Nas abordagens dedicadas aos debates acerca de literatura há que se propor, entre outras, discussões referentes à atuação da crítica; considerando nela seu papel de ordenação geral ou seleção. Mesma definição com que Ezra Pound, no livro ABC da Literatura, constitui um de seus argumentos, ao colocar o valor da crítica, antes na qualidade de suas escolhas, do que na excelência de seus argumentos. Contando que não haja "medidas idênticas para duas pessoas" cabe ao crítico tirar suas próprias conclusões a respeito de um texto. A partir daí, talvez, que toda leitura aponte para a configuração de uma crítica; ou, que a primeira apresente já como sua condição uma aproximação em relação à segunda, pelo menos entre leitores com mais acuidade.

Em se tratando de poesia, o medíocre, no fim das contas, é sempre o mesmo em toda parte, ou, se encontra nele um mesmo nível de fraqueza, identificado, por exemplo, no uso excessivo, demasiado de palavras. Numa tentativa de inversão a esta proposta poundiana, teremos que uma poesia de qualidade (ou, que não se afilie às nomeações medíocres) apresentará variações de estilo, forma, signos, enfim, intenções de linguagem sobre as quais o crítico irá engendrar suas escolhas interpretativas.

Pensando nisso, arrisco-me em tentativas de leitura aos poemas de Ronald Augusto, alguns deles, ao menos. Inicio por palavras, que são, via de regra, o veículo da poesia e nela figuram à deriva, numa espécie de espera ao leitor que se lhe ajuste o significado, esse, por sua vez, depende ainda de um "quanto se queira" e/ou "como se sinta ao significá-lo", tais medidas podem ser introduzidas na linguagem com maior ou menor maestria e aqui sim a possibilidade de se verificar o caráter "inventivo" de determinados poetas, ou poemas.

Ronald Augusto experimenta palavras em disposições que, ora nos dão tempo à percepção, ora nos aceleram para ela. Em certa medida, acaba por exigir de seu leitor uma relocação dos cenários interpretativos com os quais está "habituado" a atribuir significados aos acontecimentos mais cotidianos, por assim dizer.

Com efeito, parece constantemente oferecer o leitor ao movimento, quando não vindicar-lhe essa condição, sob pena de comprometer a própria fruição. Assim, o leitor comovido, ou, em moção, estabelece as próprias inferências. Nas leituras não nos faltam imagens, mas, inacabadas, ou, cuidadosamente inconclusas aguardam do leitor — e mais ainda, de cada leitura — a composição de suas interpretações. Exemplos disso podem ser encontrados no poema 2., do livro No assoalho duro, do qual transcrevo os seguintes versos: "a folhagem estica um tentáculo / prateado para fora da janela".

Aqui a metáfora de fácil visualização, por assim dizer, está bastante afastada da ingenuidade, ou de uma linguagem medíocre. O autor compõe o enunciado de maneira a retratar uma imagem que dista o suficiente do corriqueiro para nos colocar de sobreaviso e continua na mesma estrofe, "não é a de um prédio muito elevado/sempre reluzentes bracelestes".

Conforme E. Pound, a resolução do problema da estrutura da sentença depende do estabelecimento de enunciados que retratem e apresentem em lugar da proposição de comentários que se pretendam explicativos. No poema referido, Ronald Augusto indica uma imagem, cria ou recondiciona componentes do "real" a partir da mobilização linguística que propõe. Dessa forma, cabe ao leitor estabelecer as regras do jogo que será sua leitura. Se, no entanto, o leitor não avançar sobre os estranhamentos encontrados será preferível que se dedique aos autores que não exijam esforço além de sua atenção "habitualmente relaxada". 

Nos versos, fraturas inesperadas sublinham variações rítmicas e apontam relevâncias ao pormenor. Há ocasiões em que essas fraturas abreviam o verso forçando-o a uma dimensão material, visual das representações de significados implicados à palavra, "no passeio embrulhada timbrística bulha / de metais diversos / os harmônicos da fala ameaçam fender / o espaço em dois (para divisar: / a água recebe raio de luz e permanece / unida)".

