A literatura nos relata que1 "segundo a lenda grega, a feiticeira Medeia ajudou Jasão, líder dos argonautas, a obter o velocino de ouro. (…) Medeia era filha de Aietes, rei da Cólquida. Aietes possuía o velocino de ouro, que Jasão e os argonautas buscavam, e o mantinha guardado por um dragão. A maga Medeia apaixonou-se por Jasão e, depois de ajudá-lo a realizar sua missão, seguiu com o grupo para a pátria de Jasão, Iolcos, na Tessália. Mais tarde, Jasão apaixonou-se pela filha do rei de Corinto e abandonou Medeia. Inconformada, ela estrangulou os filhos que tivera com Jasão e presenteou a rival com um manto mágico que se incendiou ao ser vestido, matando-a. Medeia casou-se, mais tarde, com o rei Egeu, de quem teve um filho, Medos. Por ter, porém, conspirado contra a vida de Teseu, filho de Egeu, foi obrigada a refugiar-se em Atenas. Medeia foi honrada como deusa em Corinto e sobretudo na Tessália".

Esse mito tornou-se conhecido por várias versões literárias, entre as quais podemos citar as de Eurípedes, Ésquilo, Ovídio e Sêneca, sendo que a mais conhecida é a versão de Eurípedes. O personagem Medeia também inspirou as peças de Corneille e Jean Anouilh, a ópera de Cherubini e, no século passado, um filme de Pasolini, no qual Medeia foi interpretada por Maria Callas. No Brasil, Paulo Pontes e Chico Buarque de Holanda se inspiraram na lenda de Medeia ao escreverem a peça Gota d'água, na década de 70.

As "Medeias" de Eurípedes e Sêneca são bastante parecidas, podendo, a personagem, ser assim caracterizada: é uma princesa, filha de Aietes, rei da Cólquida; feiticeira muito poderosa e temida por todos; semideusa, pois descende do Sol; apresenta, em ambas as peças, um comportamento vingativo e dissimulado; demonstra grande poder de argumentação, ou seja, excelente retórica. Nessas duas peças, Medeia, apaixonada por Jasão, tudo faz para favorecê-lo, sendo, posteriormente, traída e abandonada pelo mesmo. Surge daí um sentimento de vingança, o amor se transforma em ódio.

A Medeia-Joana da peça de Paulo Pontes e Chico Buarque possui semelhanças e diferenças quando comparada a Medeia da lenda grega.

Entre as diferenças, podemos ressaltar que a personagem Joana não é uma princesa, mas uma mulher da classe baixa, não possuindo status de nobreza ou de semideusa. Joana demonstra ser mais sofrida, mais humana, mais vulnerável a sua situação de mulher traída e abandonada do que a personagem da lenda. Enquanto a Medeia de Eurípedes e Sêneca é mais apegada à ideia de vingança, a Joana de Paulo Pontes e Chico Buarque mostra-se mais apegada ao sentimento de ingratidão do marido, não demonstrando desejo de vingança, mas sim uma inconformação com tudo que lhe ocorreu.

Entre as semelhanças podemos dizer que nas três versões a personagem é adepta da magia (feiticeira ou macumbeira). Todas as três abandonaram seus lares e seus familiares pelo homem que amavam, fizeram tudo por ele e, posteriormente, foram deixadas de lado. Elas também chegaram a ter filhos, constituir família, com o ser amado.

O personagem Jasão das peças de Eurípedes e Sêneca é um príncipe, guerreiro, corajoso, valente, que tendo o trono usurpado pelo tio Pelias, tudo faz para reavê-lo. Além disso, é também oportunista e ingrato, pois se unindo a Medeia e sendo por ela favorecido, não reconhece, posteriormente, o papel que ela desempenhou em sua vida, chegando a traí-la e abandoná-la por um casamento mais vantajoso com a filha de Creonte.

O Jasão da peça de Paulo Pontes e Chico Buarque é um sambista, compositor, malandro, oportunista e ingrato. Como o Jasão da lenda também este Jasão se une a Joana-Medeia, constitui com ela uma família, tem filhos, constrói toda uma vida para depois abandoná-la por um casamento e futuro mais promissores.

O procedimento de Jasão difere em um determinado ponto das três peças aqui analisadas. Enquanto o Jasão de Eurípedes e Paulo Pontes/Chico Buarque abandona Medeia-Joana para casar-se com a filha de Creonte, pois alega ter se apaixonado por esta última, o Jasão de Sêneca diz ter sido obrigado a se casar com a filha do rei.

A letra da música "Gota d'água", que é declamada na versão de Paulo Pontes e Chico Buarque, mais parece uma súplica, um pedido que Joana dirige a Jasão.

 

 

                   Já lhe dei meu corpo, minha alegria

                   Já estanquei meu sangue quando fervia

                   Olha a voz que me resta

                   Olha a veia que salta

                   Olha a gota que falta pro desfecho da festa

                   Por favor

 

                   Deixe em paz meu coração

                   Que ele é um copo até aqui de mágoa

                   E qualquer desatenção, faça não

                   Pode ser a gota d'água

        

 

As peças de Eurípedes e Sêneca discutem a fragilidade dos sentimentos humanos, a facilidade com que o amor se transforma em ódio, gerando a vingança, mediante a ingratidão e a traição do ser amado. O desejo de ferir a quem nos feriu mais do que fomos feridos.

A mensagem da peça de Paulo Pontes e Chico Buarque também nos fala da fragilidade dos sentimentos humanos e do amor transformado em ódio. A diferença é que nessa peça não há desejo de vingança, mas sim desespero, um profundo sentimento de desespero, que toma conta de toda pessoa quando esta percebe que nada mais lhe resta neste mundo, nenhuma oportunidade, nenhum amor, nenhuma dignidade, somente um grande vazio e a falta de perspectivas para a solução de seus problemas. Um desespero tão grande que leva ao suicídio. Todo o sofrimento de Joana está implícito na letra da música "Gota d'água".

A intertextualidade se encontra bastante presente nos dois textos antigos, o de Eurípedes e o de Sêneca, uma vez que ambos descrevem a história de Medeia, que é uma lenda grega.

Paulo Pontes e Chico Buarque trazem a mesma história para os dias atuais (ainda), com as adaptações e modificações necessárias à nossa época, chegando mesmo a incluir a discussão de certos temas que não estavam presentes na história original como, por exemplo, o problema da habitação e da exploração dos mais pobres na época da ditadura militar em nosso país.

 

 

 

Nota

 

1Disponível em <http://pegue.com/grecia/medeia.htm> Acesso em 28 out. 2010.

 

 
 
março, 2011
 
 
 
 

 

Nádia Montanhini (Rio Claro/SP). Doutora em química pela UNICAMP, e graduada em Letras pelas Faculdades Integradas Claretianas de Rio Claro/SP. Faz, atualmente, especialização em Língua Inglesa e Tradução na UNIMEP.