MITOLOGIA

 

O muro não me libertará

(sei porque sou tempo)

 

Conhecendo também

suas entranhas, armadilhas

saliências e entraves

 

eu o escalo

até o alto

onde ameias são faces tantas

e arranham ou assaltam

a vida

 

Lá, debruço-me

pendo, estico-me

jogo as mãos

a pele

 

e mesmo que não encontre

matéria de igual trama

ainda tenho

 

céu, vento, ar

ou desejo e dúvida e ilusão

 

Este (é um murmúrio)

o meu plano de voo

ramo de salvação

 

Sim, no relume das horas

arranco uma ou outra

de suas plumas e

do cimo

 

sinto

 

o doce estrépito

de um corpo

que arde e responde

             sob o meu.

 

 

 

 

 

 

 

RESULTADO

 

Extrapola a pele

e fere o ridículo

este excesso de cor e grito —

embora diluído

na água sobre a cena

 

E o espanto

está nas margens

tão mais altas

na questão onde se esboça

o possível imperfeito

 

Não houve

tempo para o tempo

e logo

toda a carga

foi exposta

 

Os meses se deitam sobre a chama

que a despeito de sua essência

e certa natureza

está serena e agora

já não queima.

 

 

 

 

 

 

 

REINVENÇÃO

 

Vertendo do branco:

eu, o anti-herói

preso a ganchos de ar

por sobre as fragas da razão

 

duras lâminas

que evisceram

a argamassa do corpo

a desbordar de mim

 

banal, rude, rala argila

não reluz. Só o que destila

por trás do que me é oculto

se esconde à vista

 

É grampo no avesso

— até a secreção

vir à voz, exposta

aos anjos e algozes

 

Então o instante que espero

quando me reinventam os dias

e as aves planam

sob o vulto explícito e sem sede

 

gritem medos e mentiras

para o estômago do nunca

(o julgamento está surdo

e a tentação de não ser

 

para hoje

está morta

 

   afogada).

 

 

 

 

 

 

 

HOLOGRAMA

 

I

 

Se a consciência

me justifica

 

o profundo do sonho

realiza o desejado tato

 

nos caminhos

dessa viva nudez

 

clara arquejante

sólida real

 

— mesmo que só olorosa e luzidia

no fugidio sono

 

 

II

 

Embora evapore ao sol

a história deixa marca

 

no úmido lembrar

dos corpos

 

 

III

 

— quem desmente? —

reunidos, meus.

 

 

 

 

 

 

 

POLÍGONO

    

I

 

Sobre a mesa

o movimento da faca

altera as faces do ar

 

 

II

 

De um lado

os cortes da noite

expelem relâmpagos

 

o rito sem forma

da ausência

o espanto, o silêncio

 

 

III

 

De outro

o atrito da hora

acorda a garganta

 

grita à pele luz e tato

desse consumado céu

que — em troca — reencontro.

 

 

 

 

 

 

 

HARMONIZAÇÃO

 

Demorasse a tua mão

um pouco mais

sobre o meu ombro

 

e me nasceriam asas

 

Em silêncio

logo o pressentimento

o pacto e o voo:

 

grades e escarpas

ruindo sob as pernas

cúmplices, entrelaçadas

 

                      as nossas.

 

 

 

 

 

 

 

FLUX

 

Um reflexo, súbito clarão

que ofusca cada palavra

e cresce gestos

 

A fluida ou espessa linfa

conforme o acento

agrava ou arqueja

 

A helicoidal manobra

que os pólens

cobram à boca

 

Essa é a carne

da surpresa

e arranca o tempo

 

de cada poro

aprofunda a entrega

a extrema submissão

 

Sem refreios

a pedra do desejo

desce agudos arpões.

 

 

 

 

 

 

 

ANATOMIA

 

Os nervos se quebram

e desvelam a natureza

insone dos ossos —

 

eles, minerais

e densos, respondem

à tua tessitura

 

Neles, a extrema

instância do ar

a réstia da luz

 

o que incita

o rio dos pulsos

a fome dos poros.

 

 

 

 

 

 

 

PUZZLE

 

I

 

Magnéticas partes

no meu todo

 

cardume

à deriva da vontade

 

 

II

 

A mancha sucumbe

no entanto

 

à claridade inefável

do repentino dia

 

 

III

 

Entre o naufrágio

da espera

 

e a lâmina

renascida

 

brisa, beijo quase

sobressalto, arrepio.