 Em outras ocasiões, versos longos nos sugerem permanência — ou intensificam a impressão de continuidade —, sobre a qual devemos forjar a interpretação; a leitura retarda. Aproveitamos o verso para alongar o próprio sentido despendido a ele, como no poema 8., do mesmo livro, "[...]/ sonho de vaidade vácua / que paraíso guardará a menor semelhança / que seja com a cara inexistente que / às vezes afivelo sobre a face para / melhor me desvelar?".

Parece que todo lugar na poesia de Ronald Augusto não se afeiçoa ao comum. Antes, não há lugar para o usual nas sentenças que experimenta. Mesmo o que de início nos pareça encaminhar-se para as concepções corriqueiras, elementares até, em seguida se transforma de maneira inusitada. O lugar-comum fora de lugar, ou, a sentença que, acercando-se de desfecho esperado — condição mais propícia aos hábitos de uso cotidiano da linguagem — se desdobra irresoluta no momento em que a imaginávamos conclusa. Experimentamos alternativas às proposições encontradas. As variações alcançam a própria escolha das formas através das quais empreenderemos a leitura; versos e/ou estrofes contíguas nos encaminham a imaginários de múltiplas representações, tudo dependerá do enquadramento a que nos dispomos. Com isso, destaco, ainda, a condição do movimento, (poema 6.) "caminho cerrado trecho de via interior/mergulho por escadaria/meus faróis disparam um túnel na treva porosa/fachopaco não alcanço nunca a desembocadura/[...]", tudo nos é oferecido ao afastamento do ordinário.

Lemos a todo o momento, quase que a cada verso, o (re)estabelecimento de acordos que pareciam encaminhar a leitura ao entendimento confortável, mas que são imediatamente implodidos pela mesma linguagem a que o leitor acabara de se apropriar. Uma espécie de "estratagema" linguístico semelhante aos que encontramos na prosa de Machado de Assis, como, por exemplo, nesse trecho de Esaú e Jacó (1904):

 

[...] faze de conta que estás no teatro, entre um ato e outro, conversando. Lá dentro preparam a cena e os artistas mudam de roupa. Não vás lá; deixa que a dama, no camarim, ria com os seus amigos o que chorou cá fora com os espectadores.

 

No exemplo, todo esforço despendido pelo prosador em "construir" seu universo ficcional é, por ele mesmo, arruinado. A "veracidade" da narrativa é posta à prova para em seguida — e a partir das ruínas que a implosão deixou à vista — fazer-se sólida novamente e devidamente fortificada,

 

Quanto ao jardim que se está fazendo, não te exponhas a vê-lo pelas costas; é pura lona velha sem pintura, porque só a parte do espectador é que tem verdes e flores. Falo por imagem, sabes que tudo aqui é verdade pura e sem choro.

 

Em No assoalho duro encontramos uma linguagem com a qual o autor nos põe em movimento. No entanto, a comoção não se esgota na atribuição de sentidos ao texto (poema), ela ultrapassa essa condição porque assim que providenciamos cômodo aos primeiros significados das sentenças, somos compelidos a manobras interpretativas nada regulares. As imagens construídas oferecem-nos ao inesperado. Para tanto, artifícios como a oposição de parônimos servem não apenas à construção melódica dos versos, mas também às rupturas que suscitam os estranhamentos de tais aproximações: "à tarde esperam sobre esporas altaneiros"; "já esse posfácio não sai fácil"; "querendo levar a cabo missão sem solda e soldo". Nesse poema, que dá título ao livro, o leitor repropõe os sentidos aos quais acabara de acomodar-se, pois que já não servem aos versos por onde avança sua leitura. Tão logo a imagem se estabeleça, é retirada ao factual. Para adiantar-se no texto o leitor acaba por servir-se das fraturas, dos fragmentos do que até então fez arruinar, vai buscar no sono a matéria de sua vigília: "me aproximo de tombar em sono suave / [...] / barra o sono essa conversa errorosa / melhor num outro dia dar sítio à prosa".

 

 

 

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O livro: Ronald Augusto. No assoalho duro. Porto Alegre: Éblis, 2007

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março, 2011

 

 

 

 

 

Denise Freitas (Rio Grande/RS, 1980). Escritora e professora de História. Publicou Misturando memórias: contos e crônicas de Itajaí (2007) e Mares inversos (2010). Escreve o blogue Sísifo Sem Perdas.
 
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