AUTORRETRATO

 

Não quero ser político

nem empresário, nem executivo;

ainda menos, líder da maioria vitoriosa.

Não me agita a expectativa

de viver preso ao telefone,

de dar entrevistas a torto e a direito,

de prestar contas ou, guarde-me Deus, depoimentos

no fim da jornada.

Não é que pregue a inércia

que, aliás, não faz parte do meu caráter,

mas, vendo o ápice do Olimpo coberto de nuvens,

duvido que valha mesmo a pena atingi-lo.

De modo nenhum me seduz a glória,

sobretudo a póstuma,

bem como a opulência exagerada,

pois, com o tempo, esta perece nas baixas da bolsa

ou passa a juntar as baratas,

enquanto aquela cede lugar a outros louvores

falsos ou fidedignos.

Não é que me curve perante a realidade,

mas, certo de que nas pontas da básica equação

ficam o tombo e o coqueiro igualmente concretos,

acho mais razoável manter-me na defensiva,

distante dos cargos de alto nível.

Não gosto, enfim, de vestir-me de preto e branco,

tampouco de integrar os esquemas

montados pela vontade alheia:

temo as cores monótonas,

e deixa-me cético a simetria que se alinha à morte.

Não é que seja covarde por natureza,

mas, apegado a tradições milenares,

prefiro a lancha ao navio

e ao trombone, a flauta.

O íntimo sonho que tenho

consiste apenas em acordar cedinho —

toda manhã, de domingo a sábado —,

abrir os olhos nessa penumbra cinzenta,

pela qual se costuma julgar de como será o dia recém-nascido,

ao lado da mulher amada,

que dorme de bruços, nua e confiante,

beijar os ombros aveludados dela

e, dando-me conta de que estou vivo,

agradecer, humilde, a quem criou a vida

por tê-la criado tão simples e cheia de bagatelas maravilhosas.

Numa palavra, evito acrescentar ao que foi concebido pequeno,

e, dada a mínima diferença entre vencido e vencedor,

não quero ser Davi nem Golias...

Quero ser Eu.

 

 

 

 

 

 

UM DIA

 

Um dia tecido de sol e de chuva,

eu dei pela pressa horrível do tempo

correndo só para correr,

sem açoite nem brida.

 

Um dia que não diferia de todos os outros,

cheguei a sentir que a Terra girava igual  

às infames roletas, ali de Las Vegas:

de zero a zero.                            

 

Um dia que bem poderia chamar de feliz ou soturno,

fiquei revoltado de compreender

que jamais fora dono

da vívida vida.

 

Então no asfalto joguei o relógio

e disse comigo:

— Assim tá melhor!..

 

Esse dia notável pôs fim ao meu décimo sétimo ano.

 

 

 

 

 

 

MADRIGAL

 

Eu vivia como todo mundo vive:

caminhava rápido, falava baixo;

tinha muito medo da violência,

da doença crônica, da grana curta

e, principalmente, do fim que viria.

 

Os meus sonhos tinham-se desbotado.

Não gostava eu nem da lua cheia,

nem do sol tocando na minha pele;

só o vinho tinto — ele sim! — às vezes,

dava-me um pouco de reconforto.

 

Ao ouvir alguém se dizer, com verve,

felizão nos braços da namorada,

eu ficava triste, porque achava,

sem acreditar em quaisquer amores,

que estivesse o moço exagerando.

 

Em resumo, a minha vida se parecia

com aquela de Thomas Crown (lembras do filme antigo?),

sendo meio tédio meio azáfama;

de repente, fez uma cambalhota,

isto é, mudou de forma definitiva.

 

Eu abri os olhos e vi-me num campo

que milhões de flores ornamentavam.

Juro-te, milhões de viçosas flores

cuja variedade me deixaria,

noutras circunstâncias, indiferente.

 

Era pitoresca a paisagem feita,

qual uma alcatifa, de fios policromos,

e havia nela uma luz intensa,

como se o sol e a lua juntos

em seus raios místicos a banhassem.

 

Mais ainda, claras as perspectivas

antes encobertas, tudo se transformara —

cheiro do café, silêncio da noite,

frio da invernia, murmúrio do vento,

cor do papel — num autêntico arco-íris!

 

Entretanto, não ocorrera essa mudança

por mera sorte nem por magia negra.

Foras tu que entraras em minha casa

e das janelas, que para o belo campo deitavam,

tiraras as encardidas cortinas.

 

Hoje reconheço que meu vinho tinto

não contém um pingo de alegria.

