ambíguo

 

um pássaro com umbigo

seria ambíguo

sua placenta

se exila de sua mãe

no nascedouro

antes mesmo do nascimento

na postura

 

o pássaro se desambigua

antes do ente humano

em um exercício de desapego

muito além

de qualquer capacidade afetiva

pois o ovo

é o exílio necessário

para o voo

 

isto mais tarde

lhe dará a possibilidade

de se desvincular do chão

quando do desapego

de se estar sobre a terra

vencerá a gravidade

ou a enganará segundo as medidas quânticas

 

há grandes vantagens aos mamíferos bípedes

crescer dentro da progenitora

mas crescer desgarrados ao contrário

nunca querem vir à luz de fato

primeiro o paraíso depois a vida

terão da altura vertigem

nunca serão capazes de voar

(ao menos alguns de nós)

 

 

 

 

 

 

meteoros

 

encontro o deserto em mim

caminho semana em trilha rasa

as pedras dormem aos meus passos

onde brotam espinhos e flores

 

o espaço se corta em dois

e cantam as estrelas

os cântaros de aquário

nunca se esvaziam

e teu olhar é um rosa de seda azul

 

minha língua em chamas

te cobre de cintilações

e colhe os vespeiros maduros

de um mel grosso e escuro

(tempo de macieiras em flor)

 

aninho-me na areia

como cama macia

sou vigiado por escorpiões vermelhos

e o chacal

sonho com uma mãe terna

a me abrigar com seus zelos

 

no sonho nosso amor

une átomos e estrelas

enquanto estou a mastigar

todos os meteoros possíveis

de teus cabelos

 

 

 

 

 

 

velho rádio

 

às vezes

admirava-me

quando olhavas sem sorriso

e a noite engolia teus cabelos

mergulhados aos poucos em uma grande tina

 

a água que refletia estrelas

e a luz morta

que atravessou o espaço

e o lago de teus olhos imensos

 

desejo de chorar em escamas

abraçadas aos cântaros

 

escadas para o céu

tocavam insistentes no éter

e no velho rádio na sala

 

e esta cozinha

era uma pista imensa de deslizes

não mais sabia

que viver não era mais que isso

catar fragmentos de raios cósmicos

que perfuravam o vidro da janela

e observar lento e persistente

a chama de uma vela ao se consumir

incorporando seu combustível ao ar

até que este se extinga

 

meus papéis senis perdidos de seu sentido

e livros amontoados aos cantos e estantes indeléveis

poetas vociferando canções lúgubres

marcha soldado sem direção

e rebeliões que se dissolviam em terebentina e álcool

 

:

enquanto isso

cebolas e batatas ferviam

em borbulhantes panelas

com seus diálogos e estouros e borbulhares

 

eu olhava pelos vidros

e com um dedo infantil

garatujava um nome na neblina

enquanto olhos me observavam da possível floresta

 

nós nascíamos todos os dias como narcisos

e voltávamos e voltávamos sempre

 

 

 

 

 

 

répteis

 

vomito cobras vivas

cinco ao todo

répteis que caem ao chão

e fogem assustados

ainda úmidos

sulcam a terra

desaparecem na poeira

 

pajés do planalto central

visitam meu devaneio

saltam de dentro

de nuvens de fumaça branca

cheiram a querosene e tabaco

pólvora queimada e pinga

moeda cachaça para todos os santos

para juremas

para os caboclos errantes

para os egúns vivos quase mortos

que caminham pela civilização

e têm nos olhos telas brilhantes e antenas

 

não se sabe

se é noite ou dia

céu vermelho sobre a cabeça

tempestade de areia do Saara

dormindo nas águas quentes do Caribe

 

câmeras assustadas filmam o abismo

desvelam línguas e palavras

uma menina pivete desafia a polícia

com seu corpo magro e olhos de assombro

um diamante vivo em cada pálpebra

Glauber Rocha ressuscitado em Brasília

dirige tudo aos berros e euforia

(como todo bom baiano

sorri irônico como um Caetano)

 

tudo é sonho

tudo é vermelho

tudo cheira a esgoto a céu aberto

tudo cheira a vidro quebrado e hospital

 

as mesas dos botecos se embriagam

devoram as palavras que os poetas lhes derramam

lambidas por lagartos abissais

a cidade (e suas asas)

é um poço sob os discos voadores

 

 

 

 

 

 

degraus vermelhos

 

a velha casa

espera-me em sonhos e pesadelos

como o desvão

de fraturas no cimentado

e nos vãos da calçada de tijolos refratários

(e suas superfícies vítreas)

 

assim como as rangedoras portas e janelas

taramelas que cantavam

anunciando as chegadas e partidas

 

os lumes tentavam

desesperados furar o escuro da noite

onde vaga-lumes verdes

emitiam estranhos sinais

e olhos infantis e medrosos

viam coisas em meio às sombras

 

noites sem lua

noite de assombro

de ouvir as formigas subindo na parede

e monstros sorridentes sobre o guarda-roupa

 

piar de coruja

nos velhos esteios

silvo de vento que cortava

as dobras dos corredores

 

a velha casa

sobrevive ao seu fim

a jovem que cresceu sobre suas raízes

ainda é árvore de seus tijolos

 

o tempo não comeu suas paredes

de argamassa de caulim e terra

de reboco que mostrava suas veias no verão

na caiação trincada

desenhando mapas imaginários

de lugares inexistentes

(mas ali presentes)

 

a velha casa

e sua varanda de degraus vermelhos

carrego-a nas costas

o tempo todo

 

 

 

 

 

 

"sonho com serpentes"

 

"Sueño con serpientes, con serpientes de mar,

con cierto mar, ay, de serpientes sueño yo".

