©cristina carriconde
 
 
 
 
 
 
 
 

 

Pandora

 

Mulher de muitos cabides, acostumei a manter as fantasias esticadas e livres.

Quando as dobrei para guardá-las na mala de fuga, comecei a sentir as dores. A cada dobra uma contração de parto retido. A primeira fisgada na altura do ventre, depois nos seios e nos braços.

Empilhei fantasia sobre fantasia dentro da minha bolsa de segredos intocáveis. Contorcidas, gemiam umas sob as outras.

Mas foi no momento de trancá-las que começaram os gritos. Já me acostumei às contínuas dores e ardumes das dobras, mas os gritos... os gritos...

 

Eu, Pandora desvairada, já não posso mais pendurá-las. Hoje me amedronta desatar tanta amargura entre elas abafada.

 

 

 

 

 

 

Da desordem do recomeço

 

Em nenhuma das costuras que nos remendam ficaremos inteiros. Hão de se esgarçarem aos impactos, hão de se arrebentarem nas rochas. Em nenhum dos retoques ficaremos refeitos. Duas cicatrizes de feridas que sempre doerão e continuarão se abrindo pelo ardor de memórias.

Em todos os consertos nos sobrarão rachaduras. Seremos sempre esse desencaixe. Mãos que não se entrelaçam, suores que não colam, pés que não se enroscam. A cara metade deformada pelo tempo e pela tênue linha entre o amor e ódio, filhos da mesma chama: brasas de uma única fogueira, que fagulham juntas, mas morrem por ventos de distintas direções. Um contorno mal feito, uma descombinação, um descompasso, uma desproporção.

Uma história sem pé nem cabeça.

 

 

 

 

 

 

Notas Silenciosas

 

Nenhum barulho ensurdece

quando

você se fecha

dentro da própria cabeça.

 

A cadência da quietude,

a pressão dolorosa

do vácuo, espaçoso,

dentro de si.

 

Tenho uma gama

de embalos,

uma sucessão de deslizes

nas notas mais agudas.

 

O silêncio

ainda me cabe como uma luva.

 

 

 

 

 

 

Farelos de autodomínio

 

Cerro os punhos

para estancar as linhas

que me cortam,

não para impedi-las do

fatal trajeto

— já não me assusta o futuro —

mas para oprimir os fantasmas

que as enraízam.

 

São eles,

os primogênitos defeitos,

que merecem a tirania consistente

dos nervos

que me sobejam.

 

Cerro os punhos

com a força de quem vence batalhas,

com a resistência inabalável

de quem se apodera do tempo.

 

 

 

 

 

 

O golpe

 

A diferença entre a pancada e tombo está no cambalear das pernas.

As mesmas que vibram durante o ato — teu dia amanhecendo em mim — são as que cedem diante do fato de que tua ausência seja sempre

passagem.

 

O teu perfeito golpe me pega na rigidez das coxas, para o amparo dos braços antes da queda. Mas o tombo chega inelutável, fazendo do susto o sonho

sempre depois do nascer do dia

o nocaute, a lona.

 

 

 

 

 

 

Sal nos olhos

 

A chuva lá fora,

mas molhado

está aqui,

inundando a casa que é vida

e os olhos

que ardem nessa água de mar.

 

Desaguar salga feridas.

 

Desaguar...

Uma única palavra

para tantos litros de mágoas.

 

 

 

 

 
 
março, 2011
 
 
 
 

 

Samantha Abreu (Londrina/PR, 1980). Escritora, estudou Letras na Universidade Estadual de Londrina, onde vive. Publicou Fantasias para quando vier a chuva (Rio de Janeiro: Multifoco/Orpheu, 2010). Tem poemas e textos publicados em sites, antologias e revistas de literatura. Elaborou um projeto de videopoema no Youtube, escreve no blogue Haute Intimité desde 2004 e, também, no blogue da sua série Mulheres sob Descontrole.
 
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