Que viver contente valha ouro, sustento;

mas viver contigo vale... Epa, moleque!

Vale não: quem ama, contar não sabe.

 

 

 

 

 

 

A LUA MORENA

 

[fragmentos]

 

 

* * *

 

Pouco importa, menina linda,

que você calce sapatos de salto raso,

que dê gargalhadas a todo propósito,

que fume cigarro sobre cigarro,

dizendo que, lá no mundo das artes,

esse pecado é dos menores.

 

Pouco importa, menina doida,

que você goste de bater papo

sem nunca discernir o bom do ruim, o caro do baratíssimo;

que tinja a cabeleira de não se sabe que cor:

a gente vê e só encolhe os ombros;

que não entenda de etiqueta nem de política.

 

Pouco importa, menina minha,

que você sempre me sirva um jantar esturrado,

voltando eu do trabalho com fome,

e fique choramingando, quando reparo nisso,

como se no estômago

meu coração residisse.

 

Pouco importa, enfim, que você tenha

montes de pechas miúdas e perdoáveis!

O importante é que a vida nos outorgou a chance,

a única e divina chance de vermos o céu altivo de perto,

e que os beijos seus, em vez de saber a chiclete,

sabem a primavera...

 

 

 

* * *

 

 

Você sorri pra mim e pra ninguém,

pra todos nós, adultos e crianças,

pra todos os que creem no Porvir,

pra quem está em busca da Beleza.

Você sorri, e com o sol travesso

das terras tropicais é parecido

seu modo de sorrir: o ar pulula

de tantas chispas rubras e azuis

que, tendo por saradas as mazelas

do dia a dia, cada um se sente

feliz ou, pelo menos, fascinado —

os homens sonham em amar demais,

em ser amadas mesmo, as mulheres.

Você sorri de modo que me deixo

levar por emoções, e não atino

com o porquê do júbilo sereno

que transparece no sorriso seu,

nas horas nada ledas, inclusive.

Talvez se ria corajosamente

das manhas e manias deste mundo;

talvez se regozije de fazer

meu coração bater descompassado.

Talvez, talvez... Mas qual a diferença,

se, mal me volta as costas, escurece,

e, num piscar de olhos, viram cinza

os cálidos matizes do viver?..

 

 

 

***

 

 

 

Eu vivo à sombra das tuas pestanas.

Se bem que pareças ainda menina,

por ti conquistado, meu mundo caduco

à sombra das tuas pestanas repousa.

Estar ao teu lado, pequena, temendo

que fosses embora um dia nefasto,

seria penoso, se não procedesse

tamanho consolo de estar ao teu lado!

 

Não sei se me amas ou finges amar-me,

que muito volúveis são nossos amores,

mas sempre que olhas pra mim, sorridente,

falando, prolixa, dum novo vestido,

da chuva teimosa, dos filmes em voga,

de quanto gastaste no supermercado,

é como se lesses um livro que trata

com rústicos termos do céu soberano.

 

Apenas me beijas e passas de leve

a mão pela minha cabeça dorida,

ou grudas teu corpo no meu de maneira

que vibram os dois de tensão e desejo,

não posso nem quero pensar noutra coisa

senão em deter-te nos ávidos braços

até se soltarem os nós derradeiros,

as últimas cordas de vez se calarem.

 

Tu és o maior dos milagres profanos:

o mar que se vê, transcendente paisagem,

da minha janela, o sol a benzer-me,

a brisa de cujo frescor necessito.

E se me esperassem mil anos de vida,

trocá-los por uma só década ia,

contanto que Deus permitisse contigo

viver esse tempo de cabo a cabo.

 

Amada, enquanto medir o ponteiro

as horas fugazes do nosso presente,

ninguém poderá nos privar do futuro.

Enquanto a mim pertenceres, amada,

eu tenho certeza de que não iludem

os cândidos contos do arco-da-velha,

de que nos unimos por obra do fado

e não por acaso, eu tenho certeza.

 

 

 

 

 

 

MEMÓRIAS DUM HIPERBÓREO

 

[fragmentos]

 

 

II

 

Eu nasci muito longe daqui,

lá no norte severo,

na terra beata dos hiperbóreos

além deste mar bravio situada,

inatingível.

Ando a bendizê-la em honra da minha gente...

Uns estão mortos e não se importam com nada,

os outros, ainda vivos, lembram da época de orgulho

e trazem, iguais a mim, um peso na consciência.

