capa: umbigo do sonho | elaine pauvolid | acrílica sobre tela | 15 x 50 cm | 2011
 
 
 
 
 
 
 

 

O que é habitar o silêncio? O silêncio dos mortos, dos malditos, dos culpados? O silêncio da sombra e do encarceramento? Habitar sem destino, como um ser habita um espaço sem alicerce? Eis o viés pelo qual os poemas de Elaine Pauvolid, em O silêncio como contorno da mão (Selo Orpheu, 2011), tecem seus versos: "Poesia não se manifesta no estrondo/ [...] o poema é hiato, halo". O leitor é convidado a voar no "côncavo do pensamento" do poema, portanto, no seu hiato, brecha: eis o que logo na abertura do livro declara, no primeiro verso, que, solitário, encara a página em branco, com a coragem de um grito silencioso.

A figura côncava é voltada para o interior, esse misterioso espaço que os poemas vão percorrer como rastro do sujeito que se projeta neles, como se projetasse sua sombra. O silêncio como traço que contorna a mão, signo do sujeito que imprime sua marca no caminho do trajeto da poesia, que se oferece aqui na imagem do tátil e do volátil, desvanecida e etérea. Ao tatear o espaço, tudo se preenche de uma atmosfera misteriosa e abstrata. O mundo se oferece como imagem, a partir de elementos concretos, justapostos no eixo sintagmático do verso. Por vezes o hermetismo das analogias impede o olhar. Enclausura o verso em seu silêncio. Sua semântica encarcerada numa voz que atomiza o espaço como "palavra corpo pedra poema"; como "voz esquecimento"; como um silêncio comparado ao "sol batendo no concreto".

O conjunto dos poemas trabalha com a dimensão trágica do sujeito lírico, reduzido a um nada: no grito de "desgraça / desgraça / desgraça", palavra única que ecoa o silêncio dos insones, das feridas e das perguntas sem respostas, ouve-se o sujeito também travar o som das espécies: "Silencio mar morto / salgando carnes em rochas cobertas de sol". O veio paradoxal do silêncio está na sua estrondosa permanência ruidosa,  incrustada como palavra no livro. Trazer o silêncio como imagem do sujeiro maldito, ferido, de que se reveste o olhar desta poesia para a humanidade aflita ("Meus filhos todos mortos / um dois três quatro/ e já nem conto o quinto / que de tão morto / já nem sabe que foi / filho") é construir no hiato de que se reveste a poesia o grito que ecoa caverna adentro: "Quando a dor aperta, / lanço-me debaixo do livro / que não acaba."

Há poemas que desenham o silêncio como ritmo, elemento que intensifica a instância ruidosa de que falei há pouco. São poemas que chamam a atenção pela anáfora: "Estou inerte / presa / presa / presa / presa / presa à pressa"; ou pelo sintagma que se divide em hemistíquios de oito sílabas poéticas cada um, nos três segmentos pontuados, seguidos da fragmentação da sintaxe a partir de "A solidão é" que vai mimetizando as presenças do silêncio e da solidão, que se aproximam e diferem, sem se oporem totalmente, pois, ao negar que o silêncio seja tão pesado quanto à solidão ("salgueiro-chorão"), o silêncio vem a ser comparado com o "sol batendo no concreto", imagem violenta, acompanhada da semântica do "azul por perto", signo do spleen e da melancolia, que estranha a delicadeza construída no plano sonoro das sibilantes e das consoantes laterais das palavras: "Não sei se solidão tem a ver com silêncio ou se silêncio é que vem habitar a solidão. O que sei é que sempre o silêncio está presente. A solidão é companheira também, mas muito triste, pesada, um salgueiro-chorão. O silêncio, não. O silêncio é o sol batendo no concreto. O céu azul por perto."

Interessante verificar nestes dois poemas como o ritmo consegue assegurar para o poema o sentido da repetição do mesmo, desse espaço denso do nada, e dar ao silêncio uma dimensão figurativa. A repetição dos ditongos nasais em "ão", bastante comuns na linguagem, aqui exercem um sentido de fechamento espacial, sombrio na relação em que essa sonoridade estabelece com a semântica dos termos: "silêncio", "solidão", "chorão", "não"; sem falar no aspecto disfórico do "azul", cujo sema intensifica a atmosfera de um certo spleen. As rimas internas favorecem esse ritmo que desenha o traço côncavo do pensamento, aludido no primeiro poema que abre o livro.

