Prazer sem perigo é prazer menos vivo

Ovídio, A arte de amar, Livro III

 

 

O relógio da secretaria marcava 3:25 da tarde. Tudo em ordem no Colégio Campbell. Os únicos sons no prédio eram as vozes dos professores ecoando pelos corredores, ressoando nomes, datas, fatos, feitos.

Peguei uma caixa de giz no armário e notifiquei a inspetora de alunos:

— Dona Magda, a professora Bárbara me pediu isto aqui. Vou até a sala de aula, depois vou dar uma circulada pelo colégio, certo? Pra ver se aquela turminha, nossa conhecida, tá puxando fumo nos fundos da quadra de basquete.

— Tudo bem, Lupércio — ela nem levantou os olhos de sua revista "Quem está trepando com quem no mundo dos ricos e famosos".

Passando pelo saguão, fiz um cafuné rápido na careca de bronze do busto de Henry George Campbell, o fundador do colégio. É uma espécie de "simpatia" e um agradecimento pela minha boa sorte. Catorze anos já neste emprego. Achei que não aguentaria uma semana o confronto com a molecada rebelde, mas aqui estou eu. Inspetor de alunos, com muita honra.

Já teve gente emproada que empinou o nariz e gritou comigo "bedel", como se fosse uma palavra pejorativa. Besteira. Não existe trabalho inferior, toda função exige habilidade, tato, saber lidar com as pessoas. E nisso eu sou bom. Todo mundo aqui gosta de mim e me respeita.

A professora Bárbara Helena, por exemplo. Ela me ensinou que o nome Lupércio, que eu pensei que fosse só o nome do meu avô, é um nome romano muito antigo. Tem a ver com o deus Lupercus, que protegia os rebanhos de carneiros e afastava os lobos. Aqui no colégio eu sou o guardador de um rebanho de moleques bagunceiros.

 

Bati com o nó dos dedos no visor da porta da sala de aula. Dona Bárbara Helena, professora de Língua Portuguesa e Literatura, fez sinal pra eu entrar.

— Trouxe a caixa de giz que a senhora pediu.

— Obrigada, Lupércio. Diga uma coisa: sabe se chegou um envelope grande pra mim, de uma editora?

— Parece que tem um envelopão pra senhora na sala dos professores.

— Melhor eu ver isso agora — ela disse enfaticamente. — Atenção, classe: preciso sair um momento pra tratar de um assunto urgente. Eu volto logo. Élvio, por favor: venha escrever a matéria na lousa. Vocês copiem e se comportem.  

O magrelo Élvio levantou-se ligeirinho. Tinha boa letra, era sempre escolhido pra passar o ponto no quadro-negro. Ela entregou o livro aberto ao garoto, "páginas 37 a 40", e voltou-se para o monitor da classe:

 — Luís Ricardo: mantenha a ordem.

Esse outro, topetinho armado com gel, estufou o peito e olhou para os colegas como um segurança de banco vigiando a clientela dentro da agência.

Abro a porta, deixo a professora passar. Ela caminha em direção ao elevador da ala norte. Eu a sigo uns quatro ou cinco passos atrás, feito o príncipe consorte, que vem sempre depois da rainha da Inglaterra. Dona Bárbara tem uma bunda vistosa, mesmo debaixo desse guarda-pó branco.

Por respeito, abaixo meus olhos para suas panturrilhas rijas, seus tornozelos finos. Gosto de panturrilhas bem torneadas. Quando ela usa saltos, as dela ficam retesadas, esculpidas. Dá a impressão de que pode correr uma maratona e ainda disparar à frente na reta de chegada.

 

Entramos no elevador sem trocar palavra nem olhar. Fingimos ignorar o espião de olho em nós: o globo negro que esconde a câmera de vigilância. Com toda essa paranoia de segurança, ninguém tem mais liberdade nem privacidade hoje em dia, em canto nenhum. Quem precisa saber o que eu faço durante uma viagem de elevador? Coçar o saco? Tirar meleca do nariz? Dar uma rapidinha? Ganhar uma chupada? É da conta de alguém?