Não me deixem mentir, meus irmãos:

havia quem os tachasse de fúteis,

havia, sim, quem acusasse de tudo quanto era pecado

ou simplesmente zombasse dos seus costumes;

mas não se desanimavam vocês — em resposta,

viviam de modo que mesmo o pior dos malogros lhes dava razão,

com gosto e ousadia viviam.

Límpidas eram as águas do meu país,

férteis os campos

e abundantes as safras dele.

Na minha casa, se bem que tivesse um só andar,

comiam-se ótimas carnes e pães excelentes,

bebiam-se vinhos de uva e de maçã,

cada dia, usavam-se finas toalhas e pratos ornamentados.

Tanto assim que, se vira, naquela altura,

uma menina chorando de fome,

descrera dos olhos — faz manha por ter perdido

sua boneca precária! —

ou, consternado, também chorara.

Distantes da minha realidade,

a fome, a peste, a guerra e outros horrores

serviam de tema às conversas da ágora

e de espantalho para crianças,

naquela altura.

Onde estará tudo isso:

águas e safras e zombarias,

dor do meu peito e chave da minha porta,

destroços do meu passado?

...........................................................................................

Hoje estou lasso demais, faraó!

Não perguntes por quê,

atribui a vertigem que sinto

ao gelo das minhas recordações, que flutua na décima taça

                                                      [de ponche,

às flautas de Pã, cujo som lastimoso tortura os meus ouvidos,

e, quando me tratas afavelmente, ao medo de teu rancor.

Atribui-a, supremo, à febre que me sacode,

ao calor tropical, ao cansaço, a qualquer coisa,

e, caso não aches plausível

nenhum dos motivos da minha tristeza intempestiva,

manda bater os pandeiros e tímpanos,

faz as morenas esbeltas dançarem à luz dos archotes vermelhos,

que torna diáfana sua nudez,

e ordena ao mordomo falto de zelo

que jogue no fogo incenso e mirra às pazadas,

até se desvanecer o aroma da pátria minha

nos aposentos dourados de teu palácio.

 

 

 

VI

 

Quando eu tinha uns treze anos,

as árvores eram altas

e as palavras, sinceras.

Estavam vivos os meus avós,

ainda novos, os pais,

e não faltava, nas redondezas,

quem os achasse dignos de reverência.

Naquele tempo,

toda manhã, em janeiro como em julho,

simbolizava a felicidade:

cedo se levantava o sol,

um pires de moranguinhos já me esperava em cima da mesa,

e lá no telhado, suavemente

turturilhava um casal de pombos.

E eu vivia —

não consumia a vida

nem a deixava puxar-me pelas orelhas —

apenas vivia,

contente com poucas coisas que tinha,

e no lugar dos brinquedos surgiam os livros interessantes:

contos, diálogos e poemas.

E cada vez que a moça mais linda de toda a cidade

passava, de peplo curto

e uma fita purpúrea a segurar os cabelos luxuriantes,

defronte da nossa casa,

soltavam-se os meus olhos do velho papiro

e, fascinados, corriam no seu encalço.

De vagabunda chamavam-na os vizinhos,

e eu, numa blasfêmia inofensiva,

de Chipriana,

tanto o requebro dos seus quadris

exacerbava o meu anseio de ser adulto.

Depois da chuva,

o arco-íris juntava as extremidades do plácido firmamento,

e a janela do quarto, onde dormia,

dava para o mar,

pacato e cristalino feito um riacho.

Harmoniosos eram os nossos dias,

malgrado se sucedessem depressa...

Quanto à morte, ela não existia.

 

 

 

 

 

 

DUM SPIRO, SPERO

 

Eu sei, meus amigos, que tudo acaba,

que não existe, no mundo dos homens, nada perene:

gasta-se a saúde,

perde-se a beleza,

esgota-se o prazer

e a força do corpo se vai embora.

Eu sei que a nossa vida não passa

duma centelha a brilhar no escuro sem bordas,

que só um instante separa a infância da senectude,

o berço da cova,

e disso, por vezes, eu tenho medo.

Mas, quando me sinto fraco,

e voltam as dúvidas seculares a deprimir-me,

quando, perante o infinito, deixam de ser relevantes

todos os argumentos lógicos e absurdos,

resta a promessa divina

que os humanos costumam chamar de esperança

em mil idiomas —

vem com o sol nascente,

surge das nuvens que se dispersam após a chuva,

no canto dos pássaros se percebe,

recria os sonhos desfigurados pela tristeza,

de brotos verdes semeia o solo infértil...