         Os poemas de Elaine Pauvolid não se encerram na temática do silêncio, mas avançam para a infância, o mundo místico, a figura de Deus, da morte, a maldição. Uma poesia que, eu diria, se deseja sacrificial.

Dizer o agora de um mundo que abraça o indivíduo com sua presença de agulha, e também com sua ausência repentina, ao se querer dar passagem a ele, parece situar a poesia de Elaine Pauvolid num impasse. Como dizer o de que se ressente o indivíduo que percebe o mundo como sombra? Como situar-se como poesia, a partir de uma perspectiva silente do mundo e do sujeito? Sujeito que se move mudo, ou que ensaia a própria mudez. Um dizer o nada de forma simples. Um silêncio que assola um universo interno. O mundo lá fora é apenas uma ilusão. O que retorna é a consciência de não saber o que retorna. E é por esse caminho que seguem os poemas de O silêncio como contorno da mão.

A consciência da morte talvez seja a imagem que mais emerge no livro: a vida é apenas uma emergência do acaso; uma morte que nasce desde a origem. Esta consciência existencial marca a poesia desde sempre. Em Manuel Bandeira, o paradoxo da existência seria esse confronto eterno entre a vida como prisão e a morte como libertação. Nos versos de Elaine, "Quanto mais vivo mais morro quanto mais morro mais vivo". O paradoxo também emergeria da sabedoria do encontro com a efemeridade das coisas simples, que emergem na voz do poeta e de sua consciência crítica como elementos sublimes de um mundo inerte e indiferente frente a poesia, como afirma Drummond. Talvez a poesia deste "silêncio" como "contorno da mão" assinale o ponto em que dizer o nada remeta a uma consciência da morte como destino da poesia, que nasce como um dizer as coisas como se as dissesse de sob os escombros do mundo. "Vontade porta" é o desenho desse mirar o mundo, como desejo de mirar o rígido silêncio, no entre-espaço de uma porta sem função no poema, pura moldura de um intervalo de mirada de um cenário desértico ("a frente mirando / o rígido silêncio / porta adentro"), "o que sobra é a falta", verso que emite o lance de dados do livro. Esse dizer o mesmo, redundância que insiste num dizer o nada, e mostrar sua figura pela linguagem: sobra — falta: imagem do nada que se sobrepõe nos versos de "Parte" ou  de "Os sapos procuravam". Nesse contexto, a figura de Deus é revista como projeção humana do desastre: "Deus está de asas quebradas / como eu, está molhado. / Deus não chora./ Deus não pede./ Deus está aqui parado."

O tema da morte ou do encarceramento do sujeito, que se autodescreve encerrado, em "Os olhos cegos da coruja", traz um sujeito que se mira nessa coruja que não vê e assim faz retornar para si a cegueira: "Os olhos cegos da coruja / carregam-me em sua sombra". Um eu encarcerado e maldito, um anátema ("palavra corpo pedra poema/ [...] voz esquecimento" //[...] "Sem glórias, só prenome"). Nem o afã do gesto positivo — carregar nas mãos o apocalipse, em "Você é culpada", tampouco o nascer do sol, em "Dia após dia até cansar-se sol", emerge como voz que possa marcar de euforia este contorno, traço, moldura, feito de um ruidoso silêncio, sinal, marca, dígito, fonema de uma voz que se traça no "côncavo do pensamento" do poema.

