AS MORTES

 

quando o primeiro amor morreu

eu disse: morri

 

quando meu pai se foi

coração descontrolado

eu disse: morri

 

quando as irmãs mortas

a tia morta

eu disse: morri

 

depois, a avó do Norte

os amigos da sorte

os primos perdidos

o pequinês, o siamês

morri, morri

 

estou vivo

a poesia pulsa

a natureza explode

o amor me beija na boca

um Deus insiste que sim

 

sei não

acho que só vou

morrer

depois de mim

 

 

 

 

 

 

CÁLICE

 

para Glorinha, em memória

 

sossega. a paz é assim mesmo. inversa.

a lua que encontra todo dia seu outro lado.

o oposto de si e o igual. o gêmeo.

o espelho retorcido.

o bruxo. o adivinho. o enigma.

a face obscura da lucidez. véus. diadorim.

a iluminura do eterno. a visão do cego.

a luz. a luz. a luz.

a poesia exata que exala o lodo.

asas. anjos. o rosto do corpo.

o último galo da terra.

 

sossega. a paz é assim mesmo. diversa.

a mãe dizendo que a filha morreu. e não há mais saída.

o livro dos prazeres sem Clarice.

a roda da vida ao contrário.

versos desinventados.

a Mascarada que sorri. tão feia. tão linda. desarvorada.

unhas pintadas como leopardos. Ela — a Foice que ceifa.

 

sossega. a paz é assim mesmo. perversa.

pra bom entendedor nenhuma palavra.

basta.

nesse momento nenhum pássaro é possível.

nenhum cheiro de fruta ácida. nenhum tudo.

nenhum invento de manhãs sem sono.

nem tardes mansas. nem noites mornas.

uma flor nascendo. somente.

um perdão sem medo.

um inverno caloroso.

qualquer humanidade.

qualquer deus.

 

dorme. a paz é assim mesmo. sossega.

 

 

 

 

 

 

CILADA

 

O amor não é a lua

iluminando o arco-íris

nem a estrela-guia

mirando o oceano

 

O amor não é o vinho

embebedando lençóis

nem o beijo louco

na boca úmida do dia

 

O amor não é a angústia

de se encontrar o sorriso

nem o vermelho

do coração dos pombos

 

O amor não é a vitória

dos navios e dos barcos

nem a paz cavalgando

cavalos alados

 

O amor é, sobretudo

a faca no laço do laçador

O amor é, exatamente

o tiro no peito do matador

 

 

 

 

 

 

GESTOS

 

para Jiddu Saldanha

 

 

O que vem de dentro

pudera nunca se exprimir

palavra

O que vem de dentro

é ouro

puro silêncio

pudera nunca se exprimir

mundo

O que vem de dentro

é tudo

só se pode exprimir

mudo

 

 

 

 

 

 

ORÁCULO

 

mas não quero falar disso agora.

preciso modular minha FM preferida.

acertar minhas ondas hertzianas. jogar meus vídeos.

ver minha TV desfocada.

terminar meu quadro imaginário.

pensar palavras nunca escritas.

ser inteligente. admirável. bonito. de olhos espertos. galantes.

ouvir marvin gaye em CD.

ceder às minhas idiossincrasias. polissemias. hipérboles. agonias.

curtir meus deuses injustos. meus canibais preferidos.

minhas chuvas de abril. meu rock sem sexandrugs.

minhas vertigens. delírios. minhas camas desfeitas.

meus uis. ais. meus apótemas.

me perguntar o que é apótema.

fazer teses de gaveta.  construir teias. telas. estratagemas.

GEMAS.

 

mas não quero falar disso agora.

entenda. pegar meu  barco à vela. meu travesseiro.

meu lexotan. minha incoerência.

eu X o tempo.

eu qüestionário incorrigível.

eu X eu — matemática imponderável.

preciso de um céu imprevisível.

uma morte não anunciada.

um sofrimento exato e incontrolável.

um mar. viajar em sereias e trepar com deusas insensatas.

não ter medo de deus. não ter medo de adeus. não ter medo de.

veludos azuis. abajur vermelho. tangos e boleros. facas agudas.

samambaias penduradas na sala de jantar.

mortos passeando nos jardins. um filme de mojica marins.