Dona Bárbara diz "até logo", desce no segundo andar, eu sigo pro terceiro piso e cruzo a passarela que liga o prédio moderno do colégio com o terraço do predinho antigo, construído em 1936.

Entro agora numa área sem câmeras e desapareço das telas da vigilância. Subo rápido uma escada de madeira e espero diante da porta no fim do corredor. Logo ouço o rangido dos degraus sob seus passos. Destranco a porta do depósito e dou a passagem a ela.

Bem-vindos ao arquivo morto. Fileiras e mais fileiras de arquivos de aço. O papelório histórico do Colégio Campbell. Por trás dessa trincheira, no fundo da sala, tem uma mesa comprida, atulhada com uma tonelada de pacotes empoeirados. No canto da mesa, junto à parede, há um espaço que foi aberto com uma braçada, esparramando pacotes pelo chão.

Dona Bárbara se senta na borda da mesa, tira os óculos, solta a presilha do rabo-de-cavalo e suspira:

— Você é louco e me arrasta junto, Lupércio. Se um dia pegarem a gente, a culpa é sua.

É o nosso teatrinho de costume: ela faz papel de vítima e eu sou o tarado afobadão, que nem tem fala. Já vou beijando a professora, enquanto abro o zíper de sua blusa, meto as garras por baixo do sutiã e o empurro pra cima, liberando seus lindos peitinhos, que dão dois pulinhos, plop, plop.

 — Depressa, Lupércio — ela comanda, e aí a gente engata uma primeira e acelera até o fim em menos de um minuto e meio, perfeitamente sincronizados — e agonizamos juntos na pequena morte.

Aprendi com ela que os romanos antigos chamavam o orgasmo de "pequena morte". Espero ainda morrer mil vezes dentro dessa mulher.

Um minuto depois, ela se alonga, ajeita a roupa, prende o cabelo e sai sozinha. Não diz nem "até logo". Não me dá chance de perguntar se foi bom pra ela.

 

Esse nosso encontro clandestino no arquivo morto vem acontecendo pelo menos uma vez por semana. Dona Bárbara gosta de correr perigo, e eu entrei no jogo. Arriscando perder o emprego. Nem sei o que vou fazer da vida se for apanhado... e despedido. Um homem com mais de cinquenta anos, sem muita instrução, que puxa de uma perna.

Só posso estar maluco, não resta dúvida, mas de uma coisa eu tenho certeza: encontrar dona Bárbara Helena nesse mundo foi uma sorte fantástica, o acontecimento mais extraordinário de minha vidinha ordinária. Sem contar que tenho aprendido muita coisa bacana com ela.

Por exemplo: na Roma antiga tinha uma festa pagã chamada Lupercália, em honra da deusa do amor, chamada Juno, e de Fauno, deus da fertilidade e das florestas. Durante a Lupercália, a moçada toda ficava cheia de tesão, e aprontava as maiores bacanais dentro dos bosques.

Na minha cabeça, eu e ela somos deuses, Juno e Fauno, fazendo nossa pequena Lupercália escondidos no arquivo morto.

Diz que essa festa ainda durou por muito tempo depois do fim do império romano, até que um papa chamado Gelásio jogou água fria na fervura, proibiu de vez a suruba. Dona Bárbara costuma dizer que a igreja sempre empatou a foda das pessoas.

Pois é, não tive muita escola, mas acho que aprender esse tipo de coisa faz a gente dar ainda mais valor à alegria do sexo. À folia da foda.  De modo que me sinto fazendo uma espécie de "educação continuada para adultos", como se diz. Porque Dona Bárbara Helena é cultura.

Ah, mas eu também ensinei umas coisinhas a ela.

Ai, dona Bárbara. Assim a senhora me mata.

 

 
 
novembro, 2011
 
 
 

 

Luiz Roberto Guedes. Poeta, escritor e tradutor, nasceu e sobrevive em São Paulo. Publicou, entre outros, Calendário lunático — erotografia de Ana K (Ciência do Acidente, 2000), a novela O mamaluco voador (Travessa dos Editores, 2006), e Alguém para amar no fim de semana (Annablume/Demônio Negro, 2010). Organizou a obra Paixão por Sâo Paulo — antologia poética paulistana (Terceiro Nome, 2004).