©maarten van heemskerck
 
 
 
 
 
 

No final do livro I da Ilíada, Homero nos apresenta um personagem curioso: Vulcano, Filho de Juno e Júpiter. O papel que ele cumpre neste seu aparecimento, embora breve, não desperta menos nossa curiosidade.

Juno está furiosa com Júpiter por este ter tido um encontro às secretas com a mãe de Aquiles, Tétis. Esta viera ao encontro do maioral do Olimpo para interceder em favor de seu filho, que se encontrava extremamente irado com Agamêmnon, por este ter-lhe usurpado a bela Briseida. Em razão disso, Aquiles abandona seu posto na luta do exército de Agamêmnon contra troianos, e pede à sua mãe que intervenha junto aos deuses, para que os gregos sejam os derrotados na batalha que se aproxima.

Embora Júpiter houvesse se mantido imparcial na contenda Greco-troiana, não resistiu em fazer uma promessa a Tétis: "É mau que incites/A com seus ralhos molestar-me Juno,/Que, assídua em me aturdir perante os numes,/Desses Troianos parcial me acusa./Vai-te, ela não te enxergue. A mim o tomo:/Do certíssimo aceno entre as deidades,/Selo à minha promessa irrevogável".

Porém, contra os intentos de Júpiter, Juno percebeu toda trama, e, "Assaltando o inventiva: 'Quem, doloso,/Fora de mim se conluiou contigo?/Sempre agradam-te ajuste clandestinos;/Nunca um só pensamento me descobres'".

Diante de tal ousadia, Júpiter não se escusa em colocá-la em seu lugar, a despeito de Juno ser sua esposa: "Em penetrar não cuides/Arcanos meus; esposa embora sejas,/Penosos te serão. Nem deus nem homem/Quanto ouvir devas me ouvirá primeiro;/Mas o que a parte no ânimo concebo,/Não mo perguntes, nem mo inquiras, Juno".

Mesmo intimidada, Juno, dona de uma personalidade incontornável, não deixa de revelar a Júpiter o que supunha ser a petição que Tétis a ele fizera: "Que proferes?/Jamais pergunto nem te inquiro de nada;/a teu sabor tranqüilo deliberas./Mas temo te seduza, ó cru Satúrnio,/A branca filha do marinho velho:/Madrugou-te abraçando-te os joelhos;/E suspeito anuíste a que ante a frota/Sucumbam Dânaos por amor de Aquiles".

Com a irritação alcançando o extremo de sua paciência, Júpiter dá um basta aos ferinos argumentos de Juno: "Ruim maliciosa, eu não te escapo;/No desagrado meu com isso incorres./Trago pior terás; que lucro esperas?/Se é verdade o que dizes, foi meu gosto,/Não mais, submissa em teu lugar sossega:/Se as mãos te calmo invictas, pouco importa/Que te acudam do pólo os moradores".

Embora dona de uma irascível impertinência, Juno sabe também, estrategicamente, reconhecer os limites de suas abordagens. Recolhe-se ao seu posto, carregada de mágoas.

Aí vem a parte que nos interessa. Vulcano, dileto filho, a pretexto de levar consolo à mãe ultrajada, diz-lhe as seguintes palavras: "É praga intolerável que aos Supremos/Questões humanas alvoroto excitem;/Se o mal grassa, os festins seu preço perdem".

Note-se que o pretenso consolo de Vulcano volubiliza-se em conselho, em alerta à mãe para o risco de eles virem perder as benesses usufruídas no Olimpo, em razão da intervenção em vãs questões humanas.

Ele diz mais: "À mãe discreta aviso que amacie/Meu pai dileto; a repreensão de novo/Não nos turbe as delícias do banquete./Pois, se tal se lhe antoja, o Omnipotente/Destes assentos nos derriba a todos".

Vulcano não tem pejo nenhum em solicitar que a mãe, além de submeter-se a Júpiter, o faça utilizando-se de caprichosos ardis femininos.

No fundo, o ardiloso filho de Tétis tem suas razões para temer as irreverências de sua mãe em relação ao temido Júpiter, pois este, quando do nascimento de Vulcano, o precipitou desde o Olimpo, por conta da feia aparência com que veio ao mundo. Em consequência de tal queda, culminada na ilha de Lemnos, Vulcano ficou com um pé manco. Resgatado por Tétis, voltou a morar no Olimpo, principalmente por conta de sua artífice habilidade.

Ao oferecer uma taça de vinho à mãe, Vulcano declara: "Paciente, cara mãe, sufoca o anojo;/Estes olhos batida ah! Não-te vejam".

Juno, convencida pela sagacidade do filho, recolhe sua revolta e toma nas mãos a taça oferecida, na qual Vulcano apressa-se em servir o doce néctar.

Ao ver cena toda, os demais deuses desatam estrondosa gargalhada, que interpretamos como a de uma divindade que se iguala a humanos, no que eles têm de mais sórdido: a capacidade de adequar-se a cômodas situações, a despeito do opróbrio que isso venha lhes causar.

"É já tarde, e regalam-se os convivas/De iguais porções de opíparos manjares./ Tange na lira Apolo, e as Musas cantam/Com suave cadência e melodia./Dês que a diurna luz desaparece,/Desencostados, cada qual procura/Seu domicílio no esplendente alcáçar,/Do coxo mestre fábrica estupenda./O fulgurante Olímpio ao trono sobe,/Onde usa o meigo sono acometê-lo;/Dorme-lhe em braços a auritrónia Juno".

 

 

 

 

Referência

 

 

HOMERO. Ilíada. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2004.

 

 

 

março, 2011