Ao falar do que falta, a poesia de Elaine Pauvolid fala do quê? O que é isso que falta e que se aloja nos versos de sua poesia, que traz no título o "silêncio" como "contorno da mão"? Essa mão que toca e desenha desde a capa o silêncio como mote e como traço? Os poemas, curtos, funcionam como desenhos incompletos, partes que se lançam ao leitor. Assinalam o óbvio de um mundo que só quer "flechar-te". Assinalam a solidão como um bicho de olhar canino ("Coração canino"). A visão de um mundo taciturno, cujas "horas quedaram-se mortas" e, como sombra, assolam como "inconsequente visões dos dias". A voz do sujeito se expressa pela sombra, pela quina do verso, que, imagético, pensante, se emudece. Não é pelo sonoro que a poesia de Elaine surge, mas pelas imagens que desenha, pelo pensamento que se deseja imprimir nos versos. Em alguns momentos, apenas uma frase, uma oração, um sintagma é que dá um suspiro na página. Será verso, será poema? O descompromisso é evidente. Como sobra ou como silêncio, em alguns momentos do livro, apenas isso como marca da dicção do sujeito, que parece perceber o mundo pela sombra, pelo lado de dentro: "Voa que é côncavo o pensamento"; "O que sobra é a falta"; "A solidão tem coisas que a gente sabe só depos que morre". Há outros momentos mais herméticos, que parecem surgir sem a gente saber a que vieram: "Eu seria uma boa vendedora de sapatos". Seria este o silêncio de uma poesia marcada pela subjetividade?  "Viver doi / Então, eu grito". Gritar vai de encontro com o silêncio. Percebo isso como o que sublinha a consciência da poesia de Elaine neste momento de seu quarto livro. É coerente sua escolha por uma dicção imagética, reflexiva, cuja força está na forma do poema como um espaço desprovido do som. Poesia como pensamento projetado como verso. Verso descompromissado com ele próprio. Ao reverso, se impõe como imagem da consciência do nada de nosso tempo. Nada como o olhar  que percebe a poesia como um vasto espaço a ser experimentado ainda, apesar de a tradição poética bater à porta a todo instante.

Nem quando deseja sua poesia ser um alerta ou um conforto, há possibilidade de apartar essa sombra da vista: esperança como disforia no poema em "Para os perdidos": "Vem, toma aqui este resto de esperança...". O que sobra é a falta, essa assertiva ecoa aqui e não faz da poesia o lugar da saída, pelo menos em termos de uma filosofia da existência. O poema "Ainda" reforça essa perspectiva do nada: no presente do poema, afirma-se a não-perspectiva do futuro pelo seu esquecimento prévio. Uma anulação do agora, a presença do vazio como o lugar de uma poesia que, lugar da voz do sujeito, é representação de um olhar de pestanas.

Creio que no poema "a cor que se pensa cor" represente o olhar da subjetividade que se constrói no livro. Esse deslocamento da essência "quando se pensa dentro", ao pensar-se cor, flagra um olhar que percebe o mundo como o revés de tudo. Segundo Merleau-Ponty, a sensorialidade do sentir do sujeito é uma "unidade presuntiva no horizonte da experiência". A experiência do mundo, no sentido "de uma totalidade aberta cuja síntese não pode ser acabada", como está para Merleau-Ponty, define para mim, aqui, no trajeto desta poesia, uma subjetividade que procura espacializar-se nas imagens que recupera como traço poético e como objetivadoras de um sentir. Sem recair em um alumbramento romântico, perigo de uma poesia assim, que recorta do sentir o mundo o traço noturno da humanidade, os versos que tecem a poesia de Elaine escolhem a imagem do silêncio como a que tateia a experiência de um sujeito que parece estar cego, porque voltado demais para o dentro. Mas é esta experiência que estimula o tatear implicado no título: "o silêncio como contorno da mão". É, pois, na camada tátil da mão, este membro que são os olhos de quem não enxerga mais, porque cegado está pela falta de esperança, mote que parece dar a atmosfera da falta já anunciada no início do livro: "Que inocência perdida retorna / para nós que já não temos / esperança alguma?" A pergunta parece não ter mesmo resposta fora do livro. A voz do sujeito responde nos poemas a pergunta que ecoa: um "nós", que se autodenomina "os humildes, os mutilados, os tristes", que seguem "mudos", e se desdobra na menina que tem como destino de vida proteger-se do mundo: "Existe em mim uma menina que não tira as vestes nem para tomar banho. Não é cisma, é sina". Esta poesia procura-se e se encontra como imagem, contorno, silêncio. Poesia como traço que se oferece como tato a rastrear nas palavras o som que se ouve no eco mudo de um olhar que assinala que "um caminho é silêncio". Isso seria asseverar a esta poesia suas escolhas e o risco. Tatear o silêncio é fundar sua concretitude e sua plasticidade. Os poemas se oferecem como traços desse sentir.

 

novembro, 2011

Leia Elaine Pauvolid em Germina
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Susanna Busato (São Paulo/SP, 1961). Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, de São José do Rio Preto/SP, onde leciona Poesia Brasileira, no Curso de Licenciatura em Letras e na Pós-Graduação em Letras, desde 1999. Organizou juntamente com Sérgio Vicente Motta, o e-book Fragmentos do contemporâneo: leituras (São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009), pelo selo da Editora da UNESP. Escreve o blogue Papel de Riscos.