JOGO PERIGOSO


 
O jogral joga ao mar sua jangada,

lúdica loteria aventurada.

Joker, jóquei, jugo na jugular,

no lance astuto de vencer o azar.

Joga-se casto, em logro de Jocasta.

Joga-se: carta lacrada em Jacarta.

Joga-se pó no vento do poente,

a bola de cristal rolando em frente.

Joga-se grão no chão das incertezas.

Joga-se pão na mesa das tristezas.

Na roda da fortuna, joio e trigo,

arado de adversárias naturezas.

Joga-se não no alforje do mendigo.

Joga-se sorte, ao fim, sobre o jazigo.

 

 

 

 

 

 

PRÓ E CONTRA

 

Pelo lote da glosa e pelo logos do apelo.

Contra o epílogo da epiglote.

Pelo lótus e a rosa do desvelo.

Contra o pote da hipótese. 

Contra o atrito da tribulação.

Pelo pátio da teatralização,

Pelo retrato da retratação.

Pelo destroço do horto ortodoxo.

Contra o acróstico do agnóstico,

contra o gozo do algoz.

Contra o trigo da intriga,

contrito com o lógico.

Contra o trago amargo do letargo.

Contra o luto e o anacoluto de Cloto.

 

 

 

 

 

 

PERORAÇÃO

 

Dai-me uma corda pra que eu me acorde.

Dai-me um acorde pra que eu não durma.

Dai-me um acordo pra que eu me acuda.

Dai-me um enfoque pra que não me enforque.

Dai-me um escudo pra que eu me descuide.

Dai-me um encanto pro meu acalanto.

Daí-me um Talmude pra que eu me transmude.

Dai-me um archote pra que eu não me açoite.

Dai-me um Descartes pra que eu não me descarte.

Dai-me um encarte pra que eu dê as cartas.

Dai-me a concórdia em nome da ordem.

Daí-me equilíbrio pra que eu não me ludibrie.

 

 

 

 

 

 

PERDAS E DANOS

 

Estou no limite da expiação.

Existir parece às vezes um delito.

Meto os peitos na voragem

e o tempo se faz um batalhão.

Enquanto enlouquecem os asnos protagonistas,

resisto na redoma, com exercícios de alerta.

 

 

 

 

 

 

TÉDIO SACRAMENTAL


Ponho bálsamos verdes onde os mosquitos laceram.

Armado até os dentes de paciência,

pago, penitente, todos os pecados.

Como o pão cotidiano da angústia.

A situação asfixia.

A peleja extrapola os meus neurônios.

Sofro, resignado, ruminando desmandos.

Noite longa, no desconcerto da semana.

Enquanto espero a ressurreição da Lua,

recorro ao tédio sacramental.

 

 

 

 

 

 

INSÔNIA

 

Morrer talvez não seja a pior opção.

Dormir é uma forma de morrer.

Se eu pudesse ao menos dormir!

Dormir é o momento eterno.

Estar acordado é que é o pesadelo.

Vem, Morfeu Bromazepam.

 

 

 

 

 

 

SOBREVIVÊNCIA

 

Não entro mais em confusão.

Não boto mais meu barco nesse pélago.

Nunca mais mergulho entre tubarões.

Vou pisar no chão com mais cuidado,

longe dos ferrões dos escorpiões.

Nem que me ofereçam o Velocino de Ouro,

não vou mais aonde o cão perdeu as botas.

 

 

 

 

 

 

HÁBITO

 

Perdi o hábito de amansar os valentões.

Mas não me livrei da mania de defender os fracos.

Só me consola o canto agudo de um pássaro,

que me lembra o ruído dos fogos de artifício de outrora.

Seu canto também me evoca o estrídulo daquela araponga,

na Avenida Barão de Studart;

eu tinha oito ou nove anos.

 

 

 

 

 

 

OS FRENÉTICOS

 

Os frenéticos falam de cifras e acionam morteiros.

Dirigem mísseis para as operações de paz.

Agarram o mundo com unhas, dentes,

pernas, braços, mãos e pescoço.

Apoderam-se do globo e não dividem um átomo.

As torres implodidas ainda fumegam.

 

 

 

 

 

 

OS SANTOS E OS CANALHAS

 

Os santos em petição de miséria.

Os canalhas aferrados à matéria.

Os santos tragam dose amarga.

Os canalhas puxam a descarga.

Os santos com a corda no pescoço.