 

mas não quero falar disso agora.

tantas idas e vindas. dor no coração fodido.

vôo e nem acredito.

vôo e nem domingo.

sábado e nem comigo.

vôo e nem futuro.

só preciso disso:

a paz inalcançável do gesto da mão no ar no vento

como um corte lento e gosmento.

silencioso. brutalmente silencioso.

como um poema. límpido como um santo caído das nuvens.

como um poema. gênesis.

como um poema. estupidamente triste.

como um poema. sutil e inacabado.

como um poema. belo e qualquer.

 

mas não quero falar disso agora.

 

 

 

[Do livro Viagem em torno de, 2000]

 

 

 

CIDADES

 

perco-me na cidade

para encontrá-la

 

as pedras só elas

permanecem futuro

 

não cobro lugar

nas marquises sob o sol

 

entender a cidade

é buscá-la

 

 

 

 

 

 

DOS MISTÉRIOS

 

os homens apressados

ásperos

angústia de chuva que não molha

 

os homens correm apressados

 

vai na frente a poesia

a poesia sempre na frente

inalcançável

 

 

 

 

 

 

O RIO DENTRO DE MIM

 

para João Cabral de Melo Neto, em memória

 

não me interessa a paisagem,

mas o que em mim, adormecido,

espera o romper da imagem.

aquilo o que em mim, despido,

treme, deserto e miragem,

notas de um som escandido.

 

não me interessa a vã porfia

que persiste à luz da cidade,

mas o que, morto, em mim me espia.

aquilo que, peixe, invade

o rio que, sob a pele, me guia

ao fundo-fundo da claridade.

 

não me interessa a carne viva

que só se mostra escondida,

navios valsando à deriva.

aquilo que é dor corrompida,

osso servido aos convivas

pelos que, vivos, matam a vida.

 

só me interessa a poesia

bendita a todos, mordida

fruta que se faz dividida.

aquilo que do ventre adia

a arquitetura da lâmina fria,

e que de sol e pão se faz vívida.

 

 

 

[Do livro Exercício do olhar, 2006]

 

 
 
DIÁRIO

 

para Carlos Costa, poeta

 

 

É silêncio e teu ombro pesa.

 

Todos os teus murmúrios são inúteis

— mesmo a tua ida ao teatro.

 

Teu corpo

pregado numa cruz imaginária

foge de ti

e te acusa da febre que incendeia o quarto.

 

Os papéis sobre a mesa do trabalho

contam histórias tristes

e as borboletas nos lagos gelados têm mais vida.

 

É tudo simples: praias, serras, estradas,

carros, engarrafamentos, shoppings, sonhos:

a palavra é simples: a morte é simples:

as luzes dos altares nada queimam:

nos mármores das estátuas

quebramos nossos espelhos.

 

E tudo teima em te acusar: teu sexo estúpido,

teus amigos imortais, o amor que não consola,

a família nos retratos,

a faca suja na manteiga

que sangra o pão do dia.

Olhas da janela os pombos mirando os milhos;

olhas o namoro nos fios;

enganas teu rosto com tua paz suspeita.

 

Teu peito te trai. Teu poema te trai. Teu país te trai.

O olho enrugado te trai.

Teu jornal te faz de tolo.

Tuas guerras santas são falsas.

Teu cão te ladra.

Teu gato te arranha.

 

O sol entra em tua cama

e te cospe no rosto

o ofício de outra manhã

a cumprir.

 

É silêncio e teu ombro pesa.

 

 

 

[De A medida do deserto, in Rios, 2003]

 

 

 

OLHOS

 

para Celso Moreira da Silva, em memória

 

 

Há dias em que qualquer movimento

me assusta

o barulho simples de sílabas soltas

de sol saindo

de lua saltando.

Há dias em que me assustam

qualquer sombra

qualquer espelho

risos nos sulcos da noite

sussurros de cobras no cio

uivos de cão no silêncio.

Há dias em que tudo me assusta

como se frágil

a vida escorresse líquida

por minha garganta de aço.

Há dias em que é melhor

fechar janelas

correr trincos nos olhos

esquecer o vento lá fora.

Dormir só. Como se o cavalo da manhã

trouxesse na crina da aurora

a felicidade.

 

 

 

 

 

 

ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA

 

para Liz Taylor, em memória

 

 

I

 

Os olhos de Marlon Brando na tela

e o peito sussurrante da menina bela.

