Esta safra de cinco livros de poemas pode ser uma oportunidade para praticar o jogo da descoberta da poesia ou da não poesia. São obras de autores em várias fases da vida e as diferenças entre eles é grande, o que só torna a leitura mais acidentada e curiosa. As tendências são tão variadas quanto o número de autores, ou mais.

O paraense Age de Carvalho, de 1958, há anos radicado na Europa, onde vive entre Viena e Munique, é o mais conhecido do grupo, tem uma carreira firmada. O uso de termos alemães, ingleses ou franceses nos seus textos não parece a rigor o índice de uma poesia cindida. Pelo contrário, o que se percebe na leitura de Trans é a tentativa de chegar a um tom abrangente que supere as diferenças idiomáticas e nacionais em nome de uma universalidade depreendida a partir do título. Estabelece-se um diálogo translinguístico e transexistencial. Exemplo bem acabado dessa experiência que transforma a vida em linguagem está em "Der Ort Wohin" (pág. 82): / "O lugar Aonde", / como traduzi / Para ter onde ir ­­— // O sonho da cabana, / à revelia desta Hora / toda agora e agonia,  permanece / se ergues um dedo, / mínimo gesto: se // (onde é aonde?) // te moves, / tudo /  se move". O final é ambíguo e esclarecedor ao mesmo tempo, todo o poema gira em torno do monossílabo "se", pronome e partícula condicionante — tempo e espaço se alteram no momento fugidio do trans.

Em Figurantes, Sérgio Medeiros, professor, poeta e tradutor conhecido, que vive em Florianópolis, faz um inventário do cotidiano fantástico. Propõe-se a uma leitura ou releitura do mundo, em busca das surpresas do banal. E, para isso, lança mão de palavras simples, que estabelecem um atrito com o que descrevem. É uma tensão constante, coloca-se algo a ser pensado ou discutido. Como neste trecho, ou  poema intitulado "Vigésima Nona" (pág. 39): "Um urubu sobrevoa o estádio vazio / É como grande lata aberta ao sol / A sombra do urubu percorre a gasta arquibancada ocre // A vigésima nona abre caminho no capim / Avança como sobre um fio esticado / De repente o fio arrebenta / Ou verga até o chão fundo". À aparente continuidade do voo — o positivo — opõe-se o negativo entrecortado da sombra que esclarece a cena pelo contrário, vale o reflexo, pois este contém o refletido. O desafio cada vez maior está em manter o interesse das descobertas.

A jornalista paulistana Adriana Andrigueti, de 1977, pode oscilar entre o humor e a constatação do insuficiente, da frustração, de nunca chegar lá, no tempo, no espaço, nas relações. Nostalgia do passado, do presente e do futuro como possibilidade que não se confirmará (pág. 72): "Ainda penso muito em você. Quando me masturbo". Seus poemas de temática erótica funcionam melhor quando optam pela tonalidade franca e talvez risonha. O humor, à primeira vista, redime, mas na verdade ressalta impiedoso a mesmice das cenas e a angústia diante das emoções fugidias. Em certos momentos Andrigueti se expõe a um tom oswaldiano que se tornou fórmula e tem público cativo, mas compromete a própria poesia desse Andrade e mostra o limite histórico dos seus procedimentos. Veja-se o seguinte poema (pág. 63): "Meu terapeuta disse que não sou bipolar, / mas bivalente. // Para nós duas dá na mesma". O volume intitulado A Matadora de Orquídeas é livro de estreia, que abre outra aposta, além da erótica, num texto como o da pág. 48: "Kafka bateu na minha porta / e pediu para eu experimentar. // Ensinou a esticar o braço, / tomar na veia, // injetar um pouco / de sangue de barata / e ver no que dá". Topar o clichê kafkiano é uma de suas melhores saídas pelo espaço  (fechado, claro), do humor.

Outra estreante, esta do Rio, é Ana Tereza Salek, de 23 anos, com Dezembro. Também há excessos neste livro que no entanto chama atenção pelo cuidado da autora em busca de uma frase poética marcada por um ritmo discreto — Age de Carvalho tem outro caminho para isso, a linha curta, o corte brusco, a montagem. Cecília Meireles, Ana Cristina César ao fundo (pág. 16): "Na cidade grande as cadelas se escondem / e carregam a outra pilastra, com esforço. / Escutam vozes debaixo do chão; miragem, / o piso é pedra, arde. Do piso da cidade grande: / a urina da cadela escorre, sem nunca, jamais!, / penetrar a terra, em fosso. (É tarde!)". Por que os sinais de exclamação? Salek, em outras palavras, mostra evidente talento para o verso, e ousa escrever soneto, um desafio particular que só confirma sua liberdade no trato poético.

Aos 26 anos, Augusto de Guimaraens Cavalcanti é o mais inquieto dos autores em pauta. Os Tigres Cravaram as Garras no Horizonte não apresenta barreiras entre o modo "poético" da linha quebrada e a prosa. Sim, isso também pode ser uma rotina, mas evitar a caça de meras novidades como quem procura uma embalagem mais recente de sabonete também pode ser uma opção interessante. Cavalcanti parte de um horizonte passado, referencial, para tentar trazer à tona o presente ou mesmo o futuro, num grande sinal de interrogação. Como observa o apresentador Claudio Willer, o poeta retrabalha os símbolos e a linguagem da contracultura em sua própria fugacidade. Sua erudição é pop e o contrário disso, ou, no panorama desenhado pelo poeta, a esta altura, o que antes passava por diferença torna-se  identidade, dá tudo no mesmo. É rigoroso e lúdico. Sobre a Vênus devoradora (pág. 43): "ela tinha flores no cabelo / eu escapei pelas paredes / ela tinha paredes no cabelo". A "prosa" é mantida sob controle, pontual ao seu modo. Este trecho pertence ao poema "Epitáfio Napalm" (pág. 66): "Nas páginas de gelo e nas bordas sagradas, esse livro continuará a ser inscrito nos planetas dos disfarces e nas igrejas de néon, nas flâmulas em chamas, nas bandeiras em fogo. Esse livro com letras de água. Nos letreiros das obras e no findar das tardes. Flutuantes alvos nas piscinas intermináveis".

O risco que era do poeta, ao escrever, agora é do leitor.     

 

 

 

[ Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo | Sabático ]

 

 

 

 

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Os livros: Age de Carvalho. Trans (Rio de Janeiro: 7Letras/Cosacnaify, 2011, 87 págs.).

Sérgio Medeiros. Figurantes (São Paulo: Iluminuras, 2011, 63 págs.).

Analu Andriguetti. A matadora de orquídeas (São Paulo: Edith, 2011, 89 págs.)

Ana Tereza Salek. Dezembro (Rio de Janeiro: Circuito, 2010, 64 págs.)

Augusto de Guimaraens Cavalcanti. Os tigres cravaram as garras no horizonte.

(Rio de Janeiro: Circuito, 2010, 85 págs.)

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junho, 2011