de meia idade, cujos olhares o penetraram com vigor desconcertante. Ele pediu que entrassem e, visivelmente apressado, levou-os para uma sala reservada, contígua à principal, certificando-se de que ninguém os observava antes de fechar a porta.

O casal acomodou-se no maior dos sofás, voltado para as duas janelas, entre as quais figurava um imenso crucifixo trabalhado em madeira. Frei José sentou-se na poltrona em frente, voltado para as três telas a óleo onde se viam cenas da Paixão de Cristo, como se compusessem um tríptico: à esquerda, a disputa do manto nos dados; à direita, Maria ao pé da cruz; no meio, o Crucificado. Havia sinais de sofrimento no rosto da mulher; o homem manteve o semblante grave o tempo inteiro. Frei José estava inquieto e começou a falar:

— Este não é o melhor lugar para encontrar vocês, mas, enfim... vocês insistiram e eu aceitei... gostaria... se puderem, entendam isso como sinal de boa vontade. Mas não temos muito tempo, nem todos os frades saíram e os demais...

— E nós não temos tempo a perder com você! — interrompeu, rispidamente, o homem.      

Seguiu-se um instante de silêncio.

— Nesse caso... eu pergunto: vocês... decidiram o que fazer? — interrogou frei José, com a voz débil.

— Eu já lhe falei que minha primeira vontade foi matá-lo imediatamente. Mas tive tempo suficiente para refletir e chegar à conclusão de que isto seria injusto: você morreria, ficaria livre e eu, respondendo a processo.

Os olhos da mulher começaram a ficar marejados à medida que o marido falava, até que ela não se conteve mais e entregou-se a um choro contido. O homem prosseguia, com gravidade:

— Demoramos a tomar uma decisão, porque não queremos escândalo. Não por sua causa. Se fosse apenas por mim, todos saberiam o que você fez...

— Eu não cheguei a fazer o que vocês pensam. Tentem compreender, por favor. O que ocorreu foi um pouco diferente...

— Eu sei exatamente o que você fez e isso é motivo suficiente para partir sua cara! — a essa altura, o homem exaltou-se, falando quase aos berros e fazendo menção de erguer-se do sofá em direção ao frade.     

— Por favor... por favor... há outros frades no convento! Baixe a voz, por favor! — implorou frei José, aos sussurros, em desespero.

A mulher tentou acalmar o homem. Ele ofegava. Ela segurou sua mão, enxugou as bochechas e, lançando um olhar de revolta para o frade, que estava pálido e trêmulo, falou:

— Mesmo que o senhor não estivesse com as intenções que disse não ter, que direito tinha, diga, que direito tinha de falar o que falou ao meu filho, de chegar a fazer o que fez?

— Minha senhora, não é uma questão de direito...

— Mas o senhor é um frade. Tem deveres em relação às pessoas que confiam no senhor pela posição que ocupa. E essas pessoas, diga, não têm o direito de esperar determinada conduta de sua parte?     

— Sim, claro que sim. Mas o que aconteceu...

Nisso, o homem interrompeu frei José e retomou de onde parara:

— Não vamos discutir novamente esse ponto. Você não nos convence; aliás, o que aconteceu não é aceitável e ponto final. O que temos a dizer é o seguinte: não haverá processo nem imprensa. Queremos preservar nossa família, embora você mereça a desonra em público. Mas você terá que ser expulso do convento; nós queremos garantia de que não voltará a usar o hábito para fazer outras vítimas. Nós vamos falar com seu superior!

Frei José ergue-se da poltrona, começou a dar voltas em torno de si mesmo, levou as mãos à cabeça e, com voz desesperada, dirigiu-se ao casal:

— Eu não abusei de minha posição. Vocês têm que compreender... por favor... eu sei que cometi um pecado... tenho me penitenciado dia após dia... mas essa foi a única vez em que eu me envolvi numa situação como essa. E não houve abuso, houve... houve... não sei! Enfim, foi algo incontrolável... natural...

— Isso não é natural e você sabe bem disso! Você é padre ou o quê? — esbravejou o homem.

Frei José já nem teve forças para pedir que ele se contivesse. Deixou-se cair sobre a poltrona e suplicou por mais tempo, um pouco de paciência para conversar mais, chegar à melhor compreensão dos fatos...

