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minha vida água e vinho

minha vida ceifa e pressa

minha vida bata na porta

entre

 

 

 

 

 

 

Referências

 

uma árvore fina se balança

aos pés dos edifícios

 

 

não suponham reverências

na sua grande ironia:

ter os pés no chão não a impede

de se sacudir na ventania.

 

Um abraço é o momento exato

em que o segundo segura o ar

e a linha que nos põe de pé

para de interrogar dobrando a cabeça

e se abre — estende um quintal nas costas.

 

A extensão do peito está despida

 

 

 

 

 

 

Correspondência

 

por favor, não pare de me falar sobre você

nos ligamos — convites anelados

beijos são palavras abertas

eletricidade escapa, cabos se partem

em que parte te encontro?

não confie na memória

ela é um correio lotado de cartas brancas

não suspire

o tempo é corrosivo porque mora nos silêncios

de repente enferruja cartas cabos lábios

enferruja a gente

não é certo não é certo, suspiro

toques me despertam

mãos de prata como bandejas

e debaixo da mesa pernas encontram pernas

vamos arquitetar uma fuga com elas

arquitetar uma ponte e envelhecer sem segredos

temo que seja o fim da ligação

terrível enxaqueca

poupe os anúncios em branco

anúncios são convites malcriados

anoto na passagem: preciso de um mapa

nossa correspondência está aos pedaços

quem leu a última parte?

você sempre faz mapas quando está triste?

é o fim. Não confio na memória

 

 

 

 

 

 

A cântaros

 

chego cedo e afio o perfume

acalmo as cartas

recolho à bolsa meu copo com água

e tempestade

porta adentro

me acolhe teu beijo tardio

fico sem ter onde pôr os pés

agora dei de te amar

amar essa estranha

troca de papéis

caminho como uma perita

examinando de perto o nhéc da cama

é tarde, calço os sapatos

recolho ao fundo da garganta

minhas cartas molhadas

 

escuto da água como é estar dentro de outro

 

 

 

 

 

 

Inventário

 

acabar de transar beber coca cola

dissimular rir abrir a janela

contar as horas num relógio de aço

deitar os pratos e deixar que anoiteçam sem lavar

escrever no escuro um poema incorruptível

pensar os santos como pássaros histéricos

 

dizer: estranha, senta nesta mesa

perdoa as mentiras

o canário morto e outros requintes

dessa paz corrosiva que nos persegue

 

outro copo e não ouso penetrar

no milagre que assombrou o pássaro

a enumeração tremulando

 

ninguém falou de amor

 

 

 

 

 

 

Ideia fixa

 

Este é um homem

filho de outros homens

que tamborilam os dedos nos balcões

 

Este é o homem com uma ideia fixa

uma ideia presa em todas as garrafas

Ele é o que enfia dois dedos sujos

na boca vítrea da próxima

 

Jamais deixa rastros

chega com sua língua solene

seus dentes postiços, seu riso às vezes

 

Chega e senta sem calma

os dedos fervendo

a cabeça que não pensa galáxias

mas se solidifica no cansaço fixo

da ideia que partiu.

 

 
 
 
 
[imagem ©tesista]
 
 
 
 
 
 
 
Juliana Bernardo. Nasceu no dia dos namorados de 1989. Graduanda em Filosofia pela Universidade de São Paulo, foi publicada no site Mix Brasil, nas revistas Ventos do Sul, Cabeça Ativa e Originais Reprovados. Entre seus prêmios estão: 1º lugar no 24º Concurso Yoshio Takemoto (2006) e 2º lugar no 7º Concurso de poesias CNEC/FACECAP (2007). Publicou Carta branca (São Paulo: Editora Patuá, 2011).