A boca de Marlon Brando na tela

e as mãos da sorte nos seios dela.

As coxas de Marlon Brando na tela

e o suor do púbis doía nela.

 

 

II

 

A mão no escuro

escolhe o momento

exato de agir.

Ágil,

segura as coxas

da menina ao lado.

 

(Rock Hudson

beija

Elizabeth Taylor)

 

As pipocas

se contorcem

de prazer.

 

 

 

[Do livro Boca maldita, 1982]

 

 

 

"ROUND MIDNIGHT"

 

para Dexter Gordon

 

: todos morremos um pouco por volta da ½ noite

tocando jazz, soul, samba

morremos todos um pouco por volta da ½ noite

o amor morre um pouco por volta da ½ noite

as mães morrem um pouco por volta da ½ noite

todos os sinos, atabaques, tambores, tantãs

todos os ritmos choram seus sons por volta da ½ noite

há fantasmas nos porões das luas

por volta da ½ noite

há um poema a ser feito acordando seus latidos

por volta da ½ noite

há crianças de olhos vermelhos

dos pós das calçadas da ½ noite

há bares, putas, viados, negros e brancos

viajando na ½ noite

há lençóis amassados limpando suores

no rosto da ½ noite

a vida escorre lenta o seu enorme relógio

põe corações em chamas

bronquites, babas, febres, espasmos

sempre e sempre e cada vez mais sempre

por volta da ½ noite

: todos morremos um pouco por volta da ½ noite

 

 

[Do livro Beco com saídas, 1991]

 

 

[imagens @izarbeltza]

 

 

 

 

 
 
 
Tanussi Cardoso. Carioca, formado em Jornalismo e Direito. É poeta, crítico literário, contista e letrista de MPB. Com a poesia, adquiriu uma série de prêmios, nacionais e internacionais. Seu nome é verbete da Enciclopédia de Literatura Brasileira (Fundação Biblioteca Nacional) e do Dicionário Cravo Alvim da Música Popular Brasileira. Além de publicado em dezenas de Antologias, tem nove livros de poesia editados. Recebeu o "Prêmio ALAP de Cultura" e o "Prêmio Capital Nacional 2000", pelo livro Viagem em torno de (7Letras, 2000), além de ter poemas publicados na Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, EUA, França, Itália, México, Portugal e Uruguai, e traduzidos para o francês, espanhol, italiano e russo. Em 2006, representou o Brasil no Segundo Festival Latino-Americano de Poesia "Ser al fin una palabra", inserido no Dia Mundial da Poesia, na Cidade do México, onde lançou Exercício do olhar (Fivestar), prefaciado por Gilberto Mendonça Teles e Luiz Horácio Rodrigues, livro finalista do Prêmio Nacional de Poesia Cidade de Juiz de Fora 2003 e eleito o Melhor Livro de Poesia de 2006, no Congresso Latino-americano de Literatura, em São Francisco de Itabapoana/RJ. Em 2008, o poeta e ensaista Igor Fagundes escreve um alentado ensaio, "A Poética do Olhar em Tanussi Cardoso: Um Exercício do Corpo Inteiro", baseado no livro Exercício do Olhar, inserido no livro Os Poetas Estão Vivos — Pensamento poético e poesia brasileira no século XXI (Manaus: Muiraquitã), vencedor do "Prêmio Literário Cidade de Manaus". Em 2009, participou, como convidado, do Festival Internacional de Poesia da Cidade de Bambamarca, Peru, onde lançou o livro bilingue, Del Aprendizaje del Aire, com seus poemas traduzidos ao castelhano pelo poeta chileno Leo Lobos e pela poeta mexicana Angelica Santa Olaya. Em 2010, é convidado para o Festival Internacional de Poesia de La Serena, no Chile. E apresenta o livro bilíngue, Del Aprendizaje del Aire, na Cidade do México, a convite da Coordenação Nacional de Literatura do Instituto Nacional de Bellas Artes. Pertence à Diretoria do PEN CLUBE do Brasil,  à União Brasileira de Escritores (UBE/RJ), à Associação dos Poetas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro (APPERJ). É Vice-Presidente da Casa do Poeta Peruano, com sede no Brasil, e é o atual Presidente do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro (SEERJ, 2011). Escreve o blogue Tanussi Cardoso Poeta Etc.