Forte como as mãos paternais

e serena como uma prece,

a esperança compensa a urgência dos dias

com tanta certeza de não me levarem à morte, mas, sim, ao futuro

que partilhá-la convosco, amigos, quero:

posto que grande demais para mim, em pessoa, seja,

para a humanidade seria de bom tamanho!

 

 

 

 

 

 

 

 

CHARLES BAUDELAIRE: AS FLORES DO MAL

 

 

CXLVI

 

A morte dos amantes

 

Nós teremos leitos a manar olores

E divãs profundos, nossas sepulturas,

E, pelas estantes, as estranhas flores,

As que, noutros tempos, viram mais ternuras.

 

Esbanjando à farta os últimos ardores,

Far-nos-emos duas tochas, às escuras,

Que refletirão os seus duplos fulgores

Nos espelhos gêmeos, nossas almas puras.

 

Uma noite feita de azul e de rosa,

Trocaremos uma chama vagarosa:

Dois adeuses juntos num clarão final.

 

E depois um anjo, ao soabrir as portas,

Virá reanimar, firme e jovial,

Os espelhos baços e as centelhas mortas.

 

 

 

 

 

 

MIKHAIL KUZMIN: CANÇÕES ALEXANDRINAS.

 

 

Sabedoria, 3

 

Como eu amo, deuses eternos,

o mundo belo!

Como eu amo o sol e os juncos,

e, peneirado pela ramagem fina

dessas acácias, o brilho do mar esverdeado.

Como eu amo os livros (de meus amigos)

e o silêncio da casa recôndita,

e as hortas com seus melões

que se veem da minha janela!

Como eu amo a multidão variegada na praça:

os gritos, os cantos, o sol

e o riso alegre da garotada que joga bola!

E o regresso a casa

depois dos passeios ledos,

tarde de noite,

sob as primeiras estrelas,

ao longo das estalagens iluminadas,

com um amigo já bem distante!

Como eu amo, deuses eternos,

a leve tristeza,

e o amor até amanhã,

e a morte sem lamentar a vida

que me é cara de todo,

e que eu amo, juro por Dionísio,

com todas as forças do coração

e da gentil carne!

 

 

 

 

 

 

PIERRE LOUYS: OS CANTOS DE BILÍTIS

 

137. Conselhos a um amante

 

Se quiseres, ó jovem amigo, que uma mulher te ame, seja ela quem for, não lhe digas que a desejas, mas faz com que ela te veja todos os dias, depois vai embora para voltares.

 

Se ela te dirigir a palavra, sê amoroso sem pressa alguma. Ela virá, por si mesma, a ti. Sabe, então, tomá-la com força, no dia em que ela quiser entregar-se.

 

Quando a receberes na tua cama, negligencia teu próprio prazer. As mãos duma mulher amorosa estão trementes e sem carícias. Dispensa-as de serem zelosas.

 

E quanto a ti, não descanses. Prolonga os beijos até se perder o fôlego. Não a deixes dormir, mesmo que ela te peça. E beija sempre aquela parte do corpo para a qual se virarem os olhos dela.

 

 

[imagens ©philippa willitts]

 
 

 

 

 

Oleg Almeida é considerado "poeta de dois mundos" (Marco Lucchesi). Nascido em 1º de abril de 1971 na Bielorrússia, uma das repúblicas ocidentais da então União Soviética, ele ganhou certa projeção nos meios artísticos do país natal e, vindo ao Brasil com 34 anos de idade, adotou o português como língua de criação literária. Seu livro de estreia, romance poético Memórias dum hiperbóreo, foi lançado pela Editora 7Letras em 2008 e mereceu elogios de vários intelectuais e poetas lusófonos. Oleg Almeida traduziu do francês O esplim de Paris: pequenos poemas em prosa de Charles Baudelaire (Martin Claret, 2010) e Os cantos de Bilítis de Pierre Louÿs (Ibis Libris, 2011); traduziu do russo Canções alexandrinas de Mikhail Kuzmin (Arte Brasil: 2011); verteu para o russo a peça teatral Tu país está feliz (Thesaurus, 2011) e uma série de poemas avulsos de Antonio Miranda. Tem-se dedicado, igualmente, às traduções científicas, técnicas e comerciais. Sócio da União Brasileira de Escritores (UBE/São Paulo), Oleg Almeida colabora com as revistas "EisFluências" (Recife) e "(n.t.) — Revista Literária em Tradução" (Florianópolis), administra o projeto "Stéphanos: Enciclopédia virtual da poesia lusófona contemporânea", mantido no site www.olegalmeida.com, e atua como agente cultural em Brasília.

 

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