 

 

 

 

 

 

 

ETERNIDADE

 

I

 

O plano, o branco

e extenso vazio

Há inércia no ar, gelo

 

Sem horizontes

desaba o azul hibernal

ácido — a ácida mordaça

 

Sob a linha

que verticaliza a vontade

e apaga líquidos, o grito

 

O movimento também vertical

afiado, assassino —

este o melhor nome

 

 

II

 

Enquanto subo

assumo e acresço

o gosto — doce — na boca

 

que a completa, retesa a pele

desata as sobras da carne

(o que surge se consome se desfaz)

 

 

III

 

Como não caio

só me afasto

cada vez mais distante

 

um ponto no céu

traço de vapor

memória:

 

lá — porque eterno —

um último brilho

 

Em mim

somente a tua luz.

 

 

 

 

 

 

 

AMPUTAÇÃO

 

Tenho sempre as mãos

Estas:

na direita

a tua luz

ardendo

pelo amargo das veias

 

Cortá-la

— o desejo —

faria o poema

mais escuro

(as letras todavia

ainda pulsando no ar).

 

 

 

 

 

 

 

OPOSTOS

 

A extensa via obriga

a mãos inversas

 

Nem a luz é toda

brilha por prismas

 

Em cada foco

a distância se amplia

 

Nada nos une

ou decifra.

 

 

 

 

 

 

 

HÓSPEDES

 

Lesões: seguimos

nesses desentendidos

dedos do desejo

 

Ao alto gritam

as sombras

que descamam o amor

 

E os vértices

dos sentidos

escritos em chão e céu

 

estão distantes, perdidos

esvaziam vozes

matam as mãos.

 

 

 

 

 

 

 

IDIOMA

 

Nessas letras

a deserção da cena

invenção do genoma

 

No traço, a carne da língua

o refúgio formal

fuga e final vala

 

Nesses signos

a reinscrição do talvez

sopro que não morde

 

só se escreve no ar

os olhos quase podem ver

e, quem sabe, um dia, desvelar

 

Nas letras que seduzem

nos traços que inflamam

nos signos que tormentam

                               

                             há a espera

     muito, muito antes do eco.

 

 

 

 

 

 

 

IMPLOSÃO

 

Uma fratura exposta

de fora para dentro

Nervos expostos

aos arranhões calados

à profunda agulha

inteira dor

 

Não há alívio

nas imperfeições dessa terra

já tão antiga

esquecida de ser outra.

 

 

 

 

 [Do livro Incompleto Movimento. Rio: Editora José Olympio, 2011]

 

 

 

 
 
 

ANÚNCIO

 

Lamento:

essas carrancas

estão habitadas.

 

 

 

 

 

 

 

CATÁLOGO

 

Na sua boca

qualquer nome

me cai bem.

 

 

 

 

 

 

 

PARTE

 

I

 

Aquela pessoa e perfume

invadem cavas inflamam

vãos

 

(ao narcótico efeito

a miopia aumenta)

 

 

II

 

Aqui

no côncavo das mãos

resposta é nenhuma

Chego até

a desculpar-me pelo amor

a incerta aura

 

Ser luz chuva vento?

 

Não:

deserto.

 

 

 

 

 

 

 

MUDANÇA

 

Abrimos mão dos vulcões

montanhas degelos

 

No entre (o vale)

erguemos a casa

 

Ao murmúrio branco

de um rio

 

em silêncio abraçados

nos soubemos.

 

 

 

 

 

 

 

GUICHÊ

 

No teu peito

a solidão

da minha vida toda

 

Bilhete de volta

sem ida.

 

 

 

 

 

 

 

EM MODO (RE)INAUGURAÇÃO

 

"Open the door and look in
Everything is in the place"

Mary Jo Bang

 

 

Abra a porta e olhe pra dentro

tudo no lugar

 

mil vezes arranquei porta

lancei chamas lava espuma lágrimas

sobre os móveis as plantas sobre

meu corpo morto naquela mesa

 

Fugi

tentei perder-me

 

mas eu — arco alvo e flecha —

esperando ao largo (astuto felino)

com as armadilhas

 

Salvo salvo salvo

 

dominó em flashback

fênix renascida de si

antes do conforto das cinzas do

golpe de misericórdia

dos litros de daime sangue (trilha

sem sol)

 

A vontade

essa perdeu-se

 

A porta

é porta é porta é porta

 

Olhe pra dentro  

insisto

tudo no lugar

 

Nada no meu.

 

 

 

 

 

 

 

ANIVERSÁRIO

 

Cinquenta anos não vieram

com sabedoria

 

Não os convidei

 

Caminhava 

quando me acharam

 

Com eles se abriu 

imensa folha

de papel em branco

 

encobrindo

o céu o Cristo no monte

as horas

 

E eu

 

 

não sei.

