Sem Título | Manuel Carvalho | Acrílica e Óleo Sobre Tela | 100x80 cm | BH | 2010

 

 

 
 
 
 
 


 

O poema

 

mulheres que cheiram a incenso

não carregam cântaros de água

                                           nos cabelos

não esperam os Ulisses que retornam

não tecem tapeçarias de Penélope

urdem crisálidas entre os dentes

como se sorrissem borboletas laranjas

dormem sob o céu de Mercúrio

                                          e quando chove

dançam com serpentes cingidas à cintura

 

mulheres com orelhas pequenas

costuram a audição

                                           em bordas  de jarros de estanho

carregam nos pulsos sinais cabalísticos

estigmas de deuses ainda não nascidos

                                           não enrolam o céu de estrelas

e não uivam para a lua

 

mulheres de pés azuis

não contam os dias

e não contam as horas

passam o tempo em buracos de minhoca

                                           ao abrigo de buracos negros

não lavam os cabelos às sextas-feiras

não jogam amarelinha

que contém inferno

                                            coletam insetos miúdos em caixas de fósforos

e conhecem o outro lado da lua

 

mulheres da beira do mar

suturam redes com a seda retirada do baço

escamam peixes e os retalham

sem um reclamar sequer

                                          não choram em enterros

e se vestem de azul por ocasião de luto

seus filhos respiram como se possuíssem guelras

e pés com nadadeiras

                                          têm medo de altura,

mas não temem a água

costuram para seus homens fatos brancos

e se enfeitam com flores da mata

                                           e quando a lua cheia cai em segundas-feiras

desprendem um suave cheiro de maresia

 

mulheres com olhos negros

conhecem a profundidade dos poços

se refletem em poças de água da chuva

sabem que o fogo vive

na alma negra do carvão

coletam libélulas para seu deleite

e as soltam vivas

                                         rindo de suas revoadas

não costumam dizer mentiras

                                         não falam muito à noite

nas luas novas buscam refúgio

na escuridão

                                        quando amam

é normal se ouvirem trovões à distância

 

 

 

Razão

 

 

Certa manhã, já quase na hora do almoço, ruminando o mais recente fracasso, estava em estado de divagação, quando entrou no trólebus lotado uma mulher (não sei por que, intuí que fosse uma jovem). A tal jovem usava um perfume que lembrava o cheiro de incenso, que inundou momentaneamente a rotina proletária e sem sentido da vida das pessoas naquele veículo. A maior parte dos passageiros e motorista, dado o seu treinamento de esquecimentos, logo incorporou a informação aos subconscientes e esqueceu imediatamente. Sofri um processo de necessidade de criação escrita, descrito por alguns autores e cientistas como "estado poético" (outros autores o denominam "pasmaceira" mesmo). Acometido de tal estado poético, como escrevinhador contumaz, peguei meu pequeno caderno reservado especialmente para esses momentos e escrevi os versos "mulheres que cheiram a incenso,/ não carregam cântaros de água nos cabelos". Não foi possível distinguir entre os passageiros do coletivo lotado, qual jovem emitia tal odor. Posteriormente, já em minha residência, desfilei mais uma porção de palavras, juntando-as e colocando o título "Cabalísticos". (Esse poema rendeu-me uma premiação em concurso literário e mote para a escrita de mais um livro de poemas, que será lido apenas por uma meia dúzia de pessoas).

 

 

junho, 2011
 
 
 
Edson Bueno de Camargo (Santo André/SP, 1962). Publicou Cabalísticos (Rio de Janeiro: Multifoco/Coleção Orpheu, 2010), De lembranças & fórmulas mágicas (Mauá/SP: Edições Tigre Azul/FAC Mauá, 2007), O mapa do abismo e outros poemas (Mauá/SP: Edições Tigre Azul/FAC Mauá, 2006), Poemas do século passado [1982-2000] (Mauá: Edição do Autor, 2002). Participou de algumas antologias poéticas e publicações literárias diversas. Faz parte do grupo poético/literário "Taba de Corumbê" da cidade de Mauá/SP, onde vive. Premiado na categoria Poesia Nacional – 2010 do Concurso Literário de São Bernardo do Campo. Edita o blogue Afagar os Pelos de Uma Lagarta de Fogo [ http://umalagartadefogo.blogspot.com ].
 
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