Pecados (sete micros)

 

Orgulho

Abaixo a cabeça, o sangue pinga na letra redonda (a tal carta). Borra vermelha sobre fundo falso, minha tela mais viva.

 

Inveja

O desgraçado tão calmamente lambe o próprio saco, depois levanta os olhos pra mim como se me desafiasse a fazer o mesmo. Mas eu, que, apesar de curvo, mal consigo olhar pra baixo sem sentir a nuca retrair, perdi de vista o meu, esquecido entre os pelos longos e embaraçados, sobre os quais descansa um pedaço de carne flácida, meu pau indolente. "Cachorro filho da puta, sabe como humilhar um velho", digo rosnando, minha boca salivosa.

 

Ira

Ela enrosca um fio de cabelo no meu mindinho. O fio ruivo faz um torniquete no meu dedo. Ela me quer mutilado, ela me quer incompleto.

 

Indolência

Afundo as unhas nas minhas coxas e arranco um pedaço da casca dura que brotou sobre minha pele. Surgem pontos vermelhos que crescem. Vejo pouco. Meus olhos foram abraçados por véus de poeira. Mas os pontos vermelhos crescem, na carne branca que, antes, escondia-se sob a casca.

 

Avareza

"Não dou", ela diz.

 

Gula

Nunca passei fome, mas é como se passasse. Esconda essa nuca melada de suor, ou sua cabeça penderá sem metade do alicerce.

 

Luxúria

Não acreditava no papo engana-trouxa de amor sem sexo. Era uma mulher e tudo o que queria era ser vista como tal. Foi por isso que ela empinou o tronco e, com o dedo indicador como um pêndulo inverso disrítmico na direção do nariz dele, encheu a boca para dizer:

— não preciso de um homem que me ame

[pausa]

preciso de um homem que me coma com vontade.

 

 

 

Verão

 

Na calçada, ela e as crianças. Um calor de cozinhar lá dentro, o ventilador parou. O menor todo torto no colo, mosquito pega. Final do ano, ventilador de teto. Teto daquele jeito, vazamento na casa de cima. Os homens consertando. Corta a unha da menina, tesoura de costura. Copinho descartável entre as coxas, água oxigenada e amônia. O vizinho chega, pão e a margarina, foi rápido, de bicicleta. Caneca descascada no chão, café com leite, garrafa térmica amarelenta, café bom. Tira a nata que bóia. Cheiro bom de café bom. O marido parece até que sente o cheiro de longe, tá molhado de mangueira, bebe café puro, de pé, copo americano. Sempre magro, o marido, ela não entende. O maior solta pipa. Céu colorido, vento bom. Os moleques da rua de trás cortam todo mundo, o maior xinga sozinho, ela grita ele, ele tem que comer, essa merda custa dinheiro. O maior acena e ela ri, um dente faltando, vai ao dentista qualquer dia, desdentada não consegue emprego, ela é boa de serviço. A espuma branca dentro do copo, ela esfrega na perna. A menina descoloriu o cabelo, faz sucesso, já namora. A gente cria filho pro mundo, a vizinha diz. Ela tem medo, Deus proteja, tanta desgraça. O menor dorme, mamadeira na mão, suco de groselha, pinga no peito. É grande pra mamadeira, não larga, vai ficar bicudo. Baixa o sol, a cigarra grita, hora dos cupins, corre pra fechar a janela. Suor. Escorre na frente da orelha, salpica o buço, mela o sovaco, molha até o cóccix. Cheiro de café, cheiro de suor. Final do ano, ventilador de teto.

 

 

 

De uma vez

 

Entrou devagar, pés silenciosos. Dentro, encaixou a porta na moldura e girou a chave, que já aguardava resignada na fechadura. Trancou também a janela. Desamarrou a cortina — se fosse dia, um risco de sol, surgido de alguma fresta, denunciaria os confetes de poeira que se desprendiam do tecido. Sentou-se na banqueta, abraçou a própria cintura, fechou os olhos

e inspirou

o ar da casa inteira, de uma vez.

