AVISO AOS NAVEGANTES

 

Um livro de poemas

não passa

de um livro de poemas

 

 

 

 

 

 

BRINCANDO DE SER ETERNO

 

Me reconheço sem dificuldade

quando me olho no espelho

e não encontro a minha idade

 

 

 

 

 

 

ORAÇÃO DO ATEU

 

O Deus que eu tolero

me exaspera.

 

O Deus que eu pondero

me degenera.

 

O Deus que eu venero

me exonera.

 

O Deus que eu espero

me desespera.

 

 

 

 

 

 

ATO FALHO

 

Se a poesia

não encontra brecha

e não baixa

eu broxo.

 

 

 

 

 

 

REMATE

 

Nessa madrugada aberta,

onde suporto meus devaneios,

nessa madrugada funesta

onde organizo meus receios,

nessa madrugada dispersa

onde tantos estão em festa,

nessa madrugada

nada me resta.

 

 

 

 

 

 

DESAFIO

 

Atire a primeira pedra

quem nunca sentiu vontade

de atirá-la primeiro

 

 

 

 

 

 

FAÇANHA DE UM POETA

 

 

Gozo dentro da palavra.

Vulcão jorrando lava

mesmo quando a solidão

me escava.

 

 

 

 

 

 

 

NA MELHOR DAS HIPÓTESES

 

Me estrepo toda vez que tento

a poesia grande

a poesia multiuso

a poesia ensinamento.

 

Pra minha perplexidade

a poesia tem servido

apenas de passatempo.

 

 

 

 

 

 

SUBSTITUIÇÃO

 

Meia-noite e um quarto

um sentimento sendo enterrado

outro em trabalho de parto

 

 

 

 

 

 

ANÁLISE DESCONTRAÍDA

 

Todo risco é hábito

mesmo correndo o risco

do irreparável estrago.

 

Todo risco é válido

mesmo não tendo à vista

o agradável páramo.

 

Todo risco é mágico

quando se tem bom senso

e engodo plácido.

 

 

 

 

 

 

O ACASO NÃO TEM PRESSA

 

Enquanto o príncipe encantado

não chega montado

em um cavalo alado,

caio na farra!

 

 

 

 

 

 

PECULIAR

 

Não consigo perder a mania

de transformar tudo que vejo

tudo o que penso

tudo o que faço

em poesia.

 

 

 

 

 

 

PIROTECNIA

 

Coração pegando fogo.

Minhas boas-vindas

a um amor novo.

 

 

 

 

 

 

SACIEDADE

 

Enquanto o poeta

explica o mundo

o leitor cai

num sono profundo.

 

 

 

 

 

 

PRESENÇA

 

Estás em mim como uma marca de nascença.

Ora serena, ora ardente.

Estás em mim na semelhança e na diferença.

Estás em mim, onipresente.

Estás em mim nas horas de alegria

e também quando caio em miséria.

Estás em mim de uma maneira séria, absoluta.

Estás em mim como uma luta que só traz dor.

Estás em mim como um torpor que não cessa,

como um gerador, como uma corrente

como uma semente que brota, vento que volta.

Estás em mim de uma maneira latente, corrosiva.

Cerne, eixo, feixe, haste.

Estás em mim e em toda parte

alarmado e silente.

Estás em mim, acho que pra sempre.

 

 

 

 

 

 

EU

 

Mais um na multidão

mensageiro da alegria

filho da revolução

passageiro da agonia.

Perito em inércia

irmão do vento

presa fácil

discípulo do tempo.

Vítima das circunstâncias

refém do acaso

amante das aparências

soldado raso.

Último romântico

peregrino dos bares

escravo do prazer

descobridor dos sete mares.

Atleta fora de forma

animal irracional

palhaço triste

profissional liberal

ator medíocre

masoquista sentimental

 

 

 

 

 

 

MEDITAÇÃO NO CREPÚSCULO

 

Difícil ofício esse de ser gente.

Difícil ser pontual, coerente.

Difícil ter o ócio interrompido,

a carência nunca suprida,

o ódio preterido.

 

Difícil ofício esse de ser gente.

Difícil dominar os vícios inerentes.

Difícil ser um exemplo a ser seguido,

usar uma máscara atrás da outra,

raramente ser compreendido.

 

Mais fácil é ser bicho.

Estar sempre em autenticidade consigo.

Fazer o que tiver vontade

na hora que quiser

e na frente de todos.

Depois sair tranquilamente

como se nada tivesse acontecido.

 

 

 

 

 

 

INSATISFAÇÃO

(chatice existencial)

 

Me cansam o profano e o sagrado.

Me cansam o certo e o errado.

Me cansam a mentira e a verdade.

Me cansam a soberba e a simplicidade,

a obliquidade e a linearidade.

 

Me cansam a dúvida e a certeza.

Me cansam a força e a fraqueza.

Me cansam a feiura e a beleza

a riqueza e a pobreza.

 

Me cansam o marasmo e a mudança.

Me cansam a sabedoria e a ignorância

a paciência e a ânsia.

 

Me cansam o amor e a putaria

a tristeza e a alegria.

 

Me cansam o que não tento e o que invento.

 

 

 

 

 

 

O MEDO

 

O medo instalou-se em mim.

O medo cravou sua bandeira.

O medo tem dado frutos.

O medo tem me envelhecido

tem sorvido minha alegria

tem pintado minhas paredes de cinza.

O medo tem imposto sua vontade

tem dançado tango

tem recitado seus artigos

tem saído às ruas de disfarçado

tem nadado nu.

O medo tem me sufocado

tem me emudecido

tem me paralisado.

O medo tem me ferido

— punção de mil agulhas —

e deixado a chaga ao sol.

O medo tem me deixado só

tem fechado horizontes

tem estragado a plantação.

O medo e sua afinação

tem me desafinado.

O medo tem me regido

tem me cerzido

tem me enganado.

O medo tem me marcado.

 

 

 

 

 

 

EPITÁFIO

 

aqui jaz fera ferida

sentimental até o osso

abandonado no fundo do poço

 

 

 

 

 

[imagem ©henri cartier-bresson]

 

 

 

 

 

Renan Sanves é sagitariano, de Salvador, e nasceu em 1984.