         (Silvio Rodríguez)

 

que se envolvem entre si

em carne viva

em exposição

em expiação sangrenta

 

ninho coleante

e viscoso

gangrena dos ossos

vulcão orgânico e pestilento

de ovos

de larvas

de morte lenta adiada

 

tenho muitos olhos

tenho muitas bocas

e muitas línguas todas bífidas

o cheiro do medo buscam

 

sonho que estou vivo

(quando morto)

e andando

não caminho um metro sequer

sufoco em líquido

e meus movimentos são pulmões afogados

me afundam na areia movediça

nada me conduz

sob este céu insano

 

falo o som das escamas

dos estalidos de pequenos ossos

e palavras

com o fogo feroz

dos olhos animais acuados

fogos fátuos

e versos metálicos da palavra réptil

 

"sonho com serpentes"

e estas me devoram os olhos

 

 

 

 

 

 

René Magritte

 

no alto de um poste

um homem lê um livro de poemas

a paisagem corre

vertiginosa à sua volta

 

aquela silhueta

imprime ao horizonte

um não reconhecimento da lógica

 

o homem lê absorto

em confortável estética

como se fios invisíveis

desenhassem suave poltrona

 

o olho observador

vê uma queda

iminente demonstração

das leis de Isaak Newton

ou seja

a queda como a de uma maçã de uma árvore

 

não há construções

de toda a filosofia disponível

que sustentem um homem no ar

ou pior

no alto de um poste de eletricidade

 

para nós que o vemos

em tal posição de perigo

inspira o medo e a inveja

 

indiferentes ao homem

e o possível dilema alertado

dois corvos

alçam vôo

criando duas manchas

no azul perfeito do céu da tarde

 

 

 

 

 

 

a parte que te cabe

 

 

para o amigo Celso de Alencar

 

Circe

amarrou a Ulisses

com não correntes

usou os músculos de sua vagina

 

mesmo estando em êxtase

a saudade de seu chão

e do cheiro do esterco das ovelhas

o chamavam para casa

e se libertou

 

Circe disse fica

mas Ítaca clamou mais alto

 

o esperava em casa

uma vagina mais mansa

e doméstica

sem grandes bailados

e malabarismos

mas que demonstrou um furor selvagem

ao se fechar aos machos

que não eram para ela

 

e na vingança e na morte

se abriu em sorriso

enquanto seu homem

trespassava seus adversários com flechas

 

nas noites que se seguiram

Ulisses não sentiu saudades

da insaciável bruxa deusa

 

Penélope

cansada de tecer

exigiu a parte do homem

que lhe cabia

 

 

 

 

 

 

Zabé da Loca

 

és como foi minha avozinha

lenço amarrado na cabeça

olhos grandes de olhar comprido

destes que devoram tudo com carinho

e cuidado

gente de granito e pés suaves

mesmo para trilha de pedras

 

muheres com dobras e rugas

quase uma centena de anos cansados

rostos com sombras

e o dedo com o osso apontado

 

mulheres de parar o vento com o silêncio

e mover pedras com o sussurrar

constroem casas com barro

cacimbas no seco

donas da terra e da água

e aproximam o ventre do ar

 

senhoras que vestem o mundo

e tecem com os panos

e fiam o algodão das nuvens

 

ai que os anjos esfarrapados da caatinga

os anjos vaqueiros e pascentadores de bodes

os anjos moleques a tramar travessuras

os anjos de todas as partes e os afogados

e o louco poeta na margem da metrôpole

 

todos param para ouvir

um pedaço de cana soar as trombetas do céu

 

 

 

 

 

 

potes paridos

 

o bloco de granito

em seu sonho de sílica e alumínio

respira pratos e xícaras

 

inspira para o interior da terra

o calor de fornos de mil graus

 

a terra bebe a sede

água de potes

de artesania incomparável

 

potes paridos

por oleiros besuntados de argila

homens cinza

homens barro

e cabelos emaranhados de porcelana crua

árvores humanas

e seus frutos torneados a frio

 

poteiros com os pés fincados

na terra agora úmida

e depois matéria-prima que seca ao sol

 

o chão da oficina

é fábrica e útero do mundo

da criação do seres e das coisas

da lapidação de deuses inconscientes

o calor da fornalha

que a tudo devora

e ama

 

 

 

 

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Edson Bueno de Camargo (Santo André/SP, 1962). Publicou Cabalísticos (Rio de Janeiro: Multifoco/Coleção Orpheu, 2010), De lembranças & fórmulas mágicas (Mauá/SP: Edições Tigre Azul/FAC Mauá, 2007), O mapa do abismo e outros poemas (Mauá/SP: Edições Tigre Azul/FAC Mauá, 2006), Poemas do século passado [1982-2000] (Mauá: Edição do Autor, 2002). Participou de algumas antologias poéticas e publicações literárias diversas. Faz parte do grupo poético/literário "Taba de Corumbê" da cidade de Mauá/SP, onde vive. Premiado na categoria Poesia Nacional – 2010 do Concurso Literário de São Bernardo do Campo. Edita o blogue Afagar os Pelos de Uma Lagarta de Fogo [ http://umalagartadefogo.blogspot.com ].