Nas extremidades do pulmão, o ar misturou-se ao re-sentimento psicodelírico amador incrustado ali e um gás vermelho estufou o peito, que explodiu no mais alto grito que já se ouviu. Grito que, aos poucos, foi perdendo a intensidade, o alcance, à medida que estalos — como cordas de violão que arrebentam, uma a uma — ressonavam em sua garganta.

 

 

 

 

Um dia pálido

 

Engolia o líquido visguento como se fosse um dever. A quentura no estômago aplacava a ardência crônica. O lábio petrificado ganhava um tom amarelo-azia. A língua, essa permanecia numa dormência de cancro.

Um refluxo devolveu à boca um gosto inacabado.

A velha colocou os óculos grossos e enxergou um dia pálido. Calçou as pantufas e foi até a pia da cozinha, prato numa mão e caneca na outra. Mãos inseguras esfregaram, com a esponja ensaboada, a borda da caneca. No antebraço direito, veias ameaçavam romper a pele fina; muito verdes, muito inchadas, uma força inesperada.(Dentro, o sangue já ralo. Glóbulos vermelhos dispersos. Leucócitos exaustos. Dentro, as mesmas vias, a mesma vida, os mesmos vínculos; um outro impulso, empurrão de leve).

Ainda que na cozinha apertada, sobrava espaço para a velha. O tronco mirrado sob a camisola larga pedia para ser esquecido. Nua poderia unir-se ao emboço da parede, virar ela mesma aquela casa.

Jiló ganiu lá fora. A velha abriu a porta. Jiló a acompanhou até a sala, mantendo-se atrás, atento ao corpo curvo e lento de sua dona. A velha deitou no sofá. O cão no chão morno de taco. Ele teve sono inquieto, espasmos nas patas traseiras. Ela dormiu como morta.

 

*****

 

Jacira, ainda ofegante da corrida, sentou ao lado de Jorge.

O rapaz, olhando para baixo (mexia na terra com um graveto), disse:

— Não tinha reparado, você tem pernas bonitas.

A menina riu alto.

— Imagina! Pernas são todas iguais. O que as minhas têm de diferente?

— Sei lá. Veja as da Carlota, são arqueadas. As da Elza são roliças. As suas, não. São compridas, finas, parecem de garça.

— Ora, Jorge! Então não tenho pernas, tenho dois cambitos. Vê se fecha essa boca, viu? Se alguém escuta isso... Daqui a pouco todos vão caçoar de mim!

— Não falei por mal — disse Jorge gaguejando, ainda olhando para baixo; as bochechas do rapaz queimavam.

— Também não precisa ficar com essa cara. Olha pra mim. Ei!, olha pra mim. Você tem cara de cão abandonado. Jorge, preciso ir. As meninas vão sentir minha falta. Escute, não fiquei ofendida, tá?

Jacira enxovalhou o cabelo de Jorge num gesto de carinho e correu ao encontro das suas amigas. Enquanto corria, suspendia a saia.

 

*****

 

Lambidas desorientadas na cara, Jiló insistia em acordá-la dessa forma. Não que a velha gostasse, mas já havia acostumado. Não via motivo para ralhar com Jiló. Sua melhor (e única) companhia.

Acordar era isso: o azedo atrás da língua. Precisava lavar a boca, urinar, fazer café. Esboçou um movimento, mas continuou deitada. A certa hora da tarde, músculos e ossos tornavam-se desobedientes. Fechou novamente os olhos e sentiu a bexiga estufada.

 

*****

 

Jorge levantou a saia de com uma mão e arrancou a calcinha com a outra. Jacira pensou em recuar, Jorge estava irreconhecível.

— Você tá tremendo? Não tenha medo, sou eu, Jorge, o Jorge que você conhece tão bem.

Sim, ele tinha as mesmas bochechas vermelhas.