Os canalhas esvaziando o poço.

Os santos no suplício mental.

Os canalhas no carnaval.

Os santos saindo da fila.

Os canalhas com avidez de gorila.

Os santos gemem sem paz e sem sono.

Os canalhas ladram como cães sem dono.

Os santos entram num buraco sem fundo.

Os canalhas devoram o mundo.

Os santos choram martirizados.

Os canalhas se arvoram, desgraçados!

Os santos permanecem na indigência.

Os canalhas têm tudo, menos a inteligência.

 

 

 

 

 

 

PRA DESPEDIR O CASCA-GROSSA


Come o nome dele, sapo, e voa

a alguma remota lagoa!

Leva contigo o cabeça torta,

que a vassoura já tá atrás da porta!

Leva o escabroso morcego.

Leva o desassossegado filho do Satanás

e o tumulto que ele faz.

Xô, baixo-astral, te manda!

Olha o veleiro de vela panda!

Canta o adeus, ave de arribação!

Leva o bicho e a aberração!

Abre a porta da jaula, domador.

Deixa que saia a fera e o furor.

Pra longe, além da curva do horizonte,

para as bandas onde não haja ponte.

Leva o da enferma retentiva

a navegar alhures, à deriva,

deixando em paz esta freguesia,

que abomina a tirania.

Aos desmandos do casca-grossa,

outorga a merecida fossa.

Fora daqui o pérfido tirano,

antes que ele bote todo o mundo insano.

 

 

 

 

 

 

ORÁCULO E ANTIORÁCULO

 

Abre os esfíncteres pra ser vitorioso.

― Prescindo dessa glória e desse gozo.

Fica de quatro e empreende a conquista.

― Que excluam o meu nome dessa lista.

Tira as calças, rasteja e lambe pé.

― Deixo a quem queira o trapo do chulé.

Explora e menospreza todo otário.

― Procedo com convicção em contrário.

Não existe bem nem mal, entra no trem.

― Antes juntar salário de vintém.

Bajula o crasso ditador.

― Rasgo a bandeira e quebro esse andor.

Mantenha os cegos na ignorância.

― Recuso esse afã com ardor e ânsia.

 

 

 

 

 

 

MAR AZUL

 

Mar azul, onda de alegria em mim.

Contemplo a oscilação

da água no ar.

Ontem foi

o agora que sempre é.

Tudo permanece e muda

na viagem do ser.

Na calma do dia, medito.

Feliz de estar aqui,

no agora da vida,

sem pensar

e sem desejar.

Vida de harmonia,

horizonte de luz do bem-querer.

Força viva no pulso da maré 

e a lua de cristal.

 

 

 

 

 

 

RESISTIR

 

Estou calejando os neurônios de devoção.

Estou carpindo a experiência do estorvo.

Sou um xamã em permanente transe de angústia.

É trabalho para futuras encarnações

estudar a mentalidade dos primatas.

Mas o tempo é o melhor exorcista.

Cada minuto é uma libertação.

Já se evidenciam os últimos embates da colheita terrível.

Um oráculo me prognostica bom augúrio.

Viajarei com meus sonhos.

Resistirei.

 

 

 
[imagens ©zebble]

  

  

 

MÁRCIO CATUNDA Ferreira Gomes (Fortaleza/CE). Formado em Direito e em Letras. Em 1985, ingressou no Instituto Rio Branco; atualmente é conselheiro da carreira diplomática, na Embaixada de Madri, Espanha. Sua lista de livros atinge 42 títulos, em verso e em prosa; tem ainda CDs, com músicas suas e declamações. Publicou em inúmeros periódicos e antologias. Tem-se destacado também como militante cultural. Promoveu coletâneas, redigiu biografias e ensaios. Em sua fortuna crítica, vários escritores: Affonso Romano de Sant'Anna, Álvaro Alves de Faria, Anderson Braga Horta, André Seffrin, Aníbal Beça, Assis Brasil, Caio Porfírio Carneiro, Elaine Pauvolid, Ernesto Flores, Jarbas Júnior, José Alcides Pinto, Lêdo Ivo, Leonardo Fróes, Marcus Vinicius Quiroga, Ricardo Alfaya, Rogério Salgado, Tanussi Cardoso e muitos outros. Pertence à ANE, Associação Nacional de Escritores de Brasília, e ao Pen Club do Brasil. Mais em seu site [www.marciocatunda.com.br]