 

 

 

 

 

 

 

INSCRIÇÕES ENCERRADAS

 

Falaríamos de amor

rugindo vigoroso tenso 

nos filmes livros?

 

Sim 

possível até

imaginarmos também

 

Mas lembremos

há o não ser

caímos dos quadros

 

A culpa moderna vem

e agora é nossa

Expirou a

validade

(vencemos?)

 

Desbotado o carimbo da lata

apagam-se datas

 

Não perguntaram

se queríamos a trama

 

O luminoso avisou: ponto final

 

Descemos.

 

 

 

 

 

 

 

SOMOS NÓS?

 

Onde estivemos

no último inverno no último verão

nessas centenas de estações?

 

Éramos nós ou

nos esperávamos

à sombra de nada?

 

A cada passo

na mesma calçada

tudo muda e seguimos

corpo alma deslocados

 

Sim

chega um tempo

a vontade da virada

do levante

 

mas nenhuma lembrança

pode nos salvar

 

Os olhos se fecharam

estávamos desacostumados

de nós

 

Nos perdemos

para sempre.

 

 

 

 

 

 

 

PERPLEXIDADE

 

I

 

O Deus que (não) conheço

não morreu

 

Está

 

Entre fome e fama

em meio ao que explode ou afaga

flor e moeda

 

Terras que escorrem

matam crianças cavalos a última ave

 

Mas sim

está

 

 

II

 

Depois do grito do riso

restam tarefa farpa ou burla

atalho algum que me salve?

 

 

III

 

No encalço da crença

meu céu branco

 

estanca.

 

 

 

 

 

 

 

SORTE

 

O destino não nos pertence

nem a deuses, runas

ou a leitoras de entranhas

 

A nudez, a tardia indisciplina

dos corpos inutilmente  

perseguem a luz

 

: como agora

arriscar as veias?

Onde se apaga

o vazio?

 

Soube de búfalos

que trocam o cansaço

pela própria morte.

 

 

 

 

 

 

 

 

O PULO DO GATO

 

Recostado às portas do tempo

esperava a transfiguração

 

clareza nos olhos

voo mergulho fogo

 

(viria a revelação

troca de pele)

 

Mas terras e nomes disseram flores

e ainda setas e farsas

e a hora foi mais veloz

que os sentidos

 

Perdi o momento de partir

o norte da migração

 

Agora

nas pausas da noite

fica o gosto pouco de raízes

a tênue respiração de pequenas asas

o desconhecimento da vontade dos pés

e das mãos.

 

 

 

 

 

 

 

DISTONIA

 

Cada passo

atrasa o futuro

tece arremedo

engana o senso 

 

Crente

arrisco o fígado

um último rim

mastigo os vidros

 

da boca da voz

pra esquecer

os cacos  

 

retalhando

nomes tempo

a todos nós.

 

 

 

 

 

 

 

INSTANTÂNEO

 

Ontem o sol não veio

ao ventre

antes de ir ao céu

 

não me abandonei

no infinito incêndio

de um instante só

 

não pude esquecer

 

O tempo foi 

registro agenda tarde

poeira frio

 

Hoje um dia igual

adia a resposta

 

De que segredo

é nutrida a luz?

 

 

 

 

 

 

 

TATUAGEM

 

I

 

Dizer de noites desatadas

ou lágrimas maiores que toda água

Dessa imagem rasgada a sangue

do esquecimento negado ao medo

 

 

II

 

Nada

Nada apaga

 

o risco azul de um nome

queimando o ar

na proa das horas

 

a corrente lenta

descendo

 

ao fundo do mar.

 

 

 

 

 

 

 

ACOMODAÇÃO

 

Liso espelho

tua imagem

 

Nela pensei meu

nome retrato

 

A resposta ao engano

(guardado antigo)

aflora na água 

sem fundo

(teu fluido matiz)

 

Chama

cede com água

mesmo longe 

 

Sim o fragor  

se pega aos passos

mas agora é distante

 

A ausência é menor

do que antes queimava:

 

a lama comeu

a palavra

meu silêncio é todo

inteiro

teu.

 

 

 

 

 

 [Inéditos]

 

 

 

 

[imagens ©sarah horrigan]

 

 

 

 
 
 
Alberto Bresciani (Brasília - DF) é poeta e magistrado. Tem poemas e contos nos portais Alguma poesia, CronópiosMusa RaraAntonio Miranda e em outros pontos da internet. Os jornais Rascunho e Correio Braziliense e a Revista Macondo de Literatura também veiculam seus escritos. Em 2011, publicou Incompleto movimento, poesia (Rio de Janeiro: José Olympio). Escreve o blog Nóstres.