— Impressão sua, não tô tremendo. Não sou mais uma menina, não vou fugir.

— Que bom, que bom...

Ele arrastou os dentes no colo branco da moça, que, tremendo de medo e vontade, enfiou as unhas curtas nas costas do rapaz.

Os dedos da mão direita de Jorge encontraram o caminho. O mesmo percorrido pelos dedos dela dia antes, quando, trancada no banheiro, sentada na privada, pernas abertas, conheceu um pouco mais de si.

— Jorge.

— Que foi?

— Eu gosto de você.

— Eu também, Jacira, eu também...

 

*****

 

Café pronto, torradas no forno. Não tinha fome, a ânsia de vômito que não a deixava. Chá de boldo não resolvia. Mesmo assim, todos os dias, as torradas. A velha entalava. As torradas eram concreto, parede bem no meio da goela. Nem café pelando dissolvia. A velha, com a garganta entupida, mal comia, mal falava.

Apertou os olhos para ver o dia ir embora por detrás da janela de vidro da cozinha. (todos os dias os dias partiam sem dar aviso). O vidro agora tinha a cor das despedidas caladas. Um bem-te-vi lá fora gritou seu jargão. (Alguém a viu ali? Numa cozinha usada, com sua camisola puída, seu vira-lata aos pés. Alguém? O bem-te-vi? O sol que se escondia?)

Foi ao banheiro, despiu-se, dobrou a camisola e colocou sem pressa no cesto de roupa suja; estava na hora de sua ducha. Deu uns passos moles até o boxe e ligou o chuveiro. Deixou a porta aberta, não tinha pudores com Jiló. O cachorro fingia ignorar a nudez. A velha, no entanto, não ignorava. Olhava sem dó nem remorso para o próprio ventre, deformado, nove partos, todos ao natural. A penugem rala da virilha. O sexo seco. Acariciava com o sabonete os grandes seios desmaiados. Tocava a pele árida, cada dobra. Gostava de se reconhecer assim, não tinha espelho.

Saiu do banho ainda mais sonolenta. Secou as costas e as pernas, sem muita paciência. Vestiu a camisola azul, a que tinha seu nome bordado em letra de forma. (J-A-C-I-R-A — há anos não ouvia o próprio nome). Foi direto para o quarto, pés descalços. Acendeu a luz. Jiló a aguardava, deitado no tapetinho de retalhos. A velha quis se atirar na cama, como quando criança, mas não pôde, precisou cumprir o ritual. Sentou na beira, deitou de lado, fechou os olhos. Não apagou a luz.

 

 

 

Pequeno texto triste ou Irreversibilidade

 

Ele sai sem fazer cena, sem bater porta, sem as meias preferidas. Ela cogita gritar qualquer coisa que rebobine a fita até o exato instante em que, dormindo abraçados, sonharam o mesmo sonho, mas receia assustá-lo (é possível perder o que já perdeu?). Ele, naquela madrugada, se decompõe (músculos e música) na neblina do final da rua. Ela calça as meias esquecidas, deita na cama, no lado que era dele, volta a dormir e dormindo ouve o barulho de chave inquietando-se na fechadura, o ranger discreto da porta abrindo, os passos arrastados inconfundíveis; levanta um pouco o rosto e o vê sorrir para as meias preferidas esquecidas e de súbito mudar a feição e encará-la por quatro segundos e ficar nu e arrancar dela o short doll (única peça além das meias) e entrar. Ele fica ali, dentro, para todo o sempre, amém.

Ela acorda, no meio da cama, pernas abertas, sozinha — a eternidade dura o tempo dos olhos fechados.

 

 

 

[imagens ©juan monino]

 

 

 

 

Bruna Mitrano (1985) é carioca de Campo Grande. Graduada em Letras, cursa mestrado em Literatura Portuguesa, pela Uerj. Participou do projeto Vida Literária e Circuitos Intelectuais, orientado por Italo Moriconi. Às vezes, escreve.