Fracasso

         ou uma arte poética

 

                   Try again. Fail again. Fail better.

                   Samuel Beckett

 

                   para  Paulo Henriques Britto

 

 

Cabe uma vida inteira num soneto

ou assim pensam, planejando a rima

a construção de si mesmo, obra prima

as boas escolhas, bom nascimento

 

basta uma voz pra estragar o coreto

amarga em choro, que desafina

(a alvenaria desaba

                   num tijolo podre)

nunca ter sonhado

                   com este emprego

esta espelunca

 

museu que expõe só esculturas tortas com rachaduras

a chave caiu na rua e o caminhão

                                     passou por cima

 

tentar traçar um rumo certo

entre caminhos que surgem, somem no deserto

um olho chora, o outro, a esmo

                                      revê os planos

 

é tarde, fodeu

terá que ser assim mesmo agora.

 

 

 

 

 

 

 

 

Liturgia

 

Nosso traje cerimonial

não é sacro o bastante

                            talvez seja o poliéster

ou o erro do gesto

com a mão esquerda,

 

sentes o coração cheio do mistério?

essa vibração no ar

 

o ronco vindo da primeira fileira,

sonho que sobe feito pipa,

 

o ronco de motores,

toques eletrônicos no bolso,

 

o mundo chama

         e sabe

que queríamos estar em qualquer outro lugar

 

o mundo com seu mistério

que emana das coisas:

calor de asfalto sob chuva.

 

O rito prossegue

nossas bocas borbulham palavras

                                      (seu peso fóssil

         as faz ir ao chão)

 

e em vez do céu

é em nossos pés que estouram essas bolhas de pedra.

 

 

 

 

 

 

 

 

Epifania às quatro da manhã

 

Não há epifania depois das quatro,

entre remorso e cerveja morna

olhe desfigurado o espelho,

glória, se glória

houve um dia,

                   foi ontem

hoje nem um sorrisinho sequer da puta mais rameira.

 

Lúcido o resto do último copo

e a lua lasca de unha

embalam planos de fuga

(mas fugíamos já,

                   dormir

entre a saideira dos pombos

pedrinhas da calçada).

 

 

 

 

 

 

 

 

Poema de mote judaico

         ou ato 4 dos dramas do mundo

 

Por que o espanto do vazio

do fosso de Beemote, aquário de Leviatã, gaiola de Ziz

civilizações pisoteadas

o mar revolto, sol coberto

o mundo racha ao meio

pra fazer um omelete.

 

Entre o correr e assistir basbaque

multidões se revezam

ao longe e só,

se vê Jó, de joelhos,

rindo da própria desgraça.

 

 

 

 

 

 

 

 

Silêncio de alvenaria

 

Jantamos bem

embora tinta alguma jamais

cubra inteiramente

a desgraça vista por essas paredes

quietas

         salvo por

aquela machadada

atrás do criado-mudo.

 

Sepulcro da história

queda de madeira pedra alvenaria e lágrimas de vidro

memórias se acumulando como pó na mobília

que uma empregada distraída

limpa com um trapo.

 

 

 

 

 

 

 

 

Hesitação

 

O ralo do chuveiro entupiu

farto de engolir restos de nós

o que como tumor

sem ver se consumiu,

e menos que os restos o todo restou.

 

Uma teia no canto

formada reformada por uma aranha,

órgãos tecem e anseiam, enquanto

longe o macho ainda

inútil respira,

 

enquanto bêbada

                   entre os

prédios uma

         equilibrista

na corda bamba hesita.

 

 

 

 

 

 

 

 

À menina com câncer

 

Não se pinta estrelas em parede estéril

nem montanhas, cheiro de mato e marulho.

 

Sabedoria forçosa da figura

da moça de branco

contra a parede branca,

seus passos lentos

certos

como a programação da tevezinha quatorze polegadas pendurada acima.

 

 

 

 

 

 

 

 

Onã e a revolução

 

Como os fuzis, os cetros

passam de mão em mão

calados por períodos

refratários.

Mas não lhes cabe o trabalho

enquanto engrenagens movem

azeitada em verborreia

a máquina do vácuo,

os tiros construindo

casas de sangue,

o ouro ensinando todo saber da posse.

E o mundo em fúria

ainda se move, como um tanque,

um trator, a paz

é estéril, ao asfalto

que lançamos nossas sementes.

 

 

 

 

 

 

 

 

A cama feita

 

Gavetas fedendo a câncer

a mesa bafeja alcoolismo

a esperança cavou fundo dois buracos no rosto

 

a cama foi feita.

 

O céu

         de azul que sangra ocaso onde

                   teus dedos foram cravados

poderia chover fogo

a qualquer instante

 

(se chovesse

seria mais rápido)

 

mas o tempo

tem pressa

e arrasta uma perna aleijada.

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais uma carniça

 

Vimos (rappelez-vous) o corpo chato

em manhã de verão as penas

pombo estatelado cinzento no asfalto

sem sangue sem tripa sem verme

como se desenho

atingido por marreta de desenho.

A frustração da terra não devorar

a carne emprestada

já também quase

asfalto,

e o esquecimento

das novas manhãs, essência

desfeita por vassouras

rodas e pernas rápidas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Id(iot)eologia

 

                   ...that common, false, cold, hollow talk

                   Which makes the heart deny the yes it breathes

                   Shelley

 

Pobre

ou mata ou se mata

pra ser rico,

rico mata

pra manter-se rico,

monge marxistas expiam pecados do mundo

batendo o Manifesto na testa.

 

Sem revolução

sem juízo final

os mortos mantêm-se mortos

e os vivos os invejam.

 

 

 

 

 

 

 

 

Ode à serpente

 

Baixo demais para a virtude,

                            rastejar

sobre vidro, palavras

de ordem

         de ódio,

                   rastejar

tragando borras do amor

como rato

         serpente

que devora o rato,

rastejar

         sem pranto

que uma a uma essas gotas salgadas fracassaram

em redimir as gotas amargas

o gosto

         de ferro na boca,

rastejar

         a espinha sustentando a verdade

quebrando no meio

o pescoço

         quebrando no meio

o rosto preso virado pra baixo

                                      rastejar

seria talvez canção

este resto de voz

                   alhures,

sem suas plumas de corvo

                            estes versos

pobres e feios.

 

 

 

 

 

[imagens ©fredrik jörgensen]

 

 

 

 

Adriano Scandolara (Curitiba – 1988) é bacharel em Letras, mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná e tradutor freelancer, contribuindo para o jornal Gazeta do Povo e a revista literária Arte & Letra: Estórias. Está em vias de publicar seu primeiro livro de poesia, intitulado Lira de Lixo.