"número zero.

 cílios estremecem o

 ventilador"

         (p. 20)

 

"faz-se oliva um oriente e

 assim:

 pedra rara"

(p. 11)

 

A música dos planetas faz vertigem entre as pálpebras, mira na pele dos mapas e alcança a vibração orgânica das pétalas e dos caules. Entre edifícios, flagra-se a supraluz de curvas arquitetônicas, que se agregam a farrapos e celhas. Transes, presságios e toadas — tactilidade ardente. Este imbricamento sinestésico intenso constitui a primeira marca visível em Gyro (Salvador: Cispoesia,  2010), quarto livro do poeta Gustavo Arruda, que, intensificando as bem sucedidas estratégias estéticas de seus volumes anteriores, Istmos (Rio de Janeiro: Imprimatur, 1997), O céu de todas as cidades (Portugal: Quase, 2000 e Rio de Janeiro: Imprimatur, 2000) e Dispara (São Paulo: Antiqua, 2003), firma-se como um dos autores mais criativos e sensíveis da cena poética contemporânea, titular de um projeto artístico coerente e comprometido com o processo de recuperação do sentido estrutural da linguagem.

No voo de seu verbo, há um tecido cósmico em diálogo contínuo com as camadas do cotidiano, delineando um movimento contrapontístico habilmente engendrado: "torna-viagem. / atinjo pelas bordas a pequena / praça no giro escuso / do planeta" (p.15), "quedas lutam com a turba / celeste. / dormida estrela no rastro / tosco." (p.26)    

Desde a estreia, em 1997, com a publicação de Istmos, Gustavo Arruda assume a condição de poeta-pintor, que, ao percorrer rotas geográficas de continentes diversos, intitulando-se "dono de rastro algum", reflete metaforicamente sobre a precariedade da linguagem poética e do verbo, precariedade, que, paradoxalmente, se faz matriz de inexplicável força, insinuando a chave do mistério apontado por Octavio Paz: "Grande mistério: o poema contém poesia sob a condição de não guardá-la; está feito para espargi-la e derramá-la, como a jarra que verte o vinho e a água"1. A escolha do título do livro de estreia, Istmos, proveniente do grego isthmos (lugar por onde se vai) já aponta nesta direção: do percurso, do movimento, da viagem.

Em O céu de todas as cidades, o poeta permanece fiel à sua poesia-viandante, em que se diz "passageiro na superfície da terra", e, em planos abertos, se dispõe a "beber tempo", em suas infinitas andanças/errâncias "nas sombras das sombras". Em "Dispara", trabalhando texturas e dimensões gráficas diversas, expande a polissemia e a vertente táctil de sua poética, em imagens cada vez mais concisas e densas: "pela lama lume / pelas bandas / chamando nuvens / escuras escurecendo cílios seus cílios / flutuam na velocidade de / flama feroz". Como observa Marcus Salgado, nas páginas de Dispara convivem "a concisão oracular e imanente do oriki africano" e "as tapeçarias sonoro vibráteis da poesia árabe-andaluz", além da "saturação quase barroca dos sentidos na busca de um Sentido último para a viagem-vida".

No iridescente curto-circuito de Gyro, esta bem reconhecida mescla de elementos estéticos se adensa ainda mais, e, como plâncton pleno de surpresas insólitas, propicia a beleza de imagens como as que se seguem:

 

                                      

" ...

lava falante.

teso rascunho de um arrepio.

nessa vertigem a pétala se

mescla a ela mesma".

(p. 18) 

                                   

" safiras da guatemala tais

qual fantasma.

na praça dos quinze mistérios

resolvi recombinar os dias.

engulo o paraíso e os sumos

de lá".

(p. 25)

 

 

Tactilidade e percussividade se aglutinam nesse texto poético de trinta e cinco páginas que flui em sua unicidade caleidoscópica — sem pausas ou subtítulos — enquanto o olhar lírico-construtivo se consuma e "a terra gane assim. / todos os belos dias" (p. 7). Para seus propósitos estéticos, concebendo com engenho o tecido fônico de Gyro, o poeta emprega expressivas sequências de aliterações: "balsa de papel / bricolagem de ilhas brilhantes / estrangeiros agridoces" (p. 21).

O próprio título do livro, trazendo a letra "Y" no lugar de "I", reforça a ideia do deslocamento, do trabalho lúdico e lúcido em torno do locus. Enquanto materialidade, a substituição dos grafemas indicia a abertura, a bifurcação, a expansão de caminhos do verbo-viandante. E, como símbolo, aponta a transmigração intensa de culturas/ritos/idiomas que as viagens reais por Granada, Lisboa, Marrakesh, Atenas e Mindelo, entre outras cidades, polis/sibilita à sensibilidade de sua construção poética.

Relembrando Octavio Paz, "A poesia se ouve com os ouvidos mas se vê com o entendimento. Suas imagens são criaturas anfíbias: são ideias e são forma, são sons e são silêncio. [...]  "a poesia é a Memória feita imagem e esta convertida em voz"2.

Alimentada por trabalhos de edição ("Aur'fera Rua" e "A Oxun de Shangai") e fotografia, a poética de Gustavo Arruda gravita numa constelação significativa e se afirma como voz plena de maturidade, esculpindo novos hemisférios de invenção. No rascunho de um arrepio, o poeta antevê essa palavra: sopro que está antes de um deus qualquer — ele — cantor dos instantâneos / das salinas./ satélites.

 

 

 

Notas

 

1PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993, 1.ed. reimpressão, 2001, p. 143

 

2op. cit., p. 143

 

 

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O livro: Gustavo Arruda. Gyro. Salvador: Cispoesia,  2010

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março, 2011

 

 

 

 

 

Beatriz Amaral. Mestre em Literatura e Crítica Literária, musicista e escritora, publicou vários livros, entre os quais Planagem (1998), Alquimia dos Círculos (2003), Luas de Júpiter (2007). Gravou o CD Ressonâncias com Alberto Marsicano (2010).
 
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