— Não há nada a ser compreendido. Os fatos são claros e a decisão está tomada. Você tem que deixar de ser padre, ou frade, sei lá! E tem que ficar sob supervisão, fazer um tratamento ou sei lá o que é necessário para... para... meu Deus! Como é possível?! — interrompeu-se o homem com a voz embargada.

Seguiu-se um segundo de silêncio interminável. Frei José largou-se sobre a poltrona e, por fim, perguntou:

— E como pretendem fazer? Quando?

— Falaremos com seus superiores. Quando, ainda não sabemos. Estamos conversando com um psicólogo, procurando orientação para saber a forma e o momento mais adequado. – respondeu a mulher, já mais tranquila.

Os três se ergueram quase ao mesmo tempo. Despediram-se secamente. Frei José trancou a porta com força e deixou-se ficar, por alguns instantes, curvado sobre a maçaneta. Suas mãos estavam geladas. E tremiam. Quis chorar, mas se conteve ao ouvir a voz de frei João atrás de si:

— O que faz aí, frei José? Não deveria estar na cama? Sente-se mal?

— Não é nada grave, meu irmão. A campainha tocou, vim atender a porta e terminei sentindo um enjoo. — frei José esforçava-se para não transmitir em sua voz nada além do que fosse adequado à voz de um doente.

— Ah, perdoe-me, não ouvi a campainha. Por que não me chamou? Eu rezava na capela. Não se lembra? Eu lhe disse que ficaria lá. Mas, o que é isso? O senhor está pálido! E suas mãos... vamos, vou levá-lo para a cama.

Frei José não se lembrava de nada do que frei João lhe dissera. Limitou-se a aceitar sua ajuda para subir as escadas e caminhar de volta ao quarto. Ao deitar-se na cama, ainda teve de enfrentar mais uma pergunta do outro:

— Bom, a cor já está voltando. Deve ter sido o esforço de andar. Vou deixá-lo sozinho. Mas, afinal, quem esteve aí, tocando a campainha?

— Eram... dois ministros... ministros da eucaristia à procura de hóstias consagradas.

— Engraçado, tive a impressão de ouvir uma voz exaltada...

Dizendo isso, frei João percebeu os lábios do outro voltarem a ficar lívidos como alguns instantes atrás e seus olhos, assustados.

— Ora, deve ter sido algum azucrim querendo impedir-me a reza. Descanse, frei José. E não hesite em chamar.

 

 

 

 

 

 

 
 
 

 

A princípio, os frades quiseram chamar um médico, mas o próprio doente os tranquilizou, dizendo que se tratava apenas de uma crise de labirintite, já tomara os remédios e, no dia seguinte, estaria curado. O fato é que, no dia seguinte, frei José ergueu-se da cama e desceu à igreja para acompanhar os demais na Via Crúcis, mas desabou sobre o banco mal fora traçado o primeiro sinal-da-cruz. À beira do pânico, os frades o acudiram e o levaram de volta ao quarto. Frei José tinha febre. Chegou a balbuciar que não conseguia sentir as forças do corpo.

O médico chegou dali a poucos minutos. No quarto, permaneceram o superior e frei João, que insistira em ficar responsável pelo acompanhamento de frei José. Os demais frades retiraram-se para a capela e, aguardando notícias, dedicavam um rosário inteiro à saúde do irmão de convento. Feitos os exames de praxe, o médico tranquilizou o superior: o coração batia em perfeita ordem e não havia sinal de disfunção nos pulmões; a febre, o desmaio e a exaustão poderiam ser sintomas de esgotamento nervoso.

— Vocês, frades, gostam de fazer sacrifícios nada bons para o corpo. Vigílias, jejuns e muito trabalho durante o dia terminam resultando nisso.

— Estamos saindo da Quaresma, doutor. Talvez, frei José tenha exagerado um pouco nas vigílias e nos atos de penitência. Mas eu cuidarei dele. Não permitirei que cometa outros excessos! — interveio frei João, com a voz pausada e serena.

O médico prescreveu remédios para controlar a febre e induzir ao sono; finalmente, recomendou uma semana inteira de repouso absoluto e deixou expressamente proibido qualquer tipo de aborrecimento. O superior agradeceu-lhe a presteza com que atendera ao chamado e o acompanhou até a saída. Frei João permaneceu no quarto, tomou o terço nas mãos e pôs-se a rezar o rosário. Frei José ainda esteve acordado e lúcido o suficiente para agradecer-lhe o apoio até que, sob efeito da medicação, sucumbiu ao sono. E dormiu. Profundamente.

Quando acordou, sentiu o corpo tão debilitado que sequer se moveu. Deixou-se ficar na mesma posição, ora fechando os olhos, ora se esforçando para mantê-los abertos. O quarto ia escurecendo gradualmente. As cigarras trompeteavam a todo vapor no jardim e o coro de passarinhos despedia-se, em uníssono, da tarde. Aqui e acolá, soprava pelos corredores do convento um vento melodioso que fazia as folhas das plantas farfalharem e escancarava janelas e portas, inundando todos os cômodos com aquela sinfonia crepuscular.

Frei José inspirava e expirava pausadamente o ar, como se fizesse questão de permitir que os sons carregados pelo vento circulassem por suas artérias e animassem seus músculos. A certa altura, deixou um sorriso tímido, porém persistente, desenhar-se na face e, em volume quase inaudível, começou a cantarolar... senhor, fazei-me instrumento de vossa paz, onde houver ódio que eu leve o amor, onde houver ofensa que eu leve o perdão... e prosseguiu, aleatoriamente, até que sua boca parou e suas pálpebras pesaram de vez. Voltou a dormir.  

Assim transcorreram os dias seguintes. Frei José dormia a maior parte do tempo. Às vezes, acordava e ficava largado, alheio ao que o cercava ou vagamente impressionado por algum movimento, até adormecer novamente. Outras vezes, despertou, trocou algumas palavras vagas com os frades que o visitavam e fez outras coisas das quais não teve muita consciência; logo em seguida, voltou a dormir. O superior chegou a preocupar-se com tamanha debilidade, mas foi acalmado pelo médico, que atribuiu tanto sono aos remédios prescritos.

Na quinta-feira, frei José acordou normalmente, logo após a missa matutina. Frei João lia, sentado em uma poltrona colocada à cabeceira da cama; ao final do terceiro e mais longo bocejo do outro, inclinou-se em sua direção e disse:

— Bom dia. Vejo que, dessa vez, o senhor acordou para valer.

Frei José não conseguiu responder de imediato. Ainda bocejou uma ou duas vezes, espreguiçou-se longa e repetidamente...

— Estou dormindo... o que aconteceu... há quanto tempo estou dormindo? — perguntou, com a voz fraca.

— Desde sexta-feira. O senhor dorme desde sexta-feira. Mas não se preocupe, foram os remédios. Agora, os efeitos dos últimos devem estar passando.

— Remédios? Estou doente?

— Não se lembra? O senhor estava com labirintite. Desmaiou durante a Via Crúcis na Sexta-Feira Santa. Dr. Virgolino esteve aqui. Ele disse que o senhor padecia de esgotamento nervoso e receitou remédios para fazê-lo dormir, descansar. Até febre o senhor teve. Nada de aborrecimentos, ele ordenou!

Frei José fez silêncio. Começou a apertar os olhos e vagueá-los pelos cantos, como fazem as pessoas que procuram lembrar-se de algo. Enfim, retomou o diálogo:

— E como me alimentei? Não me recordo... por acaso, fui ao banheiro? E banho... tomei algum banho?

— Calma, frei José, calma! O senhor esteve tão sedado que deve ter feito tudo sem perceber. O senhor acordou, comeu, banhou-se, enfim, até conversou! Mas não disse nada que fizesse sentido. Parecia delirar... — frei João terminou essas palavras, soltando uma risada bem humorada.   

— Então, o senhor esteve o tempo inteiro aqui comigo?

— Sim, claro que sim! E como o senhor acha que conseguiu levar a colher à boca ou chegar ao banheiro? — novamente, frei João riu. E continuou:

— Olhe aqui, o senhor acordou. Isso é bom. Mas não vá fazer muito esforço. Ainda está em repouso. O médico determinou que só retomasse a rotina na próxima semana. Até lá, não saia daqui. Descanse o corpo. Recupere aos poucos a memória. E, quando estiver novamente são, volte ao nosso convívio! Vou buscar seu café-da-manhã. Fique deitado, hein?

Frei José inquietou-se um pouco na cama. Ergueu a cabeça, investigou o quarto, deteve-se por alguns instantes olhando através da janela. Em seguida, disse a si mesmo em voz baixa, que havia algo estranho, como um bloqueio, impedindo-o de lembrar completamente o que ocorrera. O desmaio... a Via Crúcis... enfim, os remédios! Logo, logo, estarei bom e bem lembrado de tudo. Tentou levantar-se. Sentiu-se tonto. Apoiou-se nos braços, deu um impulso, mas terminou desabando de novo sobre o travesseiro. Dali a pouco, frei João chegou com a bandeja.

Durante o resto da quinta e no dia seguinte, frei José manteve-se no quarto. Aos poucos, recuperou o equilíbrio. Levantou-se, caminhou ainda meio zonzo, fez o asseio sozinho. Os frades o visitaram, rezaram com ele. O médico retornou para mais uma consulta. Recuperado, hein? E veja se não volta aos excessos! — exortou. No sábado, frei João veio buscá-lo para descer as escadas. Ele iria almoçar com todos, no refeitório. Enquanto caminhavam, frei José segurou com firmeza a mão do outro e, fitando-o com alegria, disse:

— Obrigado, meu irmão. O senhor me amparou e se revelou meu amigo, como jamais pude sequer desconfiar de que fosse capaz. Obrigado! Muito obrigado!

— Que é isso, frei José? Eu apenas cumpri meu dever de frade e cristão. Não é este o mandamento: amar a Deus e ao próximo como a si mesmo?

Os dois sorriram um para o outro. E seguiram em frente. Quase às portas do refeitório, frei João fez ar de quem se lembrara de algo muito importante e disse:

— Ah, quase esqueci! Enquanto o senhor dormia, ligou um homem à sua procura. Eu expliquei o que havia acontecido. Ele não se identificou nem deixou recado. Pedi que me passasse o número para retorno, mas nem isso ele quis fornecer.

Frei José deu ainda dois ou três passos até que se deteve bruscamente. Em seus olhos, desenhou-se uma expressão de medo. Curvou-se um pouco e se apoiou com força nas pernas, como se estivesse para cair...

   — Ne-nenhum recado? N-n-nada? Não... não disse o que queria? — perguntou, gaguejando.

— Não, foi exatamente como já lhe disse. Mas, o que houve? O senhor não se sente bem? Está pálido! Suas mãos esfriaram de repente! Vamos voltar para o quarto. O senhor não deveria ter descido hoje!

— Obrigado, meu irmão, mas nós podemos ir em frente. Estou bem. Não... não se assuste... não foi nada. O senhor tem sido muito bom comigo. Obrigado! Muito obrigado!

Frei João sorriu discretamente e ladeou frei José até seu lugar na mesa, acompanhando-o com certo olhar inquisitório. À medida que avançavam pelo refeitório, os frades levantavam-se para cumprimentar frei José e festejar sua recuperação. Este agradecia a todos, mas se mantinha tão sério que alguns chegaram a duvidar de que ele houvesse ficando bom. Quando cada um já havia ocupado seu respectivo lugar, o superior levantou-se, convocou os demais a fazer as preces e, uma vez concluídas estas, anunciou que tinha duas observações importantes a fazer:

— Em primeiro lugar, quero dizer que estamos todos muito felizes por tê-lo de volta conosco, frei José. É muito bom vê-lo em pé, participando da vida conventual. Espero que não nos dê mais nenhum susto daqui em diante. (E a congregação interrompeu o discurso com uma salva de palmas). Por fim, meus irmãos, devo comunicá-los de que recebi hoje pela manhã uma ligação telefônica do nosso provincial. Ele me pediu que transmitisse suas saudações a toda a comunidade e anunciou que nos fará uma visita no próximo final de semana. Como vêem, trata-se de uma visita extemporânea e o provincial não quis antecipar seus motivos, mas tenho certeza de que o receberemos com o melhor de nossa hospitalidade. Enfim, bom apetite!

Frei José inquietou-se bastante após as palavras do superior. Virando-se para o lado, insistiu com frei João em saber se ele fazia alguma ideia do que trazia o provincial ao convento. Em resposta, ouviu um "acalme-se, ele não virá puni-lo por ter ficado doente" — e fez cara de espanto. Mal tocou na comida nem se esforçou para parecer simpático aos frades que, depois do almoço, ainda vieram cumprimentá-lo. Finalmente, puxou frei João pelo cotovelo e sussurrou-lhe no ouvido que não se sentia muito bem, voltara a ficar tonto e precisava retornar para o quarto.

Os dois se retiraram do refeitório, subiram as escadas e atravessaram os corredores do convento no mais absoluto silêncio. Frei João esperou o outro fazer a higiene no banheiro; em seguida, levou-o até a cama e, quando o viu bem acomodado, fez menção de sair para deixá-lo descansar, mas frei José segurou-o pelo braço, inspirou o ar profundamente e pediu:

— Fique, meu irmão. Preciso falar com o senhor.

— Mas, agora? Não é melhor o senhor descansar um pouco? Mais tarde, eu...

— Por favor, tem que ser agora. Eu preciso... eu preciso tirar... eu preciso desabafar. E o senhor... o senhor tem se mostrado um bom amigo. Por favor, frei João!

— Está bem. Deixe-me apenas acomodá-lo melhor neste travesseiro. Aqui... ou melhor assim... pronto, perfeito! Agora, eu trago esta poltrona para cá... isso... então, sou todo ouvidos. Pode falar.

E havia tanta ternura na voz e nos gestos do frade que o outro, deitado, conseguiu desfazer um pouco o semblante carregado e esboçar um princípio de serenidade no olhar. Ele demorou um pouco a começar a falar. Enfim, respirou profundamente e começou:

— Meu irmão, vou lhe fazer algumas perguntas... na verdade, dividir algumas dúvidas... mas, por favor, não me obrigue a dizer nada, deixe que eu vá falando... enfim... bem, perdoe-me por tanta exigência...

— Acalme-se, frei José. Já disse. Sou todo ouvidos. Não se incomode com nada. Apenas fale, conforme lhe aprouver! Vá, prossiga.

— O senhor acha... veja bem, é apenas uma hipótese, não um caso concreto... o senhor acha que é possível Deus considerar as intenções do pecador e... como digo? Deixe-me ver... e, percebendo que suas intenções eram honestas... ou melhor, puras... não, ainda não é isso... enfim, se Deus perceber que não havia no pecador a intenção de cometer o pecado em si, mas de amar... sim, se o pecador cometeu o erro porque amava... o senhor acha que Deus pode perdoá-lo ou, pelo menos, diminuir sua culpa?

— Perdoe-me, mas não entendo bem o que o senhor quer dizer, aonde quer chegar...

— Vou tentar ser mais preciso... um exemplo, talvez um exemplo ajude... veja bem... vamos supor que um padre, apesar dos votos que fez, apaixone-se por uma mulher; mas não se trata de uma paixão, trata-se mesmo de amor... sim, o padre descobre que ama uma mulher e, porque a ama verdadeiramente, ele termina se deixando dominar por esse sentimento e, mesmo sendo honesto e procurando obedecer aos seus votos, ele chega a um ponto em que não consegue mais suportar e... enfim, ele se declara a essa mulher e tenta beijá-la...

— E a mulher aceita o beijo? — interrompe frei João, quase ingenuamente.

— Não, ela recusa e se revolta e até ameaça denunciar o padre aos seus superiores!

— E a tentativa de beijo é forçada? Ou o padre seduz a mulher, vale-se de mecanismos ardilosos para envolvê-la e, aos poucos, trazê-la aos seus braços?

— Não, de maneira alguma! Trata-se de um sentimento puro, de um amor honesto e o padre só o revela à mulher porque já não consegue guardar esse sentimento dentro de si. Ele não a força nem a engana! De modo algum! Jamais!

— Mas, diga-me uma coisa, frei José, a mulher deste exemplo é casada? Sim, porque se for, o problema fica um pouco mais complicado, não? — continua frei João, persistindo no tom de foz ingênuo.

— Bom, isso não vem ao caso, mas... digamos que não, ela é solteira. Enfim, nesse exemplo, o padre quase descumpriu os seus votos e cometeu um pecado, mas era o amor que o movia... o senhor acha que Deus o perdoará ou, pelo menos, abrandará sua culpa?

— Bem, o caso não me parece tão complicado quanto o senhor o pintou. Podemos chegar facilmente a uma solução. Acompanhe meu raciocínio: descumprir os votos do celibato é desobedecer a uma lei da Igreja e, como a Igreja pertence a Cristo e em seu nome institui suas normas, o fato de um padre apaixonar-se e tentar... concretizar o sentimento é, sim, um pecado. Mesmo assim, o padre é um homem como outro qualquer, portanto pode amar e até mesmo formar família. O problema, o senhor sabe tanto quanto eu, é que, para isso, ele terá que pedir a suspensão dos seus votos. Só então, ele poderá namorar... quero dizer, envolver-se... enfim, só depois disso ele poderá casar e ter filhos; afinal, somente assim o amor se torna legítimo, não? Casamento e filhos! Não me diga que o senhor pretende advogar contra o celibato?

— Não, não, de forma alguma!

Frei José, que ao longo da conversa pareceu relaxar gradualmente, aos poucos foi voltando a ficar pálido e carregar o semblante. Cada pausa em sua fala correspondia a uma sequência de gestos vigorosos. Passeava inquietamente o olhar pelo quarto e, quando frei João encerrou suas considerações, ele fez um esforço visível para continuar o diálogo.

— Mas, diga-me, meu irmão... e se... e se a situação for um pouco mais complicada...

Seguiu-se breve silêncio, durante o qual frei João esperava a continuação de frei José, mas este parecia aguardar que o outro concluísse por si mesmo o que ele queria dizer. Enfim, frei José retomou a exposição:

— Se a mulher, digamos... se a diferença de idade entre o padre e a mulher for considerável?

— A princípio, um homem de idade pode amar uma mulher bem mais jovem do que ele, por que não?

— Mas... se a diferença não for exatamente esta... se o padre for... se o padre for um adulto, por volta dos trinta anos, e a mulher... ou seja... se ela não for propriamente uma mulher, mas uma jovem... uma jovem por volta dos quinze anos? 

— Agora, sim, nós temos um caso complicado. Um padre de trinta anos com uma jovem de quinze... meu Deus! E nos tempos que correm, com tantas denúncias de pedofilia! Não, isso não! Não há como corrigir essa situação! Aqui, sim... — e, dizendo isso, frei João conteve-se; percebeu que o outro ficara ainda mais nervoso e virara o rosto para a parede. Temeu perder a confiança que conquistara, pensou por alguns instantes e, finalmente, consertou o rumo da sentença:

— Se bem que... veja o caso de Dona Lúcia e Seu Francisco, que frequentam nossa casa. Quando se conheceram, ele tinha vinte e seis anos; ela, dezesseis. Casaram-se, constituíram uma bela família cristã! Aí está! É possível, sim, consertar o problema, mas tudo depende de como os fatos se desdobraram. O senhor me disse que não houve arbitrariedade nem subterfúgio. Então...

— Então...

— Então, voltamos para o princípio. Se o padre é sincero em seus sentimentos, procede de maneira íntegra e só toma qualquer iniciativa depois de suspensas as ordens... talvez até se perdoe o beijo que ele tentou arrancar... mas, o que é isso? O que estou dizendo? Ou melhor... frei José, o senhor me confunde! Afinal, aonde deseja chegar com esse exemplo que mais parece um caso concreto?!

­ — E se... se houver outro detalhe... um detalhe que complica um pouco mais a história... ou melhor, talvez a complique bastante... talvez... talvez a deixe sem solução?

— Mas, o que pode ser isso? Meu Deus! Veja lá o que o senhor tem na mente. Lembre-se de que somos frades e, em matéria de... enfim, nessas matérias, somos cobrados na mesma proporção em que a Igreja cobra do mundo. A nossa liberdade não é a mesma de um leigo e a deste, por sua vez, não é igual a de um ateu ou pagão!

Frei José ficou em silêncio. Seu queixo começou a tremer, seus olhos foram timidamente se apertando, seus lábios se contraindo... uma lágrima escorreu pela bochecha esquerda... ele fixou longamente o olhar em frei João. Este sentia as próprias mãos esfriarem e um frêmito percorrer o abdômen... a respiração acelerou, mas ele conseguiu conter a emoção, inclinou-se em direção a frei José, segurou as mãos deste com firmeza e, com a mesma voz terna e paciente de quando iniciara o diálogo, perguntou-lhe:

— O que posso fazer por você, meu irmão?

E, procurando conter as lágrimas e falar com segurança, frei José respondeu, com a voz suplicante:

— A confissão! Por favor, ouça minha confissão...

 

 
[imagem ©brian peterson]

 

Thiago Lia Fook Meira Braga nasceu em 1983 na cidade de Campina Grande (Paraíba). Dedica-se com paixão ao ofício de escritor, o que já resultou em um blogue [ http://arriscos.blog.terra.com.br ], algumas publicações avulsas e no livro poesia natimorta e versos sobreviventes (